Opinião

Calamidade, regras fiscais e responsabilização – parte II

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6 de abril de 2020, 11h00

O decurso do tempo é variável que afeta a qualidade e a efetividade da resposta governamental para o enfrentamento da pandemia da Covid-19 e, a esse respeito, não faltam alertas amplamente noticiados na imprensa1 de que demora e insuficiência aumentam os riscos sanitários e econômicos. Porém, passadas duas semanas da data do reconhecimento da calamidade pelo Congresso e mesmo já respaldado a agir pelo STF, o Poder Executivo federal ainda se esquivava em relação ao enfrentamento mais efetivo das consequências sociais e econômicas do isolamento horizontal recomendado sanitariamente,2 sob pretextos questionáveis (como vimos na primeira parte deste artigo).

A premência de agir na saúde pública, bem como na proteção social e do emprego foi alvo de detido estudo do Centro de Estudos Estratégicos do Exército, em esforço de planejamento dinâmico das ações necessárias, sobretudo, porque, segundo o próprio CEEEx, “a adoção precoce de estratégias de isolamento horizontal tem apresentado resultados parciais mais efetivos, no achatamento da curva” 3.

O próprio presidente do Banco Central abriu palestra repetindo tabela que compara – para os países do G-20 – a previsão de crescimento do PIB em 2020 antes e depois da Covid-19, sendo o Brasil o mais impactado do bloco, com variação negativa de 7,9 pontos do produto interno, pouco à frente da Alemanha e da Itália.4 Se já é sabido que esse impacto poderá ser pior que na dos demais grandes países, surpreende e impressiona como e quanto difere do apurado em levantamentos internacionais que apuram e relacionam as medidas fiscais, financeiras e econômicas já tomadas pelos diferentes governos sequer chegam a citar as do brasileiro.5

Voltando à questão mais emergencial de todas, a da saúde pública. Chamou a atenção que inicialmente não houve repasse de recursos novos para o Ministério da Saúde após quase dois meses desde a promulgação da Lei nº 13.979/2020. Isso porque o primeiro crédito extraordinário, aberto por meio da Medida Provisória nº 924, de 13 de março de 2020, apenas fez remanejamento de fontes de custeio dentro das dotações já disponíveis na pasta, subtraindo recursos do custeio da atenção básica de saúde e da assistência hospitalar e ambulatorial, para remanejar ao enfrentamento da pandemia, conforme atesta a tabela a seguir:

Demonstrativo da Movimentação Orçamentária do Ministério da Saúde em 2020  com a criação da ação para enfrentamento do Coronavirus

Reprodução

Elaboração: Francisco R. Funcia, Rodrigo Benevides e Carlos Ocke-Reis.
Fonte: Adaptado de Siga Brasil Relatórios.
Consulta do Universo LOA2020 – Despesa Execução.
Disponível em https://www12.senado.leg.br/orcamento/sigabrasil (Acesso em 23/03/2020 à 1h42).

É fato que um segundo crédito extraordinário no valor de R$ 9,4 bilhões foi aberto por meio da Medida Provisória nº 940, de 2 de abril de 2020. Porém, nota-se que, mesmo em meio à maior crise sanitária das últimas décadas e com dois meses de atraso (haja vista o lapso entre 06/02 a 02/04), o governo federal apenas acrescentou R$ 9,4 bilhões ao custeio do Sistema Único de Saúde (menos de 8% da dotação federal para a pasta). 6

Em meio a calamidade, ainda foi realizada despesa indevida com a campanha publicitária “O Brasil não pode parar” em rota finalisticamente contrária às orientações da Organização Mundial de Saúde e do próprio Ministério da Saúde. O Ministro Roberto Barroso, em cautelar concedida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 669, obstou aludida “campanha apta a gerar grave risco à vida e à saúde dos cidadãos”. Ele alertou que, no lugar da mera controvérsia política, impõe-se o rigor técnico e a ação urgente:

“É igualmente importante ter em conta que não se trata aqui de uma decisão política do Presidente da República acerca de como conduzir o país durante a pandemia. Haveria uma decisão política, no caso em exame, se a autoridade eleita estivesse diante de duas ou mais medidas aptas a produzir o mesmo resultado: o bem estar da população, e optasse legitimamente por uma delas. Não é o caso. A supressão das medidas de distanciamento social, como informa a ciência, não produzirá resultado favorável à proteção da vida e da saúde da população. Não se trata de questão ideológica. Trata-se de questão técnica. E o Supremo Tribunal Federal tem o dever constitucional de tutelar os direitos fundamentais à vida, à saúde e à informação de todos os brasileiros.”

Esse contexto até poderia levantar um debate sobre a responsabilidade pessoal e institucional de uma eventual ação temporalmente tardia, tecnicamente errática e fiscalmente insuficiente. Ações de responsabilização acerca da eventual omissão desarrazoada já chegaram a ser avaliadas.7 Em um mero exercício teórico-normativo, é cabível o levantamento abstrato das seguintes hipóteses, entre outras:

  • responsabilidade civil objetiva do Estado por quaisquer danos (patrimoniais ou morais/ individuais ou coletivos) que os agentes públicos causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa, na forma do art. 37, §6º da CF;

  • crime de responsabilidade, a que se refere o art. 85 da CF, na forma do art. 7º, item 9; art. 8º, itens 7 e 8; e do art. 9º, itens 1 e 3, da Lei nº 1.079, de 10 de abril de 19508;

  • mandado de injunção para suprir a omissão de norma regulamentadora essencial ao exercício de prerrogativas inerentes à cidadania, na forma do art. 5º, LXXI da CF, por afronta aos arts. 196 e 203, também da Constituição;

  • ação direta de inconstitucionalidade por omissão e arguição de descumprimento de preceito fundamental, na forma do art. 103, §2º da Constituição, bem como em consonância com as Leis nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999, e nº 12.063, de 27 de outubro de 2009, por afronta aos arts. 196 e 203 da CF;

  • improbidade administrativa por lesão a princípios em face do retardamento ou omissão indevida na prática de ato de ofício, na forma do art. 11, II da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992; e, por fim, mas não menos importante.

