Paradoxo da Corte

Nulidade da citação e teoria da aparência na jurisprudência do STJ

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

7 de abril de 2020, 8h00

A citação, como é cediço, é o ato pelo qual o demandado é instado a se defender no âmbito de uma ação que lhe é movida. Trata-se de providência processual da mais alta relevância e, por esta razão, deve ser efetivada de modo inequívoco.

Isso bem explica a atenção dispensada pelo legislador no tocante às formalidades que devem revestir o ato citatório, ao estabelecer, no diploma processual em vigor, uma série de requisitos, dependendo da modalidade de citação, para o escorreito chamamento do réu a juízo.

Dispõe, com efeito, o artigo 242 do Código de Processo Civil, que: “A citação será pessoal, podendo, no entanto, ser feita na pessoa do representante legal ou do procurador do réu, do executado ou do interessado”.

Tratando-se de pessoa jurídica, o subsequente artigo 248, parágrafo 2º, inovando em relação ao revogado Código de Processo Civil, preceitua que se reputará aperfeiçoada a citação se a carta ou o mandado for entregue a quem detenha poderes de gerência ou de administração, bem como a preposto responsável pelo recebimento de correspondência.

Nessa hipótese, mesmo sob a égide do Código de 1973, os tribunais entendiam que se a citação fosse feita a alguém – geralmente recepcionista –, na empresa citanda, ou mesmo na portaria de um edifício, incidia a denominada teoria da aparência.

Importa relembrar que a teoria da aparência decorre do dever geral de boa-fé objetiva (arts. 113 e 422 do CC) e tem por objetivo a proteção da confiança gerada na celebração de negócios jurídicos ou na efetivação de atos processuais.

Na precisa síntese de Maurício Jorge Pereira da Mota (A teoria da aparência jurídica, Revista de Direito Privado, vol. 32, pág. 218-279, out-dez/2007): “a aparência de direito pode ser definida como uma relação entre dois fenômenos, o primeiro uma situação de fato, imediatamente presente e real, que manifesta por ilação ou reenvio uma segunda situação jurídica, fazendo-a aparecer como real, quando na realidade não existe, ou existe com modalidade diversa daquela assinalada”.

A aparência da citação reputada hígida, nestas situações, decorre de circunstâncias que infundem a presunção de que o ato atingiu a sua finalidade.

Secundando essa tese, importante precedente da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Agravo Regimental nos Embargos de Divergência no Recurso Especial n. 205.275-PR, com voto condutor da ministra Eliana Calmon, adotou a teoria da aparência, no sentido de reputar-se “válida a citação da pessoa jurídica quando esta é recebida por quem se apresenta como representante legal da empresa e recebe a citação sem ressalva quanto à inexistência de poderes de representação em juízo”.

Contudo, mais recentemente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n. 913.878-SP, da relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, assentou que:

“No caso, percebe-se a inviabilidade da adoção da teoria da aparência para considerar válida a citação, tendo em vista que a receptora do respectivo mandado não tinha nenhuma relação com a pessoa jurídica demandada, seja de subordinação, seja de representação.

Pelo simples compulsar dos autos, sem a necessidade de reexaminar fatos ou provas, é possível constatar que ‘(…) a carta de citação foi entregue por funcionário do correio a atendente da portaria do edifício comercial no qual está estabelecida a ré’ (fl. 26 e-STJ).

Salienta-se que o vício de nulidade de citação é o defeito processual de maior gravidade em nosso sistema processual civil, tanto que elevado à categoria de vício transrescisório, podendo ser reconhecido a qualquer tempo, até mesmo após o escoamento do prazo para o remédio extremo da ação rescisória, mediante simples alegação da parte interessada (cf. REsp n. 1.138.281/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 22/10/2012).

Isso porque a citação não é mera formalidade, mas, sim, forma de assegurar a concretização dos princípios constitucionais mais relevantes do nosso ordenamento jurídico processual, quais sejam: ampla defesa e contraditório.

É preciso consignar, por fim, que o Código de Processo Civil de 2015 traz regra no sentido de admitir como válida a citação entregue a funcionário da portaria responsável pelo recebimento de correspondência (artigo 248, parágrafo 4º].

Essa norma, no entanto, não se aplica ao caso concreto, tendo a citação ocorrido em 2014, momento em que o Código de Processo Civil de 2015 ainda não estava em vigor…”.

Com efeito, para espancar quaisquer dúvidas, sobretudo no que toca à citação de pessoa física, o parágrafo 4º do supra citado art. 248, determina que: “Nos condomínios edilícios ou nos loteamentos com controle de acesso, será válida a entrega do mandado a funcionário da portaria responsável pelo recebimento da correspondência, que, entretanto, poderá recusar o recebimento, se declarar, por escrito, sob as penas da lei, que o destinatário da correspondência está ausente”.

