Opinião

O dever da racionalidade nas decisões no fornecimento de remédio fora do SUS

Autor

  • Fabio Paulo Reis de Santana

    é professor de cursos de pós-graduação doutorando em Direito pela PUC-SP presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SP membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB e procurador do município de São Paulo.

7 de abril de 2020, 17h40

A judicialização da saúde constitui tema bastante espinhoso no cotidiano forense, porque além de, nos últimos dez anos (2008-2017), o número de demandas relativas à saúde ter crescido aproximadamente 130%, conforme pesquisa encomendada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) [1], verifica-se certo desconhecimento acerca do assunto pelos diversos operadores do direito, que carecem da cadeira de direito sanitário nas universidades pelo país.

Em matéria de saúde, a Constituição da República, no art. 197, utiliza a expressão “ações e serviços de saúde” para circunscrever o âmbito de atuação dos entes e das entidades públicas e privadas.

Assim, as ações e os serviços de saúde são classificados pelo referido dispositivo da Constituição Federal como atividades de relevância pública. Vale dizer, podem ser desempenhados diretamente pelo particular (art. 199 da CF), prescindido do procedimento de delegação de competência descrito no art. 175, caput, da Carta Magna.

Dessa maneira, o constituinte reservou ao Poder Público duas esferas de atuação: (i) a execução das ações e dos serviços de saúde diretamente pelos entes ou entidades públicas e (ii) a possibilidade de dispor sobre a regulamentação, a fiscalização e o controle do sistema de saúde, nos termos da lei.

Com efeito, nos termos do art. 198 da Constituição Federal, as ações e os serviços de saúde quando prestados diretamente pelo Poder Público compõem o denominado Sistema Único de Saúde (SUS), isto é, inserem-se numa rede hierarquizada e regionalizada, constituída sob as diretrizes da descentralização (porém com direção única em cada esfera de governo), do atendimento integral e da participação da comunidade, disciplinados essencialmente pela Lei Federal 8.080/90.

Por outro lado, quando as atividades de saúde são prestadas diretamente pelo particular, a atuação estatal se limita à regulamentação, à fiscalização e ao controle levados a efeito pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), com supedâneo principalmente nas Leis Federais 9.656/98 e 9.961/00.

Nessa toada, a despeito da convivência do sistema público com as atividades privadas de saúde, nada impede que, com esteio no art. 199, §1º, da Carta Maior, o setor privado atue de forma complementar ao SUS, segundo as diretrizes deste, por meio de instrumentos tradicionais do direito administrativo, tais como, o contrato ou o convênio.

Feitas essas distinções iniciais, este breve estudo cingir-se-á doravante à análise do regramento acerca do dever de fornecimento pelos entes federativos de medicamentos não incorporados ao SUS.

O art. 6º, I, “d”, da Lei Federal 8.080/90 (“Lei”) preconiza que a assistência farmacêutica se encontra inserida nas ações do SUS. E, por sua vez, o art. 19-M, I, da Lei, ao detalhar a maneira como se desenvolve essa assistência farmacêutica, prevê o dever de dispensação de medicamentos (i) cuja prescrição esteja em conformidade com o protocolo clínico e as diretrizes terapêuticas (PCDT) elaborado pelo SUS para a doença ou, (ii) na falta desse PCDT, desde que o medicamento esteja arrolado na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), cuja criação está a cargo do Ministério da Saúde.

Portanto, em regra, os entes federativos são obrigados a fornecer medicamentos à população desde que a prescrição médica esteja de acordo com o PCDT[2] ou, em não havendo, deve constar da RENAME, também conhecida como Lista do SUS.

Todavia, o fato de o medicamento prescrito constar da RENAME não conduz à responsabilidade automática de fornecimento por todos os entes federativos, uma vez que, consoante o teor do art. 19-P, I, da Lei, a dispensação de medicamentos na hipótese de inexistência de PCDT ocorrerá com base na RENAME, mas a responsabilidade pelo fornecimento será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite (CIT).

Assim, para se averiguar se determinado Município, por exemplo, deve fornecer um medicamento integrante da RENAME, faz-se indispensável o revolvimento das decisões tomadas no âmbito da CIT.

Com efeito, tendo em vista que, nos termos do art. 24, XII, da Constituição da República, a competência para proteção e defesa da saúde é concorrente, logo cada ente poderá elaborar a sua própria lista de medicamentos, de forma suplementar à União. Por exemplo, em certos Municípios, é possível encontrar uma Relação Municipal de Medicamentos Essenciais (REMUME), cuja implementação figura expressamente autorizada pelo art. 19-P, III, da Lei.

