Opinião

Caos no Judiciário: Uma tragédia anunciada, mas que pode ser evitada

Autor

6 de abril de 2020, 21h05

Uma das maiores preocupações de especialistas e de leigos no contexto de pandemia que vivemos diz respeito à muito provável insuficiência dos recursos hospitalares e médicos para fazer frente ao volume de doentes. Sem que aqui se pretenda estimular a histeria coletiva, mas com o estrito objetivo de refletir para, tanto quanto possível, planejar e superar problemas com serenidade e racionalidade, parece lícito identificar preocupação análoga no que diz respeito aos serviços prestados pelo Poder Judiciário, no futuro próximo.

Assim ocorre porque, não obstante o esforço do Legislativo de editar regras que possam preservar a estabilidade e a segurança das relações jurídicas civis e empresariais, ainda assim é razoável projetar, com base no que a experiência ensina (embora a situação não encontre precedentes na história brasileira recente), que o momento parece mesmo ser propício para um aumento expressivo da judicialização.

Com efeito, entre a norma geral e abstrata, de um lado, e as situações concretas da vida, de outro, vai uma distância importante, em que o juiz pode e deve avaliar a constitucionalidade das regras (e é de esperar que, diante dos interesses contrapostos, alguma discussão dessa natureza surja); deve interpretar a norma à luz dos postulados gerais construídos ao longo de anos pela doutrina e pela jurisprudência; e, mais do que tudo, deve examinar os fatos concretamente postos à luz das regras vigentes.

Portanto, para o bem ou para o mal, a segurança jurídica que razoavelmente se espera num momento como esse virá menos do Legislador e mais dos juízes. Aí parece residir o grande desafio.

Primeiro, dizer que o Judiciário tem a margem de atuação já referida não significa afirmar que ele esteja livre para desconsiderar as regras gerais editadas pelo Legislativo. Neste momento, mais do que nunca, é preciso lembrar que princípios – por mais relevante que seja seu papel no ordenamento – não se sobrepõem a regras estabelecidas pelo Legislador; exceto se essas puderem, como já foi dito, ser tidas como inconstitucionais. Nessa linha de raciocínio, julgamentos por equidade (que não se confunde com igualdade) são e continuam a ser uma exceção no ordenamento jurídico brasileiro (CPC, art. 140, § único).

Num momento como o presente, a experiência sugere que pode surgir a tentação de juízes fazerem sua própria avaliação do que seja razoável e proporcional. Mas, é preciso considerar que o Legislador também faz ponderação de valores quando edita regras gerais e que nem sempre é possível ao Judiciário desconsiderar a escolha feita pelo outro Poder. A ponderação, na esfera do Judiciário, é técnica que se aplica no confronto entre princípios; mas não entre princípio e regra. Pensar diversamente levaria o Judiciário a usurpar – ainda que com a melhor das intenções – uma tarefa que, no Estado de Direito, não lhe cabe.

Portanto, exceto se for possível afirmar a inconstitucionalidade das regras gerais (e, para esse fim, realmente, proporcionalidade e razoabilidade podem ser critérios relevantes, ao lado do exame da necessidade e da adequação, para que se identifique eventual distorção legislativa), convém que o Judiciário paute sua intervenção pelo prestígio às regras e que, tanto quanto possível, evite se substituir ao Legislador; ainda que um ou outro magistrado possa não concordar com as opções que foram feitas.

Neste momento, sem subestimar a elevada capacidade de quem quer que seja, alvitra-se que o Judiciário procure separar o joio do trigo e que identifique as relações jurídicas efetivamente afetadas pela pandemia, assim como a medida dessa afetação. O impacto sobre algumas das atividades econômicas e pessoais é notória; em outras, talvez nem tanto. Eventualmente, será possível identificar setores que estejam (licitamente) ganhando com a crise e a esses agentes não será dado, portanto, colocarem-se na mesma posição daqueles que estejam concretamente sofrendo. Mesmo dentre os que estão ganhando licitamente, talvez seja o caso de se avaliar se não há abuso de direito – figura a ser empregada com cautela. Será preciso, sem paternalismo mas com espírito de justiça, identificar o nexo causal entre os efeitos da pandemia, de um lado, e tal ou qual relação jurídica, de outro; e, a partir daí, saber se – e de que forma – o Judiciário pode e deve intervir. Trata-se de uma difícil missão: nem omissão, nem intervenção além da justa medida, atentando-se às escolhas feitas pelo Legislador.

Segundo, esperar que o Judiciário resolva todas as controvérsias pode ser um equívoco que, especialmente no presente contexto, de grandes proporções e de consequências desastrosas.

Ainda que sob o enfoque econômico possa parecer a alguns dos agentes ser interessante – ou até indispensável – levar desde logo os conflitos à apreciação do Judiciário, o momento, mais do que qualquer outro, exige ponderação; que, em termos concretos, deve se traduzir na prévia e efetiva tentativa de autocomposição, mediante o emprego de técnicas como negociação, conciliação e mediação. Assim ocorre por pelo menos duas razões.

A primeira está em que, num contexto de tamanha complexidade, quanto menor puder ser a intervenção estatal nas relações privadas, tanto melhor para todos os envolvidos. O momento, mais do que nunca, exige cooperação e é imperativo que as partes tentem esgotar todas as alternativas possíveis antes que invoquem a solução adjudicada por um terceiro — juiz ou árbitro.

A segunda está na razão de ser do presente artigo: além da insegurança que possa resultar da edição de decisões eventualmente díspares (porque a uniformidade levará um tempo do qual aparentemente não dispomos), há o problema da insuficiência da máquina judiciária. Por mais que se possa contar com ferramentas eletrônicas, o Judiciário, já assoberbado, tende a não conseguir dar resposta adequada ao volume de demandas, analogamente ao que se tema venha a ocorrer com hospitais e serviços de saúde. E uma eventual frustração de expectativas, nesse particular, tende a ser enormemente negativa para toda a sociedade e para a já combalida economia do país.

Portanto, fica o repto aos profissionais do Direito e em especial aos colegas advogados: que a controvérsia seja levada ao Judiciário, se isso for imprescindível; mas, é dever de todos nós nos empenharmos seriamente na solução, ainda que provisória, das controvérsias mediante alguma forma de consenso.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!