Opinião

PEC do "Orçamento de Guerra" captura federação em troca de parco custeio

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3 de abril de 2020, 19h44

Tramita neste momento na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição nº 10/2020, que recebeu de seus apoiadores a alcunha (imerecida, entendemos) de “PEC do Orçamento de Guerra”. Uma proposição que fizesse jus a esse chamativo nome seria muito bem-vinda na atual situação do país, que precisa urgentemente mobilizar todos os recursos disponíveis para o combate à pandemia produzida pelo coronavírus (Covid-19). No entanto, aludida PEC não apenas pouco colabora para o efetivo enfrentamento ao vírus, mas traz seríssimos riscos jurídicos, políticos, patrimoniais e fiscais para a sociedade brasileira.

A promessa é de que haja maior financiamento federal das ações necessárias em âmbito nacional. Todavia, o resultado pode ser muito diferente do almejado, uma vez que nossa realidade atual evidencia um considerável risco de paralisação das atuações tempestivas e bem circunstanciadas nos entes subnacionais para ceder poder decisório à União. Até agora, o Executivo federal tem se dispersado em atuações fiscalmente insuficientes, por vezes tecnicamente erráticas e temporalmente tardias.

Falta coordenação nacional para que o financiamento federal, a ser feito até mesmo mediante emissão de dívida e moeda, chegue aos entes subnacionais em velocidade e quantidade suficientes. Mas, ao invés de coordenar a federação, a PEC do “Orçamento de Guerra” aposta em uma espécie de “intervenção branca” que, paradoxalmente, dará ao Executivo federal o poder decisório de até mesmo bloquear as ações dos Estados, Distrito Federal e Municípios.

A insólita formulação da PEC
Não há dúvida de que seja positivo que os Parlamentos, em todos os entes federativos, estejam envolvidos e comprometidos com a aprovação de propostas que venham colaborar com o enfrentamento da pandemia. Em especial, o Congresso tem se destacado nesse sentido, ao rapidamente propor e aprovar o benefício da renda básica emergencial, programa esse que foi intensamente debatido na esfera pública e que tornou praticamente um consenso entre os formuladores de políticas econômicas e sociais.

O mesmo cenário de amplitude de debate e transparência, no entanto, não se repete com a “PEC do Orçamento de Guerra”, na medida em que se trata de proposta cujo rito destoa do processo legislativo regular. Surpreende, por exemplo, a ausência de justificação na PEC[2] – elemento fundamental para a transparência do processo legislativo, onde o proponente apresenta as razões que fundamentam a proposta apresentada. A mesma falta de transparência é verificada no relatório da matéria, oferecido pelo deputado Hugo Motta (Republicanos/PB), o qual apenas transcreve o texto da PEC, sem examinar os seus dispositivos, em claro desatendimento ao disposto no art. 129, inciso I, do Regimento Interno da Câmara.

Além disso, chama a atenção o envolvimento absolutamente insuficiente de Estados e Municípios na formulação da PEC. Considerando que são esses entes os que efetivamente prestam os serviços de saúde, é fundamental que suas necessidades legislativas, materiais e financeiras tenham especial consideração nessa PEC. No entanto, constatamos que nenhum dos dispositivos da “PEC do Orçamento de Guerra” se dirige aos entes subnacionais: as regras especiais contemplam unicamente a União.

A título de exemplo, nenhuma das 13 medidas propostas pelos Governadores do Sul e Sudeste para o combate à crise[3] encontra-se inserida na PEC. Ora, como podemos chamar de “PEC do Orçamento de Guerra” uma proposição que não considera as necessidades dos entes que têm atuado justamente na linha de frente do combate?

Da inadequação da utilização de PEC para veicular as novas normas
Ao nosso sentir, nenhum dos dispositivos constantes da PEC 10/2020 necessitaria ser veiculado por PEC. Tais disposições poderiam constar, sem qualquer prejuízo, de lei complementar, em alguns casos, lei ordinária, em outros, e alguns até mesmo de atos infralegais, como decretos.

Observe-se que isso não é apenas um aspecto formal do processo legislativo: tem importantes implicações para a própria governabilidade da crise. Uma PEC, por definição, possui o mais rígido e exigente rito legislativo. Portanto, caso o desenrolar da crise exija alterações em qualquer disposição constante da PEC (tal como a composição do Comitê, por exemplo), somente outra PEC poderá promover a mudança. Isso traz graves riscos de engessamento de regras e estruturas que deveriam – por força da excepcionalidade e transitoriedade que o contexto exige – ser flexíveis para serem rapidamente adaptadas conforme a dinâmica da realidade.

