Opinião

Voto de qualidade no Carf: o uso do cachimbo faz a boca torta

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6 de abril de 2020, 20h57

O Parlamento decretou o fim do voto de qualidade no Carf na conversão da MP 899/19. Muitos pedem ao Presidente da República seu veto. Por quê?

Para que todos fiquem na mesma página, o voto de qualidade é o voto de desempate que, no Carf, compete ao presidente de turma, cargo privativo de representantes do Fisco.

Para alguns juristas, razões de ordem técnico-jurídica, do direito constitucional e administrativo, não permitiriam que a revisão do lançamento se desse pela vontade de representantes dos contribuintes; que não seria admissível o in dubio pro contribuinte na instância administrativa.

Certo. Faz sentido. O ato administrativo de lançamento é praticado e revisto em instâncias administrativas e tem presunção de legalidade. Mas há tribunais administrativos, como é o caso do Conselho de Contribuintes do Estado do Rio de Janeiro, em que a presidência das turmas é mesclada entre representantes do Estado e dos contribuintes e a todos os presidentes, independentemente da sua representação, cabe o voto de qualidade. Essa solução equilibrada jamais foi reputada afrontosa ao Direito.

Outros enxergam que em um órgão de representação paritária — resquício ultrapassado da Era Vargas —, a perda do direito de desempate tornaria a fazenda pública refém dos particulares que, “amotinados”, passariam a derrubar todas as autuações fiscais. Seria a “privatização” do Carf.

Mas há tribunais administrativos em que os julgadores são concursados. Muitos deles provenientes igualmente da iniciativa privada, tal qual os representantes dos contribuintes no Carf (que, aliás, estão impedidos de advogar durante o seu mandato). É o que sucede no contencioso administrativo no Estado de Pernambuco. Essa solução equilibrada, que buscou formar julgadores técnicos desvinculados da fazenda estadual, não causou estranheza à comunidade jurídica.

Parece-nos que a questão não está na forma regimental de se decidir o empate. Nem também na composição do órgão. O voto de qualidade existiu durante anos no Conselho de Contribuintes e nunca tinha sido discutido.

O problema está no uso abusivo do voto de qualidade. Como diz o ditado: “O uso do cachimbo faz a boca torta.”

Pressões arrecadatórias na última década levaram à prática concatenada de duas violências contra os contribuintes: (i) a desconstituição de precedentes anteriores do Carf e da CSRF, alguns inclusive sumulados, executada pelo uso, sem parcimônia, do voto de qualidade; e (ii) a perseguição implacável às operações praticadas pelas empresas com o propósito de obtenção de economia fiscal, consideradas como abuso de direito.

No primeiro caso, como as discussões que estavam pacificadas foram revertidas, criaram-se contingências fiscais que hoje se discutem no judiciário, que poderão ser anuladas seja por razões de mérito, seja pelo reconhecimento da aplicação direta do art. 24 da Lindb, ou minimamente desapenadas, posto que praticadas em conformidade com a orientação administrativa em vigor.

No segundo caso, as empresas foram tributadas, multadas de forma acachapante e tratadas como criminosas, porque realizaram operações que tinham motivação fiscal e, as que não tiveram como se render aos Refis da vida, hoje litigam no judiciário, severamente oneradas com o custo de garantir litígios bilionários, provocados por autuações carregadas de ideologia.

A decretação do fim do voto de qualidade pelo Parlamento foi, pois, consequência direta e reta do seu uso abusivo no Carf pela representação da RFB. É até paradoxal que seja agora o Fisco, e não o contribuinte, punido por “abuso de direito”: abuso do direito de uso do voto de qualidade.

Por isso, mais do que brigar pelo direito ao desempate, deveria o Fisco se preocupar com que os julgadores sejam convencidos pela qualidade dos votos e não pelo voto de qualidade.

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