Direito Civil Atual

Responsabilidade civil nos casos de transmissão coletiva do coronavírus

Autores

  • Cícero Dantas Bisneto

    é doutorando em Direito Civil pela USP (Universidade de São Paulo). Mestre em Direito Civil pela UFBA (Universidade Federal da Bahia). Juiz de Direito do TJ-BA (Tribunal de Justiça da Bahia). Membro do Iberc (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil) e da Deutsch-Brasilianischen Juristenvereinigung (DBJV).

  • José Fernando Simão

    é professor associado do departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP livre-docente doutor e mestre em Direito Civil pela mesma faculdade diretor do IBDCONT e vice-presidente do IBDFAMSP.

6 de abril de 2020, 11h48

Dentre a miríade de domínios jurídicos alcançados pelas consequências do espraiamento universal do Covid-191, doença causada pelo coronavírus, certamente a responsabilidade civil, seara ordinariamente atingida pelo desenrolar célere dos acontecimentos sociais, não poderá se furtar a solucionar diversas questões que têm origem na disseminação indiscriminada da carga viral entre parte relevante da população, quando a propagação desta, em determinado seio comunitário, se efetivar pela conduta ilícita de um portador da doença.

Dois casos recentemente noticiados pela imprensa baiana e nacional ilustram com perfeição a complexa problemática da responsabilização civil pelo alastramento do vírus.

No primeiro caso, de grande repercussão, um empresário, mesmo depois de ter supostamente testado positivo ao novo coronavírus, após exames em São Paulo, teria se utilizado de um jatinho particular, juntamente com outros amigos, para se deslocar até Trancoso, no sul da Bahia, a fim de participar de um casamento, no dia 07 de março do corrente ano. Ocorre que alguns convidados do festejo, dentre eles a cantora Preta Gil e a influenciadora Gabriela Pugliesi, acabaram por contrair o vírus, possivelmente em razão do contato direto com o infectado. Ressalte-se que, segundo o Governo do Estado da Bahia, o paciente teria sido advertido da necessidade de permanecer em isolamento, recomendação esta que restou descumprida.

Noutro caso bastante divulgado pela mídia, um médico que atende em clínicas particulares de cinco municípios do Litoral Norte da Bahia (Cardeal da Silva, Entre Rios, Esplanada, Acajutiba e Catu) testou positivo para o Covid-19. Este profissional de saúde teria feito uma viagem para os EUA entre os dias 29 de fevereiro e 08 de março do presente ano e, após o seu retorno, aparentemente apresentando quadro gripal, enquadrando-se, pois, na recomendação do Ministério da Saúde de isolamento por 14 dias, realizado atendimentos, consultando diversos pacientes com os quais, inevitavelmente, teve contato.

Em ambos os casos, a Procuradoria do Estado da Bahia, acatando determinação do governador da Bahia, Rui Costa, representou criminalmente os mencionados indivíduos, em razão da desobediência às medidas de segurança pública estabelecidas, ao colocarem em risco a integridade física das pessoas com quem tiveram contato.

Em que pese o órgão de representação judicial do Estado da Bahia tenha ofertado representação criminal nos casos acima aludidos, a responsabilização penal não aparenta constituir a via mais efetiva para, em concreto, obter a reparação dos danos causados, ou mesmo punir os supostos ofensores2. Além do fato de as penas cominadas no art. 268 do Código Penal brasileiro (detenção, de um mês a um ano, e multa) serem absolutamente insignificantes, faz-se necessário que se demonstre, por se tratar de tipo doloso3, que o agente tenha tido conhecimento da determinação do Poder Público, circunstância esta que nem sempre poderá ser objeto de prova.

A responsabilidade civil4 surge como remédio mais idôneo, neste específico caso, para a reparação adequada5 dos danos sofridos pela coletividade e pelas pessoas efetivamente contaminadas por meio da conduta ilícita dos portadores do vírus. A tutela civil do dano se mostra muito mais efetiva e útil nos casos de transmissão ilícita do vírus do que a simples responsabilização penal, visto que a quantia em pecúnia arbitrada servirá como reparação pelos prejuízos materiais sofridos (como por exemplo, gastos com medicamentos e internação hospitalar, lucros cessantes, dentre outros), além de compensação por eventuais danos extrapatrimoniais experimentados pela vítima.

Algumas interessantes questões, todavia, devem ser enfrentadas de antemão pela doutrina, eis que os tribunais provavelmente irão se defrontar com casos análogos aos ora em debate.

Inicialmente, cumpre averiguar se cabível a condenação dos infratores por dano moral coletivo. Seria possível afirmar que as condutas dos lesantes afetaram bens jurídicos de toda a coletividade ou de determinado grupo específico, e não apenas dos novos infectados? Atentando-se para o fato de que muito possivelmente o vírus fora disseminado para outras pessoas, em razão do convívio social ordinário, e não apenas para aquelas com quem os infectados tiveram contato direto, aparentemente seria possível sustentar a ocorrência de dano moral coletivo. O valor da condenação poderia ser utilizado, caso acolhido este entendimento, no combate à pandemia. Poder-se-ia cogitar ainda da aplicação da tese, originalmente formulada por Antônio Junqueira de Azevedo, da existência de um dano social6.

