Opinião

Justiça nos tempos da pandemia

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4 de abril de 2020, 15h02

A pandemia do coronavírus alterou a rotina de todos nós, desde profissionais da saúde, que passaram a enfrentar diretamente uma nova doença, a trabalhadores nas diversas atividades que se viram obrigadas a suspender suas atividades, passando por serviços essenciais, entre os quais se inclui o sistema de justiça, que buscou se adaptar à nova realidade, sem paralisação dos serviços.

No Poder Judiciário, audiências presenciais foram canceladas, fóruns passaram a funcionar em regime de plantão e, especialmente, um novo regime trabalho a distância foi implantado para juízes e servidores.

O teletrabalho que era excepcional tornou-se regra, com a utilização das ferramentas tecnológicas disponíveis, evitando-se com isso a paralisia do sistema judiciário, malgrado todos os obstáculos enfrentados nesta repentina mudança.

Para se compreender o tamanho das dificuldades enfrentadas, é preciso lembrar, em primeiro lugar, que nenhuma empresa ou órgão público estavam preparados para uma transformação desta magnitude em tão pouco tempo.

Salas virtuais foram rapidamente criadas para a realização de audiências e sessões de julgamento online, e muitos atos processuais antes presenciais, como a oitiva de testemunhas e acusados, passaram a ser realizados por videoconferência.

Isso fez com que as redes de informática ficassem sobrecarregadas, ocasionando diminuição de velocidade de navegação e muitas negativas de acesso ao sistema, pelo aumento expressivo e repentino da quantidade de usuários em um sistema que não estava dimensionado para esse rápido crescimento do número de acessos.

No âmbito dos Juizados Especiais Federais, onde são julgados diariamente milhares de pedidos de concessão de benefícios previdenciários e assistenciais, entre vários outros assuntos, os desafios enfrentados para a rápida mudança para o regime de teletrabalho não foram pequenos. No entanto, a preocupação de juízes e servidores de não deixar sem assistência, neste momento de grave crise e paralisia da atividade econômica, a parcela mais vulnerável da população, que bate diariamente às portas dos Juizados, suplicando a concessão de um benefício assistencial ou previdenciário, tem sido maior do que qualquer obstáculo à prestação jurisdicional.

Em primeira instância, para evitar a paralisia da concessão dos benefícios por incapacidade e de prestação continuada, considerados urgentes pela ausência, em regra, de qualquer outra fonte de subsistência para o autor do pedido, o Centro de Inteligência da Justiça Federal sugeriu aos Juizados a realização de teleperícias ou de perícias virtuais, desde que o perito considere viável essa prática, como forma de viabilizar a realização desse ato processual indispensável ao julgamento da causa.

Em grau de recurso, no âmbito das Turmas Recursais, órgão responsável pelo julgamento dos recursos interpostos nos Juizados Especiais Federais e onde atuo há mais de cinco anos, apenas nos doze primeiros dias de teletrabalho, os quarenta e cinco juízes que compõem as Turmas Recursais de São Paulo, com o auxílio de uma estrutura extremamente enxuta de servidores bem qualificados, conseguiram julgar oito mil e quinhentos processos, sendo seis mil e setecentos acórdãos em sessões de julgamento virtual, além de mil e oitocentas decisões monocráticas.

Enquanto escrevo o presente artigo, intercalo cada parágrafo com a análise dos recursos a mim distribuídos na Turma Recursal.  Deparo-me com o processo de Antônio S., 58 anos de idade, analfabeto, morador da periferia de São Paulo, que sobrevive catando latinhas para reciclagem e buscou o Juizado Especial Federal para requerer a concessão de benefício assistencial, negado pelo INSS. Em primeira instância, no Juizado, o benefício também foi negado, com base em laudo médico que concluiu pela existência de incapacidade apenas temporária, fato que não justificaria a concessão do benefício.

Interposto recurso, o advogado insiste que o autor não tem condições de trabalhar. Percebo a gravidade do problema e determino a realização de nova perícia médica, desta vez por oncologista, que atesta a gravidade do problema de saúde e a ausência de perspectiva de recuperação. Imagino por um instante a angústia de uma pessoa em grave estado de saúde, sem condições de prover o próprio sustento e sem qualquer tipo de amparo. Recordo-me das lições de direito constitucional sobre o princípio da dignidade da pessoa humana e voto pela concessão imediata do benefício assistencial ao autor. Fico no aguardo do voto dos demais integrantes da Turma e prossigo no texto, intercalando os parágrafos com os votos da sessão virtual.

Concluída a votação virtual, com a concessão do benefício, sai dos meus ombros o peso de um processo aguardando decisão, mas milhares de outros permanecem. Consulto os documentos de outro caso. A conexão com a rede cai. Reinicio o computador e rezo para conseguir terminar mais um voto. A lentidão do sistema obriga a uma verdadeira ginástica cibernética, com a gravação de documentos em pen-drive, utilização simultânea de dois computadores e muita oração para que o sistema não caia novamente.

O receio de não dar conta da missão que me foi confiada ameaça meu espírito. Cai sobre a mim a dúvida: “valerá a pena todo esse esforço?”. Aí me lembro de Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. Sigo em frente, em mais um voto à distância.

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