O cenário atual se assemelha a um fático estado de sítio conjugado com a pretensão de intervenção federal verticalmente exercida sobre Estados, DF e municípios. Isso porque a calamidade pública reconhecida pelo Congresso no Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, se conjuga com o isolamento social horizontal demandado pela pandemia da Covid-19 (na forma da Lei 13.979, de 6 de março de 2020), no sentido de limitar liberdades e direitos civis, em tempos de anormalidade democrático-institucional. Eis a razão pela qual defendemos ser temerária a reforma constitucional neste momento, que é materialmente equivalente ao previsto no art. 60, §1º da Constituição.

O problemático Comitê de Crise: entre o autoritarismo federal e a irrelevância
O primeiro ponto que nos chama a atenção é a instituição do chamado Comitê de Gestão da Crise, órgão que receberá poderes excepcionais para o combate à pandemia. De pronto, impressionam as amplas competências conferidas ao órgão, incluindo “fixar a orientação geral e aprovar as ações que integrarão o escopo do regime emergencial”, “solicitar informações sobre quaisquer atos e contratos celebrados ou em via de celebração pela União e suas autarquias, empresas públicas e fundações públicas, com poder para anulá-los, revogá-los ou ratificá-los” e o indefinido “outras funções afins compatíveis com o escopo do regime”. Com esse último, na prática, o Comitê ganha a prerrogativa de autodefinir suas competências, podendo alargá-las excessivamente, usando assim a pandemia como pretexto para legislar em temas de seu interesse. Dada a natureza totalizante da pandemia, afetando praticamente todas as atividades humanas, o Comitê não terá maiores dificuldades para justificar eventual abuso de poder.

Observe-se também que o Executivo federal já estabeleceu um comitê para a gestão das ações relativas à pandemia. É o Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19, criado pelo Decreto nº 10.277, de 16 de fevereiro de 2020. Com a PEC, portanto, seria criado um segundo comitê, com grande redundância de atuação e temerária concentração de poderes decisórios. É evidente a ineficiência administrativa trazida por essa superposição de estruturas, o que em nada contribui para o adequado combate à pandemia.

O ponto mais crítico se encontra, sem dúvida, na composição e no poder de voto do Comitê. Presidido pelo Presidente da República e contando com diversos ministros e secretários de saúde, fazenda e assistência social de Estados e Municípios, o Comitê somente permitirá votos dos representantes do governo federal (!). Ou seja, os representantes dos entes mais diretamente envolvidos com a pandemia simplesmente não terão poder de decisão no Comitê.

O que se pode esperar de um Comitê constituído sob tais normas, evidentemente contrárias ao equilíbrio federativo? Não conseguimos ver esse Comitê senão como um instrumento para o Executivo federal ditar ordens para os entes subnacionais, de forma a subjugá-los a sua estratégia de combate à pandemia.

Estivéssemos nós em uma situação onde o Executivo federal estivesse a liderar — pelo exemplo e convencimento dialógico — a gestão da crise com o emprego das melhores técnicas e dos melhores processos decisórios, calcados na racionalidade e na busca do bem-estar comum, e estivesse ele sofrendo resistências de Estados e Municípios que estivessem agindo de forma errática e anticientífica, talvez pudesse caber algum tipo de debate para conferir à União maiores poderes para conduzir o país neste momento. Mas esse não é o cenário em que vivemos.

Portanto, a criação de uma nova estrutura com poderes excepcionais, com controle absoluto do Executivo federal, em nada pode contribuir para o aperfeiçoamento da gestão da crise. Muito ao contrário, corre-se elevado risco de autoritarismo federal na imposição da sua vontade aos demais entes, com consequências potencialmente trágicas para o país, incluindo incalculável perda de vidas humanas e sofrimentos imensuráveis por parte da população.

Os perigosos Poderes Legiferantes do Comitê
Entre os poderes concedidos ao Comitê (onde — reiteramos — o Executivo federal detém a exclusividade do poder decisório), destaca-se a prerrogativa de dispor sobre “contratação de pessoal, obras, serviços e compras”. Em essência, atos do Comitê poderão legislar a respeito no âmbito do combate à pandemia. Vemos tal concessão de poder como absolutamente desproporcional e desarrazoada, sem nenhuma evidência de imprescindibilidade para o bom desempenho das ações governamentais, e com risco de criar distorções que facilitem a ineficiência e o desvio de recursos públicos. A propósito, observe-se que a Medida Provisória nº 926/2020 já trouxe disposições de compras específicas para o combate à pandemia, tornando ainda mais injustificável a proposta.

