Opinião

O juiz pode decretar prisão preventiva de ofício?

Autores

  • Leonardo Barreto Moreira Alves

    é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Minas Gerais especialista em Direito Civil pela PUC/MG mestre em Direito Privado pela PUC/MG professor de Direito Processual Penal de cursos preparatórios professor de Direito Processual Penal da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais (FESMPMG) embro do Conselho Editorial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e membro do Conselho Editorial da Revista de Doutrina e Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios.

  • Higyna Josita

    é juíza de direito na Paraíba; mestre em Direito pela UFPB e professora da Escola Superior da Magistratura da Paraíba (Esma-PB) Fundação Escola Superior do Ministério Público (Femisp-PB) e SeuFuturo.com. IG: higynajosita.

2 de abril de 2020, 6h04

A regra geral trazida pela Lei n. 13.964/19 (Pacote anticrime) é a de que o Juiz não pode decretar prisão preventiva de ofício, seja durante o curso da investigação, seja durante o curso da ação penal, exigindo prévio requerimento do MP ou representação da autoridade policial, como preconiza o artigo 311 do CPP, quando dispõe que “em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial”.

Essa é a posição que mais se coaduna com a sistemática trazida pelo Pacote anticrime, o qual pretendeu consagrar de vez o sistema acusatório, ao preconizar que o exercício do jus puniendi pelo Estado exige que as partes produzam as provas e o juiz julgue com base nas provas trazidas, não podendo cumular funções de investigar e julgar, como fazia na época da Inquisição. Caso não se convença de uma verdade que levará a uma certeza sobre a culpabilidade do réu, deverá absolvê-lo com base no in dubio pro reo.

A Lei 13.964/19, ao criar o Juiz das garantias, deixou claro que o magistrado deve exercer o papel de garantidor das liberdades e de protetor dos direitos fundamentais, não podendo, por isso, determinar prisão preventiva ex officio.

Ocorre que, a despeito de o sistema trazido pela Lei n. 13.964/19 preconizar essa impossibilidade de decretação de preventiva ex officio pelo juiz, a literalidade de alguns artigos deixa brechas que permitiriam a decretação de ofício da prisão preventiva pelo Juiz. Pois é. Alguns dispositivos legais da Lei Anticrime são mal redigidos e deixam margem a que o Juiz continue decretando prisão preventiva  de moto proprio. Vejamos.

O artigo 310, caput, do CPP afirma que o juiz deverá realizar a audiência de custódia e ao final deverá tomar uma das três medidas, após manifestação obrigatória do MP: a) relaxar a prisão ilegal; ou b) converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou c) conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. A dúvida que se impõe é a seguinte: por ocasião da audiência de custódia, caso o MP, ao se manifestar, pugne pela liberdade provisória do preso, pode o juiz contrariar essa manifestação e converter a prisão em flagrante em prisão preventiva? Parece-nos que sim.

O primeiro argumento é o de que o legislador fala que o juiz “deverá” converter a prisão em flagrante em prisão preventiva sem condicionar a manifestação ministerial nesse sentido. Então, mesmo que o MP venha a pugnar pela liberdade, poderia o Juiz contrariar tal parecer e converter o flagrante em preventiva.

Sobre o tema, Leonardo Alves[