Segunda Leitura

A segurança pública não será a mesma depois do coronavírus

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

5 de abril de 2020, 10h12

Spacca
Com a experiência de mais uma semana de recolhimento, vão os brasileiros acostumando-se às restrições impostas pelas autoridades da saúde. Mais rigorosas nos estados mais afetados (e.g., SP), menos temidas naqueles em que os efeitos são menores (e.g., GO, só uma morte), a gripe sinuosa, que atinge as pessoas de formas diversas, do desdém ao pânico.

Em meio à insegurança sobre quais serão as consequências no pós-coronavirus, não apenas em termos de saúde como sociais e econômicos, apenas de uma coisa se tem certeza: o mundo não será o mesmo.

Em termos de instituições, umas mais, outras menos, todas sofrerão o impacto, alterarão práticas centenárias, adaptarão seus orçamentos, reescreverão a sua história. No que toca ao Judiciário, em artigo nesta coluna, finalizei dizendo: “Enfim, aí está um novo mundo que se avizinha e que o Coronavírus teve o importante papel de antecipar”.i

E a Segurança Pública, como ficará? Previsões são voos da imaginação, realizações possíveis das quais não se pode ter certeza, meras probabilidades. É assim que aqui elas são feitas.

O crescimento do uso eletrônico e virtual, é o que mais chama a atenção. E não será propriamente uma novidade. Vejamos um entre tantos exemplos. No Estado de Tocantins, em março de 2018, a Delegacia Regional da Polícia Civil de Paraíso de Tocantins implantou a Central de Boletins de Ocorrências.ii

Em São Paulo, desde 2000 a central da Delegacia Eletrônica atende a população ininterruptamente, possibilitando boletins à distância em 13 espécies de situações. A Delegacia Eletrônica analisa o caso e entra em contato com a vítima por telefone para checar alguma informação ou colher mais dados. Examinados os requisitos (v.g., se não houve decadência do direito), se aprovado, o B.O. será encaminhado ao Distrito Policial da área onde ocorreu o crime, que o investigará.iii

Todos os passos em tal sentido são relevantes. Mas, porque não pensar em uma Delegacia de Polícia Virtual que não apenas selecione os boletins de ocorrência, mas sim faça todo o inquérito policial?

A DPV poderia ser especialiazada e cobrir determinada região, eventualmente, até todo o estado. Imagine-se uma DPV de Crimes de Apropriação Indébita e Estelionato, que não tem características de violência e que reclamam prova técnica. O encaminhamento eletrônico poderia ir do início ao fim, orientando a vítima nas suas ações.

O disque denúncia deverá ser fortalecido. O 190 da Polícia Militar é uma experiência de grande sucesso, está no subconsciente de todas as pessoas e é a primeira reação a quem se sente atacado. Outros podem surgir.

Vejamos o caso da Polícia Ambiental, órgão da PM que atua em quase todos os estados. Prestigiado pela população, o Batalhão da Polícia Militar do Espírito Santo, nos meses de janeiro a maio de 2018, atendeu nada menos do que 1.158 denúncias.iv Ótimo.

Ido além, imagine-se que uma pessoa vê alguém jogando lixo em uma área de preservação ambiental. Tira uma foto com o celular e envia ao órgão ambiental, informando o local. A depender da disponibilidade, o órgão receptor poderá enviar policiais ambientais ao local e autuar a pessoa no ato ou logo após a sua consumação. Isto não é uma quimera, já existe na Polícia Ambiental de São Paulo, que oferece um aplicativo para tal finalidade.v Há sistemas semelhantes no Amazonas (Meu Ambiente) e em Alagoas (IMA Denuncie).vi

Nos inquéritos policiais, a colheita de depoimentos, a depender do nível cultural da localidade e o tipo de crime, também poderá ser feita por meio de videoconferência. O atendimento à população através de aplicativo e de forma virtual (sem prejuízo da presencial em determinados casos), poderá evitar a ida de centenas de pessoas ao prédio da Polícia Civil ou Militar.

O atual isolamento social tem feito que muitas iniciativas estejam sendo aplicadas em unidades policiais, sem mesmo ter havido tempo hábil para preparação. Isso demonstra que é nas dificuldades que as instituições se reinventam. Deixam de lado as objeções dos puristas, que nos seus devaneios acabam não fazendo e nem deixando que os outros façam.

Outro fato decorrente do Coronavirus a alterar comportamentos, será a união de esforços. Com efeito, nestes dias a solidariedade vem se sobressaindo e atores diversos são obrigados a conviver e a se auxiliar reciprocamente.

