Embargos culturais

O Decamerão de Giovanni Boccaccio e a tragédia em forma de novela

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

5 de abril de 2020, 8h00

Spacca
Ao longo da peste que dizimou Florença, no século XIV, dez jovens inspirados e criativos deixaram a cidade, isolando-se em um palácio, no qual passaram um tempo incontável objetivamente, referenciado por “dez jornadas”. Fugiram da realidade, como forma de sobrevivência. Esse tempo poderia ser figurativamente uma representação ideal de “dez dias”, de onde o título desse livro atemporal. “Decamerão” é neologismo, com origem na língua grega: deca (dez) e merón (dias)1.

Com a intenção de passarem as horas, do modo menos angustiante possível, dividem a responsabilidade de narrarem estórias. É como escaparam do destino. Em cada jornada apresentam dez narrativas. Ao fim, o leitor tem uma centena de deliciosos pequenos contos, cheios de ironia, de sensualismo, de anticlericalismo. São narrativas irreverentes. Há uma obsessão com amantes, traições, com embustes vários. Extrai-se das linhas gerais desses contos uma visão de vida e de (in)justiça, cética e realista, e ao mesmo tempo confiante no fim da tragédia. Pequenas estórias que divertem enquanto afastam o medo.

São narrativas primorosas. O autor, Giovanni Boccaccio (1313-1375) é ao lado de Dante Alighieri e de Francesco Petrarca um dos pais fundadores da língua italiana moderna. Ainda que conhecessem o latim, expressavam-se e escreviam em dialeto toscano, variante de um latim vulgar falado em Florença que se sobrepôs na Itália toda, como uma língua culta. Acrescentaria Nicolau Maquiavel.

Algumas narrativas anunciam o surrealismo das pinturas de Jeronimus Bosch (1450-1516) e, no século XX, o manifesto de André Breton, a paleta de Salvador Dalí e o cinema de Luis Bunuel. Há uma novela que descreve feitiço feito por um homem, transformando sua mulher em uma égua. Quando está a ponto de aplicar a cauda um compadre, afirmando que não deseja ver uma cauda na esposa do amigo, arruína o efeito de todo o feitiço. Em outro conto, uma senhora, amada, ao mesmo tempo, por dois homens, mas não tendo amor a nenhum deles, ordena que um deles, fingindo-se de morto, entre em uma sepultura. Pede que o outro vá lá retirá-lo. Ela se livra dos dois…

Em outra novela, três rapazes tiram as calças de um juiz, enquanto ele, na tribuna, expunha sua decisão. Derruba-se a seriedade da autoridade. Há também narrativas que retomam lugares-comuns. Dois homens amam uma mesma mulher. Prometem que o que morrer primeiro volta em sonho para contar como é a vida no além. Em outra, um sujeito ciumento, disfarçado de padre, recebe a confissão da própria esposa. Ela confessa que está apaixonada por um padre que a visita todas as noites.

Um marido tranca a porta da casa e deixa a esposa para fora. Não conseguindo entrar, a esposa faz um barulho fingindo ter se jogado no poço. O marido corre até o poço. A esposa entra em casa e tranca a porta. Em outra narrativa, a mulher de um médico coloca o amante em uma arca, supondo que estava morto. A arca foi roubada por dois agiotas. O amante acorda, havia tomado ópio, e é preso como ladrão e condenado à forca. A empregada da senhora revela o que ocorreu, o amante livrou-se da forca e os agiotas foram condenados a pagar uma multa em dinheiro. Um senhor deu de comer, à esposa, o coração de um homem que matou, e que era amante da esposa. Sabendo do fato a mulher suicidou-se, jogando-se de uma janela. Em seguida, foi enterrada ao lado do amante.

Há nessas narrativas a lembrança da irrelevância de problemas que em tempos comuns são considerados sérios e intransponíveis. Tudo é objeto de escárnio. Os personagens insinuam que, com o fim da peste, serão pessoas melhores, mais humanas e que terão cuidado para com o próximo. Duvido. Passado o perigo, retoma-se a vida, com todas as suas injustiças e inverdades. A peste de Florença não melhorou os florentinos, bem como todas as pestes e desgraças não tornaram o mundo um mundo melhor e mais justo. A memória histórica é frágil.

Tudo é muito passageiro. Passado o perigo, esquece-se que houve perigo. Ruy Castro, nas primeiras páginas de seu último livro, sobre o Rio de Janeiro do início do século XX, conta-nos com riqueza de pormenor a destruição causada pela gripe espanhola. Até o presidente da República, Rodrigues Alves, morreu daquela gripe, em janeiro de 1919. O carnaval seguiu a tragédia, não obstante tantas mortes. A vida continuou. Passada a tragédia, o mundo persistiu (e persistirá) como sempre foi. Não nos iludamos. O homem é o lobo do homem.


1 Dedico esse pequeno ensaio ao meu amigo Alberto Vespasiani, professor em Roma, a maior autoridade em Giovanni Boccaccio no campo de estudos de direito e literatura. Nos encontraríamos em evento acadêmico no mês que vem.

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