Academia de polícia

Investigação criminal exige base epistemológica e fundamento democrático

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

7 de abril de 2020, 10h37

Spacca
O devido procedimento de investigação preliminar exige necessariamente uma base racional probatória (ou informativa). Não se pode conceber o inquérito policial como mero espaço de acasos investigativos ou subjetivismos persecutórios. Muito embora a fase investigativa não se confunda com a etapa processual, ambas ficam submetidas, cada qual segundo os respectivos limites procedimentais, ao primado básico de justificação racional.

Nesse sentido, desde o início até o fim de um procedimento de investigação preliminar, devem ser considerados os elementos fundamentais de uma teoria do raciocínio jurídico.1 Claro que com as adaptações necessárias a essa fase específica da persecução criminal.

Não se ignora a distinção contextual entre investigação e processo, bem como a diferença funcional entre investigador e juiz.2 Há inúmeros traços distintivos entre essas duas etapas e órgãos do sistema de persecução criminal.3 O que se defende, contudo, é que também a investigação preliminar processual penal seja orientada por critérios epistemológicos.

Do contrário, ter-se-ia (ou melhor: tem-se) um sério risco de maximização do potencial abusivo da justiça criminal. A esse respeito, importante lembrar que inúmeros erros judiciais por vícios no campo probatório penal apresentam relação direta com uma metodologia (de)formativa dos atos de investigação preliminar. Citem-se os casos recorrentes de condenações injustas por falsos reconhecimentos de pessoa.

Diferente do mundo ficcional das artes, em que os grandes casos penais são muitas vezes resolvidos por um certo “tirocínio policial”, “lances de sorte” ou até mesmo “revelações sobrenaturais”, a prática investigativa concreta demanda critérios racionais à determinação fática e, portanto, uma imersão na epistemologia aplicada às questões jurídicas.4

É necessário sempre frisar que o direito não tem relação apenas com as normas, senão também com os fatos.5 Daí a grande importância desse campo, ainda pouco explorado no direito, especialmente processual penal, que é a epistemologia jurídica.6

Em que pese certa mudança nas últimas décadas em várias culturas jurídicas internacionais,7 a atenção com o modelo de raciocínio probatório (e investigativo) criminal parece não ter alcançado até agora o espaço devido na teoria e prática do processo penal, ao menos no contexto brasileiro em geral.

Ocorre, no entanto, que a preocupação “sobre as condições de produção e identificação do conhecimento válido, bem como da crença justificada”8, que se encontra na base da epistemologia, deveria ocupar um lugar de destaque na seara criminal, principalmente latino-americana, marcada por abissais níveis de desigualdade (social, econômica e jurídica), cujos efeitos concretos das decisões penais mostram-se sobremaneira gravosos à subjetividade.

Nesse viés, impossível conceber uma teoria da prova (e da investigação) criminal dissociada de uma “filtragem epistêmica”, que seja rigorosa quanto aos critérios lógicos essenciais à justificação dos “achados fáticos”, sem, no entanto, “descuidar do inafastável respeito às garantias processuais”.9 Afinal de contas, a legitimidade no exercício concreto do poder punitivo requer, dentre outras coisas, uma prévia determinação fática de qualidade, segundo um curso procedimental bastante exigente quanto à tutela dos direitos e garantias fundamentais.10

O que, no fundo, sempre remete à questão primordial dos “fundamentos dos fundamentos” de cada um dos sistemas processuais penais, sua repercussão quanto às limitações de acesso ao conhecimento sobre o caso penal e, acima de tudo, por uma necessária mudança cultural dos agentes públicos da justiça criminal.11

Nesse contexto, portanto, é que se deve buscar um modelo de raciocínio jurídico investigativo criminal que seja epistemologicamente orientado e democraticamente fundado, tudo com vistas à máxima redução possível do caráter abusivo do poder punitivo em consonância com os limites próprios de um Estado de Direito.


1 Sobre o “raciocínio jurídico” em geral: SGARBI, Adrian. Curso de Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 307 – 320.

2 BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia Judiciária e Prova Penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 145 – 200.

3 As diferenças começam na própria legitimidade instrutória do caso penal. Ao juiz, em um modelo acusatório processual penal, fica reservado um lugar de destinatário da prova oferecida pelas partes (acusação e defesa). Já ao delegado de polícia, na presidência de um inquérito policial, incumbe a responsabilidade pela produção de elementos informativos sobre o caso penal. Isso sem falar no tipo de raciocínio jurídico e na distinção entre os standards probatórios.

4 VÁZQUEZ, Carmen. Entrevista a Susan Haack. DOXA, Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 36, p. 573-586, 2013, p. 580.

5 LAGIER, Daniel González. Quaestio facti: ensayos sobre prueba, causalidad y acción. Academia.edu: Books, p. 04. Disponível em: <https://www.academia.edu/24429680/Quaestio_facti_Ensayos_sobre_prueba_causalidad_y_acción>. Acesso em 10 mar. 2020.

6 LAUDAN, Larry. Verdad, Error y Proceso Penal: un ensayo sobre epistemología jurídica. Trad. Carmen Vázquez e Edgar Aguilera. Madrid: Marcial Pons, 2013, pp. 316 e 23.

7 “Frente al abandono tradicional del razonamiento probatorio y de la teoría general de la prueba que ha caracterizado en nuestra cultura jurídica tanto los estudios procesales tradicionales como los de filosofía del derecho, puede decirse que en las dos últimas décadas se ha cambiado claramente la tendencia” (BELTRÁN, Jordi Ferrer. Prolegómenos para una teoría sobre los estándares de prueba. El test case de la responsabilidad del estado por prisión preventiva errónea. In: PAPAYANNIS, Diego M.; FREDES, Esteban Pereira (org.). Filosofía del Derecho Privado. Madrid: Marcial Pons, 2018, p. 401).

8 SANTOS, Boaventura de Sousa. O Fim do Império Cognitivo: a afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019, p. 18 – 19.

9 MATIDA, Janaina; NARDELLI, Marcella Mascarenhas; HERDY, Rachel. A Prova Penal precisa passar por uma Filtragem Epistêmica. São Paulo: Consultor Jurídico, 13 mar. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-13/limite-penal-prova-penal-passar-filtragem-epistemica>.

10 IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. En Materia de Prueba: sobre algunos cuestionables tópicos jurisprudenciales. Quaestio facti. Revista Internacional sobre Razonamiento Probatorio, Madrid, v. 1, p. 75-102, 2020, p. 78.

11 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Para entender standards probatórios a partir do salto com vara: um complemento. São Paulo: Consultor Jurídico, 27 mar. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-27/limite-penal-standards-probatorios-partir-salto-vara-complemento>.

Autores

  • é delegado de polícia em Santa Catarina, doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC. Professor em cursos de graduação e pós-graduação.

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