Estado da Economia

A proposta de "regime concorrencial" do PL 1.179 e o mercado que não se socorrerá

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5 de abril de 2020, 8h00

Aprovado dia 3 de abril no Senado, o Projeto de Lei n.º 1179/2020 dispõe a respeito do ‘Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (COVID-19)”. Dentre outros pontos, o PL 1179/2020 propõe alterações específicas sobre o ‘regime concorrencial’ brasileiro, conforme segue:

Art. 21. Fica suspensa até 31 de outubro de 2020 a aplicação dos incisos XV e XVII do § 3º do art. 36 e do inciso IV do art. 90 da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011.

Parágrafo único. As demais infrações previstas no art. 36 da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, quando apreciadas pelo órgão competente, se praticadas a partir de 20 de março de 2020, deverão considerar as circunstâncias extraordinárias decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19)”

A redação legal proposta possui três eixos de alterações: (i) um especificamente relacionado às práticas previstas nos incisos XV e XVII, do § 3.º do artigo 36 – controle de condutas –; (ii) outro vinculado a consideração de ato de contrato associativo de joint venturescontrole de estruturas –; e, finalmente, (iii) um terceiro eixo que cria uma espécie de gateway interpretativo acerca das demais condutas previstas no art. 36 e seus incisos.

O eixo inicial tenciona isentar objetivamente as práticas de vender mercadoria ou prestar serviços injustificadamente abaixo do preço de custo” e de “cessar parcial ou totalmente as atividades da empresa sem justa causa comprovada”. Num quadro de normalidade de mercado, ambas as práticas, caso perpetradas, podem prejudicar diretamente a ordem econômica, gerando reflexos diretos e imediatos para os consumidores.

A primeira hipótese diz respeito à conduta de preço predatório. Por meio dela, os agentes econômicos comercializam os seus produtos num valor abaixo dos custos de produção, tendo como objetivo a eliminação de concorrentes para, posteriormente, explorar o poder de mercado conquistado. Regra geral, diante da dificuldade de comprovação da ilicitude dessa prática, a autoridade concorrencial a investiga considerando a racionalidade econômica correlata ao caso. Isto é, somente a partir de uma verificação detalhada de preço, custos de produção e outras condições de mercado é que o Cade determina se o caso trata de preço predatório ou, eventualmente, de reflexo da eficiência da empresa investigada ou da concorrência.

A outra conduta destacada – cessar parcial ou totalmente as atividades da empresa sem justa causa comprovada – tem sua ilicitude atrelada à configuração de “abuso de poder dominante”. É dizer, abuso dos controladores que podem exigir o fechamento de empresa próspera, trazendo efeitos negativos para uma série de interessados. Tal conduta, é verdade, não costuma ser objeto de investigação do CADE. Em momentos de crise, no entanto, o cenário muda. Aqui, quer-se chamar a atenção para o encerramento injustificado de empresas cuja atividade econômica possa estar direta ou indiretamente vinculada ao interesse público.

Conforme ensina a melhor doutrina, poder de controle não se confunde com propriedade. Quando os bens de produção acham-se incorporados a uma exploração empresarial, o controle sobre eles passa a configurar um poder-dever positivo, exercido no interesse da coletividade, e inconfundível, como tal, com as restrições tradicionais ao uso de bens próprios1. Em linhas gerais, o ato ilícito do controlador não pode prevalecer sobre o interesse público de manutenção da atividade empresarial da companhia. Retirar a fiscalização do CADE a respeito dessa conduta, diante disso, pode significar subversão expressa do disposto nos artigos 116, parágrafo único, e 117, ‘a’, da Lei de Sociedade Anônimas, bem como do art. 170, III, da Constituição Federal.

No segundo eixo de alterações, o PL 1179/2020 propõe suspender a submissão de alguns atos de concentração [contratos associativos, de consórcio ou joint venture] à análise do Cade, conforme prevê o art. 88 da Lei de Defesa da Concorrência. O objetivo da lei é que a autoridade reguladora avalie os efeitos de mercado de tais concentrações, podendo vetá-las ou, quando possível, sugerir soluções que minimizem eventuais efeitos negativos daí advindos para o mercado (‘remédios antitruste’).