Ao traçar a exegese dessa inovação legislativa, escreve Helena Abdo que, de fato, os tribunais pátrios sempre impuseram maior rigor na comprovação da efetiva citação postal, consolidando entendimento firme no sentido de que o ato citatório por meio de carta subordinava-se ao recebimento direto da correspondência pelo seu destinatário; lembrando, inclusive, que o Superior Tribunal de Justiça editara o enunciado da Súmula 429 (“A citação postal, quando autorizada por lei, exige o aviso de recebimento”), a demonstrar a convergência de entendimento pretoriano acerca dessa questão (Breves comentários ao novo Código de Processo Civil, coord. Teresa Arruda Alvim et alii, 3ª ed., São Paulo, Ed. RT, 2016).

No entanto, com a referida alteração legislativa, os nossos tribunais, em particular, o Superior Tribunal de Justiça, deverão rever tal orientação, visto que o receptor da carta de citação poderá se negar a recebê-la, declarando que o citando se encontra ausente, circunstância que afasta a presunção de que o ato se concretizou de forma escorreita.

Se não o fizer, isto é, se inexistir prova de que houve negativa na recepção da carta citatória, presume-se que ela tenha chegado ao seu destinatário.

Esse entendimento, de um lado, imprime maior segurança ao demandado, e, de outro, atende às garantias do contraditório e da ampla defesa, visando, em última análise, a evitar nulidade insanável do processo por vício de citação.

Essa é a interpretação que recente e expressivo precedente da 20ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP conferiu ao artigo 248, parágrafo 4º, do Código de Processo Civil, no julgamento do Agravo de Instrumento n. 2269858-76.2018.8.26.0000, relatado pelo Desembargador Correia Lima, textual:

“Como se vê, a legislação processual civil de regência admite que a citação por carta de pessoa física seja considerada efetivamente realizada quando, no endereço a ser realizado o ato citatório, houver condomínio edilício ou loteamento com controle de acesso e a carta de citação for recebida por funcionário da portaria responsável pelo recebimento da correspondência, podendo o mencionado funcionário recusar o recebimento, se declarar, por escrito, sob as penas da lei, que o destinatário da correspondência está ausente (artigo 248, parágrafo 4º).

Ao que se colhe da prova documental que instrui este caderno processual, a carta de citação foi expedida com o endereço da Rua Doutor Helvécio Carneiro Ribeiro, n. 254, apartamento 302E, Bairro Ondina, Salvador-BA, CEP 40170-060 (fls. 252), portanto, no endereço declinado há condomínio edilício, de sorte que possível que terceiro estranho a lide, no caso, o porteiro responsável pelo recebimento das correspondências, receba a carta citatória para posterior entrega ao condômino da unidade habitacional, no caso, o morador da unidade 302E, presumidamente o réu da ação de cobrança.

É verossímil a alegação da agravante de que se trata de condomínio edilício e que a citação foi regularmente efetivada, pois, em consulta efetuada por esta relatoria no Google Maps, constatou-se que, no endereço Rua Doutor Helvécio Carneiro Ribeiro, 254, Bairro Ondina, Salvador-BA, CEP 40170-060, está localizado o Condomínio Nova Ondina, havendo, inclusive, fotografia tirada por satélite que demonstra tratar-se de um dentre vários prédios que compõem condomínio edilício fechado com grades e com portaria, o que demonstra que, certamente, o condomínio possui funcionário encarregado do recebimento das correspondências e, consequentemente, que o réu tenha recebido a carta de citação…

Imperioso, assim, reconhecer, por ora, válida a citação por carta recebida pelo porteiro do condomínio edilício no qual o réu, presumidamente, vem residindo, bem como a desnecessidade de que seja expedido carta precatória à Comarca de Salvador-BA para que seja realizada a citação pessoal do réu ou se proceda à constatação de que ele esteja residindo no aludido endereço, prosseguindo-se o feito até os seus ulteriores termos, como de direito”.

Bem é de ver, em conclusão, na esteira da precisa observação de Helena Abdo (op. cit.), que o preceito do artigo 248, parágrafo 4º, do Código de Processo Civil, não se aplica ao procedimento da ações aforadas perante os Juizados Especiais Estaduais Cíveis, “uma vez que a respectiva lei (Lei 9.099/1995), em seu texto atual, contém norma específica, exigindo que a citação postal da pessoa física seja realizada mediante aviso de recebimento ‘em mão própria’, não podendo a carta de citação, portanto, ser recebida por terceiras pessoas”.

Não obstante, tal regra do diploma processual tem incidência quando o citando for pessoa jurídica, ex vi do disposto no artigo 18, II, da lei dos Juizados Especiais: “A citação far-se-á: (…) II – tratando-se de pessoa jurídica ou firma individual, mediante entrega ao encarregado da recepção, que será obrigatoriamente identificado…”.

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