"Balbúrdia federativa"

STF é chamado para mediar requisições estatais por recursos hospitalares

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2 de abril de 2020, 22h05

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Crise da Covid-19 gera disputa entre administrações por recursos hospitalares; no meio da batalha, a iniciativa privada
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Enquanto pesquisadores e autoridades sanitárias tentam compreender o fenômeno da epidemia de Covid-19 no país — projetando a chamada "curva epidêmica" e sua relação com número de infectados e de pessoas que precisarão de atendimento hospitalar —, partidos políticos e gestores dos três níveis federativos vêm travando uma disputa administrativa e jurídica para terem acesso a recursos hospitalares, como respiradores artificiais, máscaras, luvas e até mesmo leitos de UTI.

No meio do front, as empresas que atuam no ramo de saúde, que correm o risco de serem privadas de sua propriedade.

O arsenal jurídico utilizado pelos agentes do estado consta da Lei 13.979/20, que dispõe sobre medidas para enfrentar a crise sanitária. Mais especificamente, seu artigo 3º, inciso VII, segundo o qual as autoridades podem requisitar "bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa". O parágrafo 7º, III, do mesmo artigo ainda prevê que essa requisição pode ser feita "pelos gestores locais de saúde".

Diante da situação, a Confederação Nacional de Saúde (CNSaúde), sob patrocínio do escritório Sérgio Bermudes, propôs na noite desta quarta-feira (1/4) ação direta de inconstitucionalidade ao Supremo Tribunal Federal, requerendo que os dispositivos sejam interpretados conforme a Constituição. Do contrário, os direitos à propriedade e à livre iniciativa se tornariam letra morta.

Na exposição de motivos, a CNSaúde afirma que resolver o problema da escassez de equipamentos e leitos do setor público às custas do setor privado enfraquece de forma injustificada o já sobrecarregado setor de saúde. "Seria como retirar os recursos de um bolso para o outro da mesma calça", aponta.

De forma quase antagônica, tramita no Supremo a Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental 671, de autoria do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), que conclama a administração pública a deixar disputas políticas de lado para executar a requisição da totalidade dos bens e serviços relativos à saúde prestados em regime privado, de forma a regular a utilização dos leitos de UTI, mesmo nas redes privadas, para todo doente que dele necessite. 

Mediação
A preocupação foi externada nesta quinta-feira (2/4), em videoconferência com o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli. Breno Monteiro, presidente da CNSaúde, pediu diretamente o estabelecimento de uma ação coordenada com o Ministério da Saúde. Na ADI, aliás, a entidade sugere pré-requisitos a orientar as requisições, preservando os entes privados sob o prisma do direito constitucional à propriedade.

Toffoli colocou a definição de critérios como fundamental. Enquanto o Legislativo permite e o Executivo executa as requisições, o chefe do Judiciário mais uma vez se coloca na posição de mediador.

"Esse é o momento de estabelecer o diálogo entre todos os agentes públicos, entre toda a nação, exatamente para que possamos colocar acima de qualquer divergência, de qualquer individualidade, o bem maior que é a proteção à vida, e também a proteção da economia, do sistema de produção do Brasil", disse.

Público x Privado
Segundo dados trazidos pelo Psol na ADPF 671, existiria um desequilíbrio no sistema de saúde, causado por omissão histórica do próprio poder público. A média de leitos no país é de 2,6 para cada 10 mil habitantes.

De acordo com a Associação de Medicina Intensivista Brasileira (AMIB), essa média cumpre a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de 1 a 3 leitos para cada 10 mil habitantes. O país com maior índice é o Japão: 13,05. 

Ocorre que, para a sigla, citando uma reportagem, 25% da população brasileira possui algum tipo de convênio médico, com acesso a 56% dos leitos de UTI. Assim, 75% da população têm à disposição 44% dos leitos, em um momento em que se questiona se a quantidade geral será suficiente para tratar os casos graves de Covid-19.

"Em uma situação de calamidade pública, como esta que vivemos, cabe ao SUS assumir integralmente a gestão de hospitais e profissionais de saúde. Sejam eles públicos ou privados. Independentemente de o sistema estar lotado ou não, há mais leitos disponíveis a quem tem dinheiro", afirma a peça enviada ao Supremo Tribunal Federal.

Gestão de recursos
O partido ainda ressalta a pouca coordenação entre os segmentos público e privados, que tem como marca a falta de complementariedade. 

Essa falta de coordenação é também criticada pela CNSaúde, que denuncia uma arrebatada disputa para agarrar a maior quantidade possível de equipamentos médicos por estados e municípios em favor de seus interesses regionais.

A apropriação de leitos é tratada como ápice deste movimento, mas nas instâncias inferiores a disputa jurídica pelas requisições administrativas já começou.

Por exemplo, ainda nesta quinta-feira (2/4), a ConJur noticiou a decisão da 1ª Vara Cível de São Roque (SP), que negou pedido de um hospital particular para reaver sete respiradores requisitados pela prefeitura local.

Já a 2ª Vara Federal de Barueri (SP), em sede de liminar, proibiu a União de requisitar respiradores artificiais a uma empresa de Santana de Parnaíba (SP). O governo estadual também requisitou 500 mil máscaras da fornecedora 3M, de Sumaré (SP). 

Em Cotia (SP), ocorreu episódio definido pela CNSaúde como "dramático" — uma "balbúrdia federativa" —, quando o vice-prefeito Almir Rodrigues usou da guarda municipal para se apropriar de 35 respiradores da Magnamed Tecnologia Médica, após decisão judicial que permitia à municipalidade apenas comprar os aparelhos.

Em Minas Gerais, o governo estadual, conduzido por Romeu Zema —que, em tese, integra uma legenda com pauta economicamente liberal — emitiu notificação por meio da qual requisitou a entrega de higienizadores e frascos de álcool etílico à fornecedora Indalabor.

No Ceará, um ofício do secretário estadual de Saúde requisitou a fabricantes, distribuidoras e varejistas a disponibilização de medicamentos e equipamento de proteção individual (EPI) disponíveis em estoque, ainda que em saída para expedição, autorizando o recolhimento nas sedes ou locais de armazenamento.

No Rio de Janeiro, mais disputa. Decisão da 5ª Vara Federal decidiu conceder pedido liminar, em sede de mandado de segurança preventivo, formulado pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), e suspendeu requisição do governo federal de dez aparelhos respiradores adquiridos pelo Hospital Universitário Pedro Ernesto.

Em Londrina (PR), foi emitida requisição administrativa de produtos e insumos hospitalares da fornecedora CM Hospitalar, empresa que teve mercadorias apreendidas em Pernambuco.

Em Pernambuco, a presidência do Tribunal Regional Federal da 5ª Região deu parcial provimento a pedido de suspensão de liminar proposto pelo município de Recife, para evitar requisição, pela União, de mais de 200 respiradores mecânicos.

Já a Paraíba tem o Decreto Estadual 40.155/2020, que confere permissão ampla e genérica ao secretário estadual da Saúde para "requisitar as unidades de saúde e leitos", bem como de "serviços de profissionais de saúde".

Para a CNSaúde, está escancarado o quadro de "balbúrdia federativa" ensejado pela leitura equivocada da Lei nº 13.979/2020. Essas requisições, afirma, embora semanticamente possíveis, não são a adequadas à compreensão sistemática da Constituição.

"Daí a necessidade de se fixar a correta interpretação dos preceitos legais, em conformidade com a Constituição, declarando-se a inconstitucionalidade da leitura desconforme", defende.

Clique aqui para ler a petição da CNSaúde em ADI
Clique aqui para ler a petição do Psol em ADPF

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