Senso incomum

Coronavírus, o consequencialismo e o dilema do trem: Matar o gordinho?

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2 de abril de 2020, 8h00

Spacca
Nestes tempos de crise provocada pelo Coronavírus, tem-se colocado duas posições, basicamente, acerca de como enfrentar o problema.

De um lado, existe a defesa de um consequencialismo, pelo qual se analisa os fins em detrimento dos meios. Consequencialismo é uma postura pela qual o valor de uma ação é dado pelos resultados que produz e não por princípios deontológicos. Aquilo que Dworkin chamaria de decisão por política e não por princípio.

O consequencialismo admite hierarquia entre pessoas. Por exemplo, quando alguém diz que deveríamos afrouxar a movimentação das pessoas e reabrir o comércios porque a economia não pode parar, está fazendo uma argumentação consequencialista. E quando um empresário, dono de hamburguerias, diz que “afinal, morreriam apenas pessoas mais velhas” ou algo assim, é o consequencialismo na veia, esculpido em carrara.

Assim, análises econômicas sustentam fortemente teses consequencialistas. No Direito, isso está presente nas teses como “decido primeiro e depois fundamento”, porque “devo primeiro saber se o cara é culpado ou quanto será o prejuízo se eu decidir assim ou assado”. Também é consequencialista a tese de que não há nulidade sem prejuízo.

O grande problema é que o consequencialismo se sustenta em uma espécie de “jogos filosóficos” ou “jogos e escolhas de filosofia moral”. De todo modo, esses jogos ficam mais perigosos ainda porque raramente se tem todas as informações que podem ajudar a decidir o caso ou determinado “dilema”.

Neste momento, há passeatas com argumentos consequencialistas, bradando contra o confinamento. No fundo, são passeatas “a favor do vírus”.

Nesse sentido, é bom esclarecer essa “coisa” de ficarem alegando que estamos diante de escolhas. Será, mesmo? Escolhas? Quando tiver vidas em jogo? Bom, vou mostrar isso a partir de um dilema e depois um não-dilema.

Em muitos cursos de graduação e pós, estão discutindo os dilemas morais que levanta o professor de Harvard, Michael Sandel, como se isso fosse uma discussão de e sobre o direito. Rechaço isso. Os exemplos apresentados por Sandel tais como o “trolley dilemma” (Dilema do Vagão) servem como pontos de partida para a problematização acerca dos sistemas éticos. Ou seja, tem uma finalidade didática e uma abordagem específica.

Para delírio de gente da área do Direito, os exemplos acerca das “escolhas morais” fluem como se fossem um bálsamo. A partir dos exemplos de Sandel, já começam as adaptações. E os ativismos. E os decisionismos. E, lógico, as “escolhas” erradas. Claro que as vezes, a escolha é acertada… Mas um relógio parado também acerta a hora duas vezes por dia.

O dilema:

Vem Sandel e diz: você está em um trem que tem pela frente cinco pessoas… mas tem um desvio que pode ser feito, onde está um gordinho… O que você faz? Salva as cinco pessoas, matando o gordinho (este é licença poética minha)? O que isso tem a ver (diretamente) com o Direito? Serve, sim, para discutir filosofia moral e correlatas; mas, para o direito, uma aplicação direta só fragiliza sua autonomia (sobre a obra de Sandel, ver aqui).

Os exemplos de Sandel (e da filosofia moral em geral) devem ser lidos com uma advertência (deveriam carregar uma tarja): “você, que escolhe se mata ou não o gordinho, não está agindo como um jurista”. O agente moral que deve fazer esta escolha não representa um juiz em sua tomada de decisão enquanto agente público. Desenvolvo isso ad nauseam em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. E no Dicionário de Hermenêutica.