Nesse cenário, cabe encaminharmos a resposta ao problema do dever de fornecimento de medicamentos não incorporados ao SUS.

O art. 19-Q, caput, da Lei dispõe expressamente que a incorporação pelo SUS de novos medicamentos constitui atribuição do Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao SUS (CONITEC).

Dessa maneira, um pleito somente perante o Município e/ou o Estado-membro para a dispensação de medicamento não incorporado ao SUS viola o disposto nos arts. 19-M, I c/c 19-P, I c/c 19-Q, todos da Lei, porque o fornecimento de medicamento fora da lista do SUS depende de prévia análise e aprovação pelo Ministério da Saúde (União), por meio da Conitec.

Contudo, embora essas regras expressas estejam plenamente vigentes, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio do TEMA 106, tendo como leading case o REsp 1.657.156/RJ, julgado pelo procedimento de recursos repetitivos, relativizou a normativa constante Lei, deixando assentado o entendimento de que a concessão de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos:

(i) comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;

(ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; e

(iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.

Então, a partir de 04/05/2018 (modulação de efeitos atribuída em sede de embargos de declaração), ficou admitida no ordenamento jurídico a concessão pelos entes federativos de medicamentos não incorporados ao SUS, desde que presentes cumulativamente os requisitos acima descritos.

Essa matéria, no entanto, mereceu novos contornos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por meio dos Temas 500 (tendo como leading case o RE 657.718/MG) e 793 (tendo como leading case o RE 855.178/SE), que, respectivamente,

TEMA 500/STF
1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais;

2. A ausência de registro na ANVISA impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial;

3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da ANVISA em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei nº 13.411/2016), quando preenchidos três requisitos: (i) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras); (ii) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (iii) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil; e

4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União.

TEMA 793/STF
Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.

Assim, se o medicamento não contiver registro na ANVISA, a União deverá necessariamente compor o polo passivo da demanda, na esteira do quanto definido no TEMA 500/STF.

Some-se a isso, o fato de que a mera condenação solidária dos entes federativos não se apresenta suficiente à disponibilização do fármaco, dado que, com base na tese fixada no TEMA 793/STF, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento da decisão conforme as regras de repartição de competências.

Acontece que os recursos repetitivos e a repercussão geral não vinculam a Administração Pública, mas tão somente os Juízes e os Tribunais, como aduz o art. 927, III, do Código de Processo Civil. Isso porque esses julgados não se revestem do poder da súmula vinculante, cuja observância é obrigatória por toda a Administração Pública, como preconiza o art. 103-A, caput, da Carta Magna.

Dessa forma, quando nega administrativamente o fornecimento de um medicamento não incorporado ao SUS, o Poder Público age dentro da legalidade estrita imposta pelo art. 37, caput, da Constituição Federal.

Portanto, a decisão judicial que concede a dispensação de medicamento, sobretudo mediante medidas liminares ou que antecipam os efeitos da tutela, embora amparadas nos julgados acima, terminam por inovar no ordenamento jurídico, porque criam um dever outrora inexistente.

Então, considerando a ausência de ilegalidade no ato de indeferimento pela Administração Pública, faz-se necessário que, em eventual decisão judicial de concessão do medicamento, seja fixado prazo razoável para a disponibilização do fármaco. Isso porque, como não consta da RENAME bem como houve o indeferimento administrativo, o item precisa ser adquirido pelo ente público no mercado.

Como cediço, a Administração não pode adquirir livremente os bens no mercado, de modo que a observância à rigorosa formalidade do procedimento licitatório se faz imprescindível, sob pena de se vilipendiar o art. 37, XXI, da Constituição da República.

Cabe lembrar que, caso viole o dever de licitação, o gestor público ficará sujeito às penalidades insculpidas na Lei de Improbidade Administrativa (Lei Federal 8.429/92).

Assim, o dever de racionalidade das decisões judiciais impõe (i) tanto observância ao disposto no art. 22 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que assegura que “na interpretação das normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados” (ii) quanto deferência ao item b.3 da Recomendação 31/CNJ, que dispõe que os magistrados “ouçam, quando possível, preferencialmente por meio eletrônico, os gestores, antes da apreciação de medidas de urgência”.

Portanto, como se vê, embora se tenha avançado bastante no tema do fornecimento de medicamentos não incorporados ao SUS, ainda há muito a ser desvelado.


[2] Art. 19-O, da Lei. Os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas deverão estabelecer os medicamentos ou produtos necessários nas diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde de que tratam, bem como aqueles indicados em casos de perda de eficácia e de surgimento de intolerância ou reação adversa relevante, provocadas pelo medicamento, produto ou procedimento de primeira escolha.

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