Opinião

Reflexos da supressio e da surrectio nos acordos de colaboração e não persecução

Autores

  • Álvaro Guilherme de Oliveira Chaves

    é sócio do escritório Almeida Castro Castro e Turbay Advogados Associados mestre em Direito Estado e Constituição pela Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília) pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pelo IDP e em Compliance e Governança pela UnB. Bacharel em Direito pela UnB.

  • Marcelo Turbay Freiria

    é sócio do escritório Almeida Castro Castro e Turbay Advogados Associados mestre em Direito pelo IDP pós-graduado pela Universidade de Coimbra (Portugal) professor da UnB (Universidade de Brasília) presidente da Comissão de Investigação Defensiva do Conselho Federal da OAB.

5 de abril de 2020, 14h43

Nos últimos anos, as formas consensuais de resolução de persecuções criminais ganharam espaço no ordenamento jurídico brasileiro e no debate público. Para além dos já tradicionais institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, viu-se a colaboração premiada ser largamente utilizada em diversas investigações, principalmente a partir do detalhamento do instituto na Lei n. 12.850/13.

Sua natureza de negócio jurídico processual foi inicialmente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no bojo do habeas corpus n. 127.4831 e posteriormente positivada pela Lei n. 13.964/19, que incluiu o artigo 3-A na Lei n. 12.850/132.

Por sua vez, a crescente preocupação com a morosidade do Poder Judiciário e com a quantidade de processos levados a julgamento por cada magistrado fomentou discussões sobre a introdução de espécies de plea bargain no Brasil. O argumento central dos defensores desses mecanismos é a suposta racionalização do sistema de justiça criminal.

Dessa forma, em 2019, o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, apresentou anteprojeto de lei denominado “anticrime”, propondo duas alterações legislativas com intuito de disciplinar novas hipóteses de negócios jurídicos no âmbito processual penal, quais sejam, o acordo de não persecução penal e a avença para aplicação imediata da pena após o recebimento de denúncia, o que alegadamente descongestionaria os serviços judiciários.

Após o indispensável trâmite no Congresso Nacional, foi aprovada pelas casas legislativas e depois sancionada pelo Presidente da República a Lei n. 13.964/19, que implementou o acordo de não persecução penal, com a inclusão do artigo 28-A e parágrafos no Código de Processo Penal. Conforme Mauro Fonseca Andrade e Rodrigo Brandalise, essa hipótese de avença situa-se no momento posterior à finalização de determinada investigação criminal, consistindo na possibilidade de o membro do Ministério Público não oferecer a ação penal pública mediante a formalização de um acordo com a pessoa investigada3.

Em contrapartida, nos termos do novo artigo 28-A do CPP, o investigado fica sujeito ao cumprimento das seguintes condições, que podem ser ajustadas cumulativa ou alternativamente: a) reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; b) renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; c) prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); d) pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou e) cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

A relevância do instituto para o sistema de justiça criminal pode ser facilmente constatada nas estatísticas divulgadas recentemente pelo Ministério Público Federal. Segundo o levantamento da Segunda Câmara de Coordenação e Revisão, de 23 de janeiro de 2020 (data em que a lei “anticrime” entrou em vigor) a 16 de março de 2020, somente o MPF firmou 1.043 acordos de não persecução penal4.

Em suma, os mecanismos de resolução consensual dos litígios penais estão ocupando relevante espaço na prática judicial brasileira. Nesse contexto, merece reflexão mais detalhada a relação entre o princípio da boa-fé e as obrigações assumidas pelos investigados.

Isso porque a pessoa investigada ou processada pode assumir – inclusive, cumulativamente – diversas obrigações a título de contraprestação no negócio jurídico firmado com o Ministério Público, as quais nem sempre estão previstas legalmente.

Por seu turno, o eventual descumprimento de uma determinada obrigação por parte do investigado poderá acarretar a desconstituição do negócio jurídico, sem prejuízo de outras consequências negativas, como se observa do disposto no art. 28-A, § § 10º e 11º , do CPP.

Nessa quadra, mostra-se indispensável o seguinte questionamento: a não observância pelo investigado de uma determinada obrigação estipulada no acordo implica necessariamente o seu descumprimento? Em nosso entender, não, haja vista a imprescindível observância do princípio da boa-fé objetiva nos negócios jurídicos.

