Opinião

O direito ao erro do administrador público e a Covid-19 em contextos de emergência

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4 de abril de 2020, 12h36

O gestor público está permanentemente sujeito a erros. Como todo ser humano, nem sempre compreende a realidade da forma como ela realmente é. Não raro, os pressupostos de fato e de direito para a atuação administrativa são percebidos por ele de maneira distorcida ou equivocada.

Além de comum, o erro do gestor público é, em alguma medida, inevitável. A complexidade das escolhas realizadas, a presença de riscos e incertezas, bem como as limitações da racionalidade humana fazem com que certos equívocos sejam inevitáveis. Embora seja possível reduzir a ocorrência de vícios no processo decisório do gestor, é inviável excluí-los de maneira absoluta.

O ordenamento jurídico brasileiro, diante disso, garante ao administrador a existência de um espaço de tolerância ao cometimento de equívocos. Por imposição constitucional, sua responsabilidade pessoal tem caráter necessariamente subjetivo, de modo que, ao menos nos casos de equívocos inevitáveis, não decorrentes de um comportamento culposo ou doloso, não será possível sua punição. Além disso, o princípio da eficiência demonstra que uma absoluta intolerância jurídica ao erro ocasionaria sérios prejuízos à inovação e à adequada administração de riscos na Administração Pública, além do afastamento de bons quadros para os cargos públicos de gestão.

O artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, por sua vez, além de reconhecer de forma expressa a existência de um espaço de tolerância ao erro, incrementou o grau de culpa exigido do administrador para que seja possível sua responsabilização pessoal. Apenas erros de natureza grosseira demandam sua sanção ou o ressarcimento por eventuais prejuízos causados ao erário.

Mas como os órgãos de controle podem diferenciar erros grosseiros (passíveis de responsabilização pessoal) de erros honestos e escusáveis? Como separar o joio do trigo em um contexto de crise, em especial de emergência sanitária decorrente da pandemia do novo coronavírus?

Entre os parâmetros úteis à diferenciação entre erros sujeitos ou não à responsabilização pessoal, a urgência da decisão administrativa parece ser o standard de mais evidente incidência no cenário atual. Segundo ele, quanto mais imediata é a solução requisitada do administrador, menor é o nível de diligência exigido e maior é o espaço de tolerância ao erro.

O parâmetro se justifica na medida em que questões emergenciais, como aquelas relacionadas ao combate ao novo coronavírus, demandam escolhas administrativas rápidas e, em regra, menos diligentes e refletidas. Em condições normais, são necessárias semanas ou até meses para que o administrador realize pesquisas de preço a respeito do bem, serviço ou obra que deseja contratar, solicite e aguarde a elaboração de estudos jurídicos e técnicos a respeito de matérias complexas e reúna outros documentos e dados pertinentes ao seu processo decisório. Em um cenário de calamidade pública, muitas vezes nada disso é possível.

Ocorre que a incidência de erros tende a ser maior quanto mais célere e desinformada for a decisão. A ausência de dados relevantes e a impossibilidade de reflexões mais profundas a respeito do problema e de alternativas de solução tendem a gerar equívocos. Por outro lado, o tempo necessário para coletar mais dados pode atrasar a ação estatal e gerar ainda mais prejuízos à coletividade. Desse modo, a maior tolerância ao cometimento de erros em um contexto de crise é justificada pela necessária agilidade da decisão.

O contexto de pandemia, no entanto, não necessariamente isentará o administrador que tenha sido pouco diligente e, por esse motivo, tenha incorrido em erro no exercício de suas funções. É preciso analisar o caso concreto.

Há decisões administrativas tomadas em tempos de pandemia que em nada se relacionam com a emergência e que, em regra, não estarão sujeitas ao parâmetro. Mesmo decisões pertinentes ao combate ao novo coronavírus obedecem a diferentes níveis de urgência, o que influenciará de maneira inversamente proporcional o grau de diligência exigido. Há, por exemplo, um notável descompasso entre a emergência envolvida na compra de máscaras, respiradores e outros insumos hospitalares para auxiliar os profissionais de saúde no tratamento de pessoas infectadas e aquela relacionada à aquisição de materiais de escritórios para a assessoria jurídica de uma secretaria de saúde.

Além disso, outros parâmetros de responsabilização do gestor por equívocos cometidos poderão ser aplicados. Importante standard em tempos de emergência sanitária é o grau de aderência da escolha realizada em relação aos dados técnicos eventualmente disponíveis e coletados pelo administrador. Quanto menos coerente for a decisão do administrador público em relação às informações científicas a que tiver acesso, menor também deverá ser o espaço de tolerância ao cometimento de equívocos.

Exemplo recente foi o veto imposto pelo Supremo Tribunal Federal à veiculação de campanha publicitária pela União que, em meio à pandemia, incentivava a flexibilização de medidas de distanciamento social recomendadas pela comunidade científica internacional, pela Organização Mundial da Saúde, pelo Conselho Federal de Medicina e pelo próprio Ministério da Saúde. A proibição se deu por meio da concessão de medida cautelar na ADPF nº 669/DF, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso.

É certo que as decisões tomadas pelos gestores para enfrentar esta pandemia serão submetidas ao escrutínio dos órgãos de controle. No futuro, ao avaliarem a responsabilidade pessoal do administrador público em razão de eventuais equívocos cometidos em tempos de pandemia, será necessária uma análise retrospectiva por parte dos controladores, que leve em conta o cenário de urgência em que as decisões foram tomadas. O contexto emergencial não necessariamente isentará gestores de responsabilidade, mas certamente deverá ser tomado em consideração.  

 

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