Voltemos ao exemplo do gordinho e à eventual moralidade do assassinato. Sandel utiliza esse problema para ilustrar as posturas utilitaristas. A morte de uma pessoa seria preferível à morte de cinco. Porém, a audiência não consegue universalizar esse princípio: a maioria fica desconfortável em assumir a responsabilidade por matar o gordinho; e isso leva a reformular, ou a refinar, o argumento inicial de que a vida de muitos vale mais do que a vida de um só. Vou complicar o dilema: E se o gordinho fosse um cientista prestes a inventar a cura do câncer? Ou: se uma das cinco pessoas salvas fosse um cruel assassino e que, dias depois, viesse a fazer um massacre em um colégio? O que me dizem dos cálculos? Ora, são apenas jogos filosóficos.

Certo. Mas um jurista não está em condições de fazer este tipo de escolha fundamental (entre o utilitarismo e a dignidade, por exemplo). Para ser bem claro sobre esse ponto: já há um sistema (de regras, princípios etc.) que lhe antecede e que lhe coloca em condições de dizer algo. Ninguém quer saber se o juiz do caso é pragmaticista, consequencialista, ou se ele age com base em princípios morais (quais? de quem?). Melhor dito: o Direito democrático não pode depender disso.

Você tem ou não tem um direito? Essa resposta depende de uma argumentação moral, e o juiz tem a reponsabilidade política de desenvolvê-la de forma adequada. Não depende de uma escolha. Quem quiser ir mais fundo, leia este texto: Por que não posso exigir que o Estado me forneça pescoços de galos-índio!

O contraponto:

Aqui vai o repto ao consequencialismo. E o faço por meio de uma série de TV, House of Cards. Quero dizer, simplesmente, que na democracia não é a moral que deve filtrar o Direito e, sim, é o Direito que deve filtrar os juízos morais. Simples assim. Correto o médico de House of Cards, quando, instado a que deixasse o presidente americano baleado a fazer transplante de fígado, disse que não poderia “furar a fila”: It’s the law. O princípio é: vale é a vida humana. Uma vida é igual a uma vida. Não importa de quem seja a vida. Não há hierarquia de vidas. Comércio e indústria? Empregos? Resposta: uma vida é igual a uma vida! Fazer a coisa errada é dizer: It’s the morality. My own morality. It’s the economy, stupid! Bem, será?

Fazer passeata em favor “da economia” é dizer: “ – matemos o gordinho. Mate um para salvar os cinco”.

Bem, pausa. Vejam: até aqui, falei sobre o problema intrínseco a esse tipo de argumentação. Um país que não respeita parte de sua população mais vulnerável (os mais velhos, mais pobres, quem for) não se respeita. Já traiu a civilização.

Agora, o problema é ainda mais além: não há dilema. Porque, nos termos da metáfora, matar o gordinho agora é matar os cinco depois de qualquer forma. O dilema é um não-dilema. Uma sobrecarga no SUS é ruim também para economia, para aqueles que adoram fazer cálculos com a vida alheia. Se estiverem corretos, essa gente toda está errada. Não adianta sacrificar o “véio” em nome da “Havan”. Se é que me entendem. Pintaram um dilema que não existe para fortalecer a narrativa consequencialista defendida pelo Presidente da República e por parte de seus apoiadores.

It’s the economy, stupid! Bem, será? Mesmo se for. O dilema não é um dilema. Para salvar a economia, vão matar o gordinho… e a própria economia depois. Bom, esperemos que não.


Post Scriptum: homenagem a Luiz Flávio Gomes

Quando alguém é conhecido por uma sigla – LFG – é porque alcançou notoriedade. Transcendeu. Foi – e continuará sendo – o caso da trajetória de LFG. Depois de uma intensa luta, Luiz Flávio nos deixou. Agora estava no Parlamento, para, em vez de comentar as leis (ele que já fora Promotor e juiz), elaborar a legislação. Polêmico, tinha pontos de vista fortes. Por vezes, nossas visões batiam de frente. Em outras, concordávamos. Mas em um ponto sempre estivemos juntos: na defesa do garantismo e da democracia.

LFG deixou um vídeo que deve servir de lição a todos os seus amigos e amigas. Assistam:

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