Especificamente sobre a colaboração premiada, o Ministro Nefi Cordeiro destaca que “é negócio jurídico estatal e, como tal, rege-se pelos princípios constitucionais da Administração Pública, pelos princípios do processo penal, pela legislação penal e processual penal, pelas regras do direito civil de negócios jurídicos e do contrato administrativo”5. Por também possuir a mencionada natureza, os acordos de não persecução penal devem seguir o mesmo regramento.

Ou seja, as disposições de direito civil sobre os negócios jurídicos são plenamente aplicáveis aos acordos de colaboração premiada e de não persecução penal, em virtude da natureza jurídica desses institutos.

Dessa forma, a interpretação dos negócios jurídicos segundo a boa-fé encontra-se prevista no artigo 113 do Código Civil, tendo o legislador também destacado que a “interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio” (art. 113, § 1º , I, do Código Civil).

Tal previsão legal está intimamente relacionada a dois deveres anexos decorrentes da boa-fé objetiva, a saber, supressio e surrectio. A primeira se refere à supressão de determinada posição jurídica em razão da ausência do exercício do direito em um certo espaço de tempo. A surrectio é o contrário da supressio, de modo que, com a ocorrência desta, é gerado direito para a parte contrária.

De forma sintética, a supressio é caracterizada por três requisitos: (i) a omissão do titular do direito em exigi-lo; (ii) essa omissão é reiterada por tempo relevante e, (iii) com isso, há quebra de expectativa e da confiança da outra parte ao ser exigida por obrigação que nunca antes foi exercida.

Nas palavras do Ministro Ricardo Cueva, “segundo o instituto da supressio, o não exercício de direito por seu titular, no curso da relação contratual, gera a outra parte, em virtude do princípio da boa-fé objetiva, a legitima expectativa de que não mais se mostrava sujeito ao cumprimento da obrigação, presente a possível deslealdade no seu exercício posterior”6.

Nessa sorte, no âmbito da colaboração premiada ou do acordo de não persecução penal, se não exercida a cobrança de certa obrigação por qualquer das partes signatárias do negócio jurídico em relevante extensão temporal, perde-se esse direito de exigência e a parte contrária, por sua vez, adquire o direito de não ser exigida por aquilo que nunca fora antes cobrada, em estrita observância do princípio da boa-fé objetiva.

Com intuito de tornar mais concreto o posicionamento aqui esposado, alguns exemplos podem ser esclarecedores.

Situação A7: O investigado celebra acordo de não persecução penal com o Ministério Público e são fixadas, de forma cumulativa, as seguintes condições: 1) o pagamento de R$ 10.000,00, no prazo de 10 (dez) dias úteis após a ciência da homologação e 2) prestação de serviço semanal a entidades públicas pelo prazo de 2 (dois) anos.

Logo de início, houve o pagamento no prazo avençado e a carga horária dos serviços estava sendo cumprida em duas instituições designadas pelo juízo, as quais também foram sugeridas pelo Ministério Público quando da celebração do acordo. Ocorre que, no curso da prestação de serviços, uma das instituições suspendeu suas atividades. Ato contínuo, o investigado informou tal situação nos autos e passou a cumprir apenas a carga horária anteriormente destinada à instituição que estava em pleno funcionamento. Diante desse fato novo, o juízo competente intimou o Ministério Público para se manifestar no prazo de 5 (cinco) dias. Ausente qualquer manifestação do MP por considerável lapso de tempo e se aproximando o final do prazo de 2 (dois) anos fixado no acordo, o juízo determinou nova intimação do órgão de acusação.

Nessa oportunidade, o Ministério Público, que não havia se manifestado sobre a suspensão das atividades de uma das instituições, requereu a rescisão do acordo, com fundamento no art. 28-A, § 10, do CPP, ao argumento de descumprimento das obrigações contratuais. Contudo, entendemos que o hipotético pleito do Ministério Público não poderia ser acolhido, caso contrário haveria violação ao princípio da boa-fé, notadamente do dever anexo da supressio.