Questão ainda mais problemática diz respeito à fixação do liame causal entre o comportamento dos infratores e os danos ocasionados, bem assim o estabelecimento das lesões a serem ressarcidas7. Mostra-se extremamente complexa a prova de que a contaminação viral de certo grupo de pessoas acarretou a proliferação do vírus e foi responsável pelo alastramento da doença a um número considerável de indivíduos. Seria possível, a título exemplificativo, responsabilizar o médico que atuava nas cidades do litoral baiano por todas as transmissões ocorridas no território de determinado município, demonstrando-se que este havia sido o primeiro a propagar o vírus (paciente zero)? Sendo duvidosa tal comprovação pelos métodos tradicionais de aferição do nexo de causalidade, poder-se-ia cogitar da utilização de outros critérios de imputação, como o do risco acrescido pela conduta do médico8, especialmente por se tratar de profissional da saúde?

A solução da temática é ainda dificultada pelo acolhimento, no direito brasileiro, segundo parcela doutrinária, da subteoria da necessariedade, construção evolutiva da teoria da causalidade direta e imediata, desenvolvida por Agostinho Alvim9 e aparentemente acolhida pelo STF no julgamento do RE 130.764, julgado em 1992, e que teve como relator o Ministro Moreira Alves. Trata-se, em verdade, de construção teórica que não oferece critérios seguros e objetivos de aplicação10, permitindo a utilização, pelo magistrado, de forma intuitiva, da tese que, escolhida de antemão, melhor atenda à sua percepção pessoal.

A teoria da causalidade adequada11, embora preferível tecnicamente, por consistir em verdadeira teoria da imputação12 (Zurechnung Theorie), tem sofrido severas críticas em razão de sua excessiva abertura, rivalizando, no direito alemão, com o emprego da teoria do escopo de proteção da norma (Schutzzwecktheorie), ora sendo esta última aplicada isoladamente, ora em conjunto com a tese da causa adequada13. Questiona-se, no entanto, se as teorias convencionais da causalidade, isoladamente, podem ser consideradas suficientes a solucionar todos as problemáticas que a vida prática apresenta, ou se outros critérios de imputação podem ser aplicados, a depender das peculiaridades do grupo de casos estudado.

Destaque-se ainda que eventuais pretensões que tenham por desiderato prevenir o contágio ou a transmissão da doença, como, por exemplo, a do afastamento ou isolamento de pessoas, posicionam-se fora do âmbito da responsabilidade civil14. Prevenção e precaução, longe de pertencerem aos domínios da responsabilidade civil15, devem ficar a cargo das instancias talhadas a este desiderato, mediante o fortalecimento dos sistemas de controle administrativo e a utilização de técnicas processuais inibitórias e coletivas adequadas.

Não há falar, assim, em “dano de risco”, na hipótese de determinada pessoa ter tido contato com um indivíduo infectado, sem ter sido alertada, em razão do temor de ser portadora da doença. Tal circunstância, por si só, não caracteriza dano indenizável. Em casos de indivíduos portadores de doenças graves ou de idade avançada, integrantes do grupo de risco letal, o aludido dano decerto não se identifica com o risco, mas advém, neste caso, da violação contundente de direito da personalidade, mais especificamente a integridade psicológica da vítima, não se afigurando necessária a construção de uma responsabilidade ex ante a fim de justificar, na hipótese mencionada, o dever de reparação16.

Vislumbram-se, portanto, diversos problemas teóricos que precisam ser mais bem trabalhados pela doutrina, com o escopo de fornecer substrato técnico às futuras demandas judiciais, que certamente afluirão ao Judiciário, em razão das complexas interações sociais ocasionadas pela pandemia do Covid-19.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA,UFRJ e UFAM).


1 COVID significa Corona Virus Disease (Doença do Coronavírus), enquanto “19” se refere a 2019, quando os primeiros casos em Wuhan, na China, foram divulgados publicamente pelo governo chinês no final de dezembro.

2 A despeito da larga aplicação pela jurisprudência brasileira do instituto da indenização punitiva (punitive damages), certo é que, em se tratando de pena, e não de mera compensação, à semelhança do que ocorre no Direito Penal, exige-se, a luz do quanto estatuído no art. 5°, XXXIX, da CF/88, previa cominação legal da sanção, em atenção ao adágio nulla poena sine lege. O Direito brasileiro, no entanto, não albergou, como regra geral, senão em hipóteses especificas, a função punitiva da responsabilidade civil (ROCHA, Maria Vital da; MENDES, Davi Guimarães. Da indenização punitiva: análise de sua aplicabilidade na ordem jurídica brasileira. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 12, ano 4, p. 211-252. São Paulo: RT, jul.-set. 2017, p. 242-243).