A dispensa dos requisitos fiscais para criação de despesas e renúncias fiscais
A dispensa do atendimento de requisitos constitucionais e legais para a criação de despesas e para a renúncia de receitas é bastante discutível. Ainda que certas exigências, como a compensação, devam efetivamente ser relaxadas no momento, é preocupante a dispensa de requisitos como a apresentação de estimativas de impacto orçamentário e financeiro das proposições. Tais estimativas têm importância não somente no plano fiscal mas, em especial no atual cenário, têm elevadíssima relevância macroeconômica, social e política.

Além disso, tal dispensa, no tocante aos requisitos da LRF e da LDO, significa nada mais do que a positivação da medida cautelar concedida pelo Ministro do STF Alexandre de Moraes no âmbito da ADPF 6357. Assim, a aprovação de medida já assegurada por decisão judicial pode ser lida como uma atitude de desprestígio do Poder Judiciário, o que certamente não contribui para realizar a diretriz constitucional de harmonia entre os Poderes.

Da Suspensão da Regra de Ouro
Mesmo a suspensão da regra de ouro prescinde de emenda constitucional, uma vez que pode, democraticamente, conviver com a autorização excepcional a que se refere a parte final do inciso III do art. 167 da Constituição. Alterá-la em tempos de severa anormalidade fiscal é quebrar o termômetro para conter a febre. Não há assim uma evidência clara de que a regra de ouro não possa ser excetuada, acionando-se a cláusula de escape constante do próprio art. 167, III.

É importante ressaltar que a União dispõe de volumosos recursos em caixa (registrados como “superávit financeiro”), os quais podem – e já estão – sendo acessados para fazer frente às novas despesas. A dispensa da regra de ouro pode ser, portanto, um ato temerário que retirará do Congresso Nacional o controle que hoje exerce sobre a motivação e a finalidade da aprovação dos créditos suplementares ou especiais.

A Ilusão de controle por parte do Congresso
Por fim, verificamos que há uma forte crença entre os parlamentares de que o dispositivo que permite ao Congresso sustar atos do Comitê de Crise e do Banco Central será suficiente para lidar com eventuais abusos por parte desses órgãos. Somos de opinião de que tal possibilidade de controle pode ser de difícil exercício, e terminar sendo ineficaz para reprimir os atos abusivos.

Em nossa avaliação, essa possibilidade de sustação já é bastante restrita pois é admitida somente “em caso de irregularidade ou de extrapolação aos limites deste artigo”. Assim, a sustação não é possível por divergência de mérito: é necessária a evidenciação da irregularidade ou da ultrapassagem dos limites definidos. A propósito desse último cenário, complexo será conter os limites do Comitê, uma vez que seus poderes são definidos de forma tão ampla que pode ser desafiador justificar que algum ato não possa ser abarcado por eles. Corre-se aqui o risco, totalmente desnecessário nas atuais circunstâncias, de se criar um novo foco de conflitos e disputas entre os Poderes e, sobretudo, de esfacelamento da federação.

Além disso, tal controle pelo Congresso pode ser frustrado pelas dificuldades atualmente vividas pelo processo legislativo em função da própria pandemia. As sessões do parlamento têm sido realizadas de forma remota e com inevitável perda em relação ao procedimento presencial, necessitando de um grande consenso para a votação das matérias. A própria realização de sessões virtuais pode vir a ser contestada junto ao STF, produzindo insegurança jurídica quanto às decisões nelas tomadas. Uma tentativa de sustação de ato do Comitê ou do Banco Central muito provavelmente despertaria resistência dos parlamentares aliados ao Governo federal e poderia ser inviabilizada por isso.

Considerações finais: o risco de que caminhemos para o modelo húngaro de enfrentamento da pandemia
Concentrar poderes decisórios na União, em meio a um rito legislativo temerário e sem resguardar o essencial que é a ampliação do custeio federal em favor dos entes subnacionais, deve nos acender o alerta da escalada autoritária húngara (como se pode ler aqui) para o enfrentamento da crise sanitária, social e econômica causada pela Covid-19.

A pretexto de soluções rápidas e miraculosas, pode estar sendo iniciada, de fato, uma guerra federativa contra o nosso frágil pacto constitucional civilizatório de 1988. Em tempos de anormalidade, Ulisses se amarraria ao mastro da embarcação e se preservaria do canto das sereias. Em tempos de calamidade pública, respeitar a federação pressupõe resguardar custeio tempestivo e suficiente mediante as leis ordinárias e complementares, as medidas provisórias e os decretos legislativos, preservando nossa Constituição dos riscos de concentração decisória e fraudes teleológicas ao seu núcleo de identidade.

Somos contra a PEC do Orçamento de Guerra, porque antevemos exatamente o risco marcial que ela nos trará a todos, caso seja aprovada.

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    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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    é consultor legislativo em Orçamentos no Senado Federal e especialista em Direito Legislativo, atuando nas áreas de Orçamento Público, Direito Financeiro e Finanças Públicas.

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