Situação B: o investigado firma acordo de colaboração premiada com o Ministério Público, assumindo obrigação de apresentar, no prazo de 30 (trinta) dias, informações mais detalhadas sobre os delatados (x) e (y). Tal prazo é prorrogado a pedido do colaborador por mais 30 (trinta) dias, mas os dados adicionais não foram apresentados. Nos 4 (quatro) meses seguintes, o colaborador presta semanalmente diversos depoimentos ao MP sobre outras pessoas delatadas, sem que houvesse qualquer cobrança das mencionadas informações pormenorizadas em relação aos delatados (x) e (y).

No 6º mês após o esgotamento da prorrogação do prazo, a partir do arcabouço informativo já apresentado pelo colaborador quando da celebração da avença, o Ministério Público oferece denúncia contra os dois delatados (x) e (y) e o colaborador. Mais uma vez, não há cobrança acerca da mencionada obrigação do colaborador.

No final do 10º mês, o MP apresenta pedido de rescisão do acordo, alegando o descumprimento da cláusula contratual relativa à obrigação de o colaborar apresentar informações mais detalhadas sobre os dois delatados mencionados. Pelas razões aqui esposadas, acreditamos que o hipotético pleito ministerial iria de encontro ao princípio da boa-fé objetiva e ao seus deveres anexos, os quais são de observância obrigatória nos negócios jurídicos. A hipótese, mais uma vez, é de supressio.

Bem se vê, portanto, que a resposta da questão formulada perpassa a análise do comportamento das partes após a celebração do acordo, seja ele de colaboração ou de não persecução penal, de sorte que eventual inobservância de determinada obrigação pelo investigado não poderá ser automaticamente tida como descumprimento da avença.

A bem da verdade, sob a ótica proposta neste artigo, qualquer conclusão sobre o inadimplemento do acordo8 deve observar se o Ministério Público, em interregno considerável e tendo a oportunidade de se manifestar, deixou de exigir o cumprimento da cláusula contratual objeto de discussão, haja vista a possibilidade de redução do conteúdo obrigacional pela inercia qualificada da parte, o que faria operar o instituto da supressio.


1 HC 127483, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/08/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-021 DIVULG 03-02-2016 PUBLIC 04-02-2016

2 Art. 3º-A. O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos.

3 ANDRADE, Mauro Fonseca; BRANDALISE, Rodrigo da Silva. Observações preliminares sobre o acordo de não persecução penal: da inconstitucionalidade à inconsistência argumentativa. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 37, p. 239-262, dez. 2017.

4 http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/mpf-celebra-mais-de-2-mil-acordos-de-nao-persecucao-penal

5 CORDEIRO, Nefi. Colaboração Premiada: caracteres, limites e controles. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 57.

6 REsp 1374830/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 23/06/2015, DJe 03/08/2015.

7 Foram utilizados como parâmetros os modelos de ANPP’s disponibilizados na rede mundial de computadores pelo Ministério Público do Estado do Espírito Santo e pelo Ministério Público do Estado do Piauí. Embora sejam fundamentados na Resolução n. 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, alterada pela Resolução n. 183/2018, a semelhança desses atos com a redação do artigo 28-A do CPP viabiliza essa utilização. Disponíveis em: https://www.mpes.mp.br/Arquivos/Anexos/6d792bb3-ddfe-4bd8-ab41-cc914591324e.pdf e https://www.mppi.mp.br/internet/index.php?option=com_phocadownload&view=category&id=2603:anpp&Itemid=132.

8 Sobre o assunto, não é despiciendo salientar que, dependendo do quadro fático, das cláusulas contratuais e da alegação de descumprimento, será indispensável a abertura de instrução processual incidental, nos moldes do decidido pelo Supremo Tribunal Federal na PET n. 7003/DF, em homenagem ao contraditório, à ampla defesa e à segurança jurídica.

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    é advogado do escritório Almeida Castro Advogados, coordenador-adjunto do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) no Distrito Federal, mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade Brasília (UnB), cursa MBA em Compliance e Governança pela UnB, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e bacharel em Direito pela UnB.

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    é sócio do escritório Almeida Castro Advogados, conselheiro seccional e presidente da Comissão de Direito de Defesa da OAB/DF, Mestre em Direito e professor de Direito Penal do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), especialista em Direito Penal Econômico Europeu pela Universidade de Coimbra/PT e em Direito Penal e Compliance pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu, além de Secretário Geral do Instituto de Garantias Penais (IGP-DF) e bacharel em Direito pela UnB.

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