3 MASSON, Cleber. Código Penal Comentado. São Paulo: Método, 2013, p. 268.

4 A propósito, a Portaria Interministerial n° 5, de 2020, de autoria dos Ministérios da Justiça e da Saúde, dispõe, em seu art. 3°, que “o descumprimento das medidas previstas no art. 3° da Lei n. 13.979, de 2020, acarretará a responsabilização civil, administrativa e penal dos agentes infratores”.

5 A utilização do princípio da reparação integral do dano, forjada no âmbito do direito francês, tem sido contestada por parcela da doutrina, especialmente estrangeira: “Full compensation is a myth, or at most a convenient, though often misleading, judicial guideline. To infer from this observation that French courts follow a hidden principle that damages must be apportioned based on the seriousness of the damaging activity may be too much of a stretch” (MORÉTEAU, Olivier. Basic questions of tort law from a French perspective. In: KOZIOL, Helmut (Ed.). Basic Questions of Tort Law from a Comparative Perspective. Wien: Jan Sramek Verlag, 2015, p. 89). Já tivemos a oportunidade de defender que a reparação de lesões imateriais “deve guiar-se pelo princípio da reparação adequada, ofertando ao vitimado uma miríade de soluções, não apenas pecuniárias, com vistas a tutelar, de forma apropriada, os direitos da personalidade atingidos” (DANTAS BISNETO, Cícero. Formas não monetárias de reparação do dano moral: uma análise do dano extrapatrimonial à luz do princípio da reparação adequada. Florianópolis: Tirant Lo Blach, 2019, p. 181).

6 O dano moral coletivo não se confunde com o dano social: “Os danos sociais são lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral – principalmente a respeito da segurança – quanto por diminuição na qualidade de vida. Os danos sociais são causa, pois, de indenização punitiva por dolo ou culpa grave, especialmente, repetimos, se atos que reduzem as condições coletivas de segurança, e de indenização dissuasória, se atos em geral da pessoa jurídica, que trazem uma diminuição do índice de qualidade de vida da população” (AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, ano 5o, n. 19, pp. 211-218, jul./set., 2004).

7 A doutrina tem apontado a dupla função exercida pelo nexo de causalidade, determinando a quem se deve atribuir o resultado danoso e verificando a extensão do dano a se indenizar (TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do direito civil, vol. 4: responsabilidade civil, . p. 85)

8 O critério do risco acrescido é utilizado, por exemplo, como um dos requisitos para a aplicação da “fórmula do desafio” (Herausforderungsformel) nas hipóteses de causalidade psíquica (LANGE, Hermann; SCHIEMANN, Gottfried. Schadenersatz. 3. Auflage. Tübingen: Mohr Siebeck, 2003, p. 133).

9 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. São Paulo: Saraiva, 1995,389-390.

1000 REINIG, Guilherme. REINIG, Guilherme Henrique Lima. A teoria do dano direto e imediato no Direito Civil brasileiro: análise crítica da doutrina e comentários à jurisprudência do STF sobre a responsabilidade civil do Estado por crime praticado por fugitivo. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 12. ano 4. p. 109-163. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2017.

11 “Não existe ‘uma’ teoria da causalidade adequada. Essa circunstância tem provocado diversos problemas na doutrina brasileira que a importou do Direito alemão sem considerar suas diferenciações internas” (RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Nexo causal probabilístico: elementos para a crítica de um conceito. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 8. ano 3. p. 115-137. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2016., p. 130).

12 LARENZ, Karl. Lehrbuch des Schuldrechts: allgemeiner Teil. 14. Auflage. München: Beck, 1987, v. 1, p. 435.

13 DEUTSCH, Erwin; AHRENS, Hans-Jürgen. Deliksrecht. 6. Auflage. München: 2014, Franz Vahlen, 2014, p. 26.

14 Sobre o tema, assim se posicionou Luiz Guilherme Marinoni: O problema da tutela inibitória é a prevenção da prática, da continuação ou da repetição do ilícito, enquanto que o da tutela ressarcitória é saber quem deve suportar o custo do dano, independentemente do fato de o dano ressarcível ter sido produzido ou não com culpa (MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória: individual e coletiva. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 44).

15 CARRÁ, Bruno Leonardo Câmara. Responsabilidade civil sem dano: uma análise crítica: limites epistemológicos a uma responsabilidade civil preventiva ou por simples conduta. Sao Paulo: Atlas, 2015, p. 176-183.

16 Em sentido contrário, tratando das hipóteses de risco de contaminação pelo vírus HIV e entendendo, neste caso, pela existência de um “dano de risco”, cf. LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 139.

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    é juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia; mestre em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP); e membro do IBERC.

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    é advogado; professor associado do Departamento de Direito Civil da Universidade de São Paulo (USP); livre-docente; doutor e mestre em Direito Civil pela USP.

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