Usualmente, tais atos têm por objetivo a pesquisa e o desenvolvimento de novos produtos ou serviços, bem como a atuação em novos mercados, distintos daqueles que as empresas individualmente atuam (os consórcios de infraestrutura são o grande exemplo). A partir de tais associações pode existir, inclusive, considerável troca de tecnologia e expertise, razão pela qual, as análises de concentração realizadas pelo Conselho de Defesa Econômica costumam envolver acentuada complexidade.

Dentre outros pontos, a autoridade reguladora avalia: o mercado relevante correlato, a parcela de mercado que as empresas detêm no mercado relevante, a substituibilidade dos produtos comercializados, as eventuais barreiras de entrada que possam ser criadas e a rivalidade. O que torna tais atos de concentração (i)lícitos, portanto, não é a sua ‘realização em si’, mas os efeitos que as associações eventualmente podem ter no mercado. Desse modo, a redação dada pelo PL em análise é altamente questionável. Com sua aprovação, corre-se o risco de tirar do radar do CADE concentrações em setores essenciais, cujos efeitos negativos podem ser perpetrados por décadas, impedindo que o Conselho sugira remédios essenciais para o desenvolvimento econômico nacional.

O terceiro eixo de modificações trazido pelo PL 1179/2020, embora mais subjetivo, não deixa de ser complexo. Isso porque ele tem influência direta nas metodologias que o CADE adota para analisar o controle de condutas (‘regra per se’ e ‘regra da razão’). As práticas previstas no art. 36 da Lei de Concorrência e seus incisos dizem respeito a condutas dos agentes de mercado que podem ser realizadas individualmente/unilateralmente ou entre concorrentes. Na análise das condutas entre concorrentes (formação de cartel), o Cade segue a regra geral de que elas caracterizam ilícitos per se. Isto é, são ilícitas pelo seu próprio objeto, independentemente dos efeitos que podem gerar. As demais condutas, como o acordo de exclusividade, por exemplo, não caracterizam ilícito per se, exigindo que a autoridade antitruste utilize metodologia distinta para avaliar a sua ilicitude.

Ao propor que o Cade deve “considerar as circunstâncias extraordinárias decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19)¸ dentre outros efeitos, o PL 1179/2020 abre uma espécie de gateway, uma válvula de escape para a caracterização de cartel de crise. Embora ao redor do mundo referida prática seja mais comum, a verdade é que a recepção dessa figura pelo ordenamento jurídico brasileiro é duvidosa. Tampouco a jurisprudência do Cade pode auxiliar nesse sentido. As práticas adotadas pelos agentes de mercado para conter os efeitos resultantes da crise de 2008, por exemplo, não foram ignoradas.

Caso o cartel de crise ganhe protagonismo no atual cenário, o caminho para avaliar a sua licitude deve ser outro, com orientação da autoridade reguladora e atenção para que os acordos contribuam estrategicamente para o prosseguimento do processo econômico, prevenindo, com isso, o abuso. A hipótese exige estruturação conjunta com outros setores do Governo, no sentido de decidir quando intervir, permitir ou mesmo encorajar a formação do cartel de crise. Em outras palavras, a razoabilidade econômica do acordo tem que ser construída e induzida para os interesses nacionais.

A proposta do PL 1179/2020 não vai proteger o mercado. Tampouco ela pode ser vista como instrumento apto para ‘socorrer’ as empresas ou mesmo sanar eventuais vícios que a análise concorrencial do CADE possa ter no período de crise. Vícios estes que, aliás, não estão claros na exposição de motivos da lei ou sequer são presumíveis da realidade. Tal como posta, a redação tem mais potencial de gerar incerteza e desorganização do que segurança jurídica. A legislação em vigor já confere ao CADE mecanismos para que ele, se for o caso, relativize o padrão de suas análises e/ou oriente melhores práticas de mercado. O momento é de fortalecimento do Estado e do papel ativo da autoridade de defesa da concorrência, não de esvaziamento de suas funções.


1 Nesse sentido ver, especialmente, COMPARATO, Fabio Konder. Função Social da Propriedade e dos Bens de Produção. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro nº 63, julho/setembro de 1986, pp. 71-79; e BERCOVICI, Gilberto. Propriedade que descumpre função social não tem proteção constitucional, publicado aqui: https://www.conjur.com.br/2015-dez-06/estado-economia-propriedade-nao-cumpre-funcao-social-nao-protecao-constitucional

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