Opinião

O Supremo Tribunal Federal deve evitar o apartheid na saúde

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7 de abril de 2020, 16h28

Um dos maiores empecilhos que os hospitais públicos brasileiros vêm encontrando para ampliar a sua capacidade de atendimento à população no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus (Codiv-19) é a dificuldade de comprar equipamentos e insumos, diante da ação de alguns fornecedores de aumentar, de cinco a dez vezes, o preço dos produtos e de não aceitar o pagamento por nota de empenho, exigindo o adimplemento em dinheiro,   antes mesmo da prestação de serviços ou entrega das mercadorias,  o que torna bem mais difícil a aquisição desses itens pelo Sistema Único de Saúde.

Para evitar que todos os bens necessários ao atendimento da população sejam destinados aos hospitais privados, União, Estados e Municípios vêm fazendo requisições administrativas, conforme autorizado no artigo 15, XIII, da Lei nº 8.080/90, que instituiu o SUS, a fim de promover o enfrentamento de calamidades públicas ou de epidemias.  Em relação especificamente ao novo coronavírus, a Lei nº 13.979/20, por meio do seu art. 3º, VII, e do §7º, III deste, autoriza aos gestores de saúde locais a requisição bens e serviços, mediante posterior e justa indenização.

No entanto, as requisições administrativas estaduais e municipais, e em consequência a atuação dos hospitais públicos desses entes federativos no combate à pandemia, correm sério risco, pois a Confederação Nacional de Saúde, entidade que representa os estabelecimentos hospitalares privados do país, ingressou no Supremo Tribunal Federal com a ação direta de inconstitucionalidade nº 6.362, objetivando a interpretação conforme à Constituição para que tais dispositivos da Lei nº 13.979/20 sejam interpretados de forma a exigir que todas as requisições estaduais e municipais sejam previamente submetidas ao Ministério da Saúde.  Sob o pretexto da necessidade de coordenação das atividades de enfrentamento da pandemia pelas autoridades federais, a ação não só fragiliza o princípio federativo, que na gestão do SUS tem uma dimensão bastante descentralizada, como esvazia a eficácia do instituto da requisição administrativa para o combate ao novo coronavírus, uma vez que a necessidade de consulta prévia, por todos os Estados e municípios da Federação ao Ministério da Saúde, tornaria a medida impraticável no tempo em que ela se faz necessária no combate à calamidade pública.

Ou seja, se o legislador reconheceu que a requisição administrativa é medida adequada a que Estados e Municípios façam o enfrentamento da pandemia, não é razoável interpretação que burocratize e retire toda a agilidade característica ao instituto, justamente no momento em que a saúde pública mais precisa de respostas rápidas ao atendimento da população.

Na verdade, por trás de uma aparente questão federativa, há o conflito entre as prestações públicas ou privadas de saúde. Não é à toa que a iniciativa de questionar as requisições estaduais e municipais não partiu das autoridades federais, mas do mercado.  É que, em um cenário em que infelizmente vão faltar insumos para todos os hospitais, como se verifica em todo o mundo, não pode o poder público deixar de adotar medidas de proteção aos estabelecimentos públicos, que atendem a toda a população, notadamente os hospitais estaduais e municipais.

Deste modo, atravancar as requisições estaduais e municipais neste momento, significa reservar os insumos da saúde apenas aos que têm recursos para pagar planos de saúde e hospitais particulares, deixando a maioria da população brasileira morrendo na fila do SUS, em verdadeiro apartheid na saúde em tempos de pandemia que já matou dezenas de milhares de pessoas, e matará muito mais, ao redor do mundo.

 Nesse contexto, vale lembrar das lições de Michael J. Sandel, na festejada obra Justiça, ao comentar o aumento do preço dos produtos essenciais à população da Flórida no enfrentamento dos efeitos destruidores do furacão Charley, em 2004: “Em tempos de dificuldade, uma boa sociedade se mantém unida.  Em vez de fazer pressão para obter mais vantagens, as pessoas tentam se ajudar mutuamente.  Uma sociedade na qual os vizinhos são explorados para a obtenção de lucros financeiros, em tempos de crise não é uma sociedade boa.  A ganância excessiva é, portanto, um vício que a boa sociedade deve procurar desencorajar, na medida do possível. “  Dessas lições, exsurge a necessidade de que, neste momento grave da história, a solidariedade e a coesão social prevaleçam sobre os objetivos do lucro e do privilégio de classe.

Por essas razões, espera-se que o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, e em defesa da saúde pública de todos os brasileiros, não julgue procedente a ADI 6.362, e autorize os Estados e municípios brasileiros a continuar adotando as medidas necessárias ao enfrentamento à pandemia, inclusive com a requisição de bens e serviços particulares, garantida a justa e posterior indenização pelo valor de mercado, evitando lucros exorbitantes em detrimento da vida.

Autores

  • é reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor associado de Direito Financeiro da Uerj, presidente da Sociedade Brasileira de Direito Tributário e advogado.

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