Vejamos um exemplo a ser pensado. Os órgãos policiais têm enorme carência de peritos e as agências de serviços da administração direta possuem pessoas altamente especializadas que fazem exames na esfera administrativa. Não está na hora de formalizar-se convênios entre tais órgãos e evitar-se anulações de ações penais por ausência de laudo formal?vii

Reuniões virtuais. Na Segurança Pública, tal qual em todas as áreas da administração pública ou da iniciativa privada, é evidente que reuniões serão, na absoluta maioria, virtuais. É mais prático, direto e econômico. As presenciais serão reduzidas aos casos de assuntos reservados ou que suscitem grandes divergências. Um novo delegado regional que queira apresentar-se e conhecer os delegados de sua área, pode preferir uma reunião presencial. Mas, se meses depois, ele tiver que discutir medidas administrativas, por certo optará pelo encontro virtual.

Cursos a policiais são presenciais, à exceção dos dados com sucesso pela SENASP, alcançando pessoas de todo o Brasil. Mas nas Escolas de Polícia Civil e Academias de Polícia Militar, a regra é que sejam presenciais. Por exemplo, o site da Polícia Militar de Minas Gerais, faz referência a vários cursos à distância, todos presenciais.viii É possível que, com o isolamento social atual, centenas de alunos estejam sem aulas.

O maior entrosamento, a assistência recíproca, poderão ensejar maior colaboração entre a polícia dos 26 estados e do distrito federal. O que há poucos anos era um nada, com disputas inúteis e desconfianças recíprocas, melhorou muito com a criação da Secretaria de Operações Integradas junto ao MJSP, que vem promovendo trabalho integrado de grande sucesso.ix Em verdade, é preciso fortalecer no âmbito federal e nos estados, a atuação conjunta, coordenada, sistêmica e integrada dos órgãos de segurança pública e defesa social, meta perseguida no art. 1ª da Lei 13.675/18.

Registre-se que tal prática é comum na União Europeia, onde o “o Serviço Europeu de Polícia (Europol) tem como missão contribuir para uma Europa mais segura, prestando assistência às autoridades responsáveis por garantir o cumprimento da lei nos países da EU”.x

Mas é preciso a população colaborar. No Rio Grande do Sul, onde a Delegacia Online existe desde 2002, campanha de utilização dos seus serviços foi divulgada em agosto de 2019, porque apenas 15% da população que desejava registrar perda de documentos estava fazendo-o via internet.xi Como é óbvio, se o serviço for oferecido e a sociedade não o prestigiar, o esforço da administração terá sido em vão.

Em suma, aí está um novo tempo. A criatividade dos brasileiros, a incrível evolução dos serviços eletrônicos e o profissionalismo dos agentes da segurança pública saberão adequá-los à nossa realidade. Em frente.

PS. Agradeço, pelas informações fornecidas, ao Secretário Nacional de Operações Integradas, Rosalvo Ferreira Franco, e aos Delegados da Polícia Civil, Rubens Almeida Passos de Freitas e Adriano Bini (SC) e Francisco Sannini (SP).


i FREITAS, Vladimir Passos de. O Judiciário não será o mesmo depois do coronavírus. Revista eletrônica Consultor Jurídico, “Segunda Leitura”, 29/3/2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mar-29/segunda-leitura-judiciario-nao-mesmo-depois-coronavirus. Acesso em 1/4/2020.

ii Disponível em: http://surgiu.com.br/2018/03/01/policia-civil-implanta-central-de-boletins-de-ocorrencia-em-paraiso-to/. Acesso em 3/4/2020.

iii Disponível em: https://www.ssp.sp.gov.br/acoes/leAcoes.aspx?id=33364. Acesso em 2/4/2020.

iv Disponível em: https://pm.es.gov.br/batalhao-de-policia-ambiental-recebe-1158-den. Acesso em 2/4/2020.

v Disponível em: http://www.ambiente.sp.gov.br/aplicativos/). Acesso em 2/4/2020.

vi Disponível em: https://www.boletimambiental.com.br/noticia/2017-07-06/aplicativos-contra-os-crimes-ambientais/. Acesso em 4/4/2020.

vii STJ, ARESP 1571857, Rel. Min. Reynaldo Fonseca. Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=AREsp%201571857. Acesso 3/4/2020.

viii Disponível em: https://www.policiamilitar.mg.gov.br/portal-pm/apm/principal.action. Acesso em 3/4/2020.

ix Disponível em: https://www.justica.gov.br/agendas/secretaria-de-operacoes-integradas. Acesso em 3/4/2020.

x União Europeia. Serviço Europeu de Polícia (EUROPOL). Disponível em: https://europa.eu/european-union/about-eu/agencies/europol_pt. Acesso em 2/4/2020.

xi Disponível em: https://ssp.rs.gov.br/policia-civil-lanca-campanha-para-estimular-uso-da-delegacia-online. Acesso em 3/4/2020.

Autores

  • é secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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