Em todas essas hipóteses, caberia invocar que sobrelevam os deveres estatais de custódia e de zelo pela integridade física e pelo bem-estar de todos os brasileiros. Eventual ação tardia e insuficiente de autoridades públicas negará cumprimento a tais deveres e poderia vir a ensejar hipóteses fáticas que reclamam pronta contenção por parte dos órgãos de controle.

Negar a gravidade dos fatos, frustrar a necessária cooperação federativa, assumir os riscos de centenas de milhares de mortes, dar causa ao agravamento da iminente depressão econômica, aplicar recursos aquém do necessário no Sistema Único de Saúde e desamparar socialmente os cidadãos mais vulneráveis não são escolhas discricionárias à disposição das autoridades. Podem ser considerados atos e omissões puníveis individual e institucionalmente, na forma da lei e do devido processo em cada circunstância concreta.

Como bem já disseram diversos Deputados (ao aprovarem em tempo recorde e quase por unanimidade) proposta de emenda constitucional para o chamado “orçamento de guerra”, assim como Ministros da Suprema Corte e do Tribunal de Contas da União também já se pronunciaram, a sociedade brasileira não vive momentos de normalidade para que despesas essenciais sejam impunemente adiadas ou executadas aquém do necessário.

Ninguém quer diante de uma calamidade pandêmica que haja omissão ou atuação tardia e insuficiente, inclusive sob risco de um genocídio, em termos sanitário, social e econômico.

As opiniões são de exclusiva responsabilidade dos autores e não das instituições a que estão vinculados. Elaborado com base em informações disponíveis até 5/4/2020.


1 Um exemplo é a reportagem da BBC de 2/4/2020, “Governo acerta na direção, mas atraso nas medidas contra coronavírus aumenta riscos, dizem economistas” – ver https://bre.is/S2VVXAfx

2 Dentre inúmeras reportagens na mídia, é possível sintetizar nesta, sob título “Demora nas medidas fará PIB recuar mais”, Estado de S.Paulo, edição de 5/4/2020, que comenta:

“Levantamento feito pelo Estado mostra que, de 39 medicas econômicas divulgadas até agora, apenas um terço já saiu do papel. A maior parte delas (36%) está atrasada e 31%, em andamento.

Na última semana, por exemplo, diante de um impasse jurídico, o presidente Bolsonaro demorou 48 horas para sancionar o auxílio emergencial para trabalhadores informais. Agora, ainda há entraves para fazer com que esse dinheiro chegue a grande parte da população. Na área monetária, também há dificuldades para que o crédito alcance os empresários.” ( disponível em: https://bre.is/Jr97HJqS )

3 Ver p.17 do documento também disponível em: https://bre.is/wrX4aetM

4 Palestra de Roberto Campos Neto, sob título “Atualização do Cenário Macroeconômico”, em 4/4/2020. A fonte da citada comparação internacional é The Economist Intelligence Unit, em 28/3/2020.

5 É possível consultar diversos instrumentos de acompanhamento das políticas de resposta à crise adotadas por governos ao redor do mundo, atualizados periodicamente, tais como: para política econômica, ver "Policy Responses to COVID-19" do FMI ( disponível em https://bit.ly/34iZZOA ); para medidas tributárias, "Tracking Economic Relief Plans" da Tax Foundation ( em https://bit.ly/3bTrWit ); para ações proteção social, "Social Protection Monitor on COVID-19" da OIT (https://bit.ly/3dTRTAd); especificamente para medidas de confinamento, saúde e fiscal, “Country Policy Tracker" da OCDE ( https://bit.ly/2RfZ9wK ).

6 Até o Fundo Monetário Internacional recomendou aos países a adoção de medidas fiscais vigorosas para enfrentar efeitos econômicos e sociais da pandemia do Covid-19 – ver documento em: https://bre.is/Uw6pDcK8

7 Dentre outros alertas, é possível citar o aviso contundente do Ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União, em sua conta pessoal no Twitter (ver em https://bre.is/q9mBEC4r ):

“usar a “regra de ouro” – escrita na Constituição para tempos de normalidade – como pretexto para atrasar a destinação emergencial de renda mínima já aprovada pelo Congresso de R$ 600,00 a idosos, pessoas com deficiência e trabalhadores informais não é simples omissão. É ação. E grave.”

8 Conforme inteiro teor transcrito a seguir:

“Art. 7º São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:

[…] 9 – violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição;

Art. 8º São crimes contra a segurança interna do país:

[…] 7 – permitir, de forma expressa ou tácita, a infração de lei federal de ordem pública;

8 – deixar de tomar, nos prazos fixados, as providências determinadas por lei ou tratado federal e necessário a sua execução e cumprimento.

Art. 9º São crimes de responsabilidade contra a probidade na administração:

1 – omitir ou retardar dolosamente a publicação das leis e resoluções do Poder Legislativo ou dos atos do Poder Executivo;

[…] 3 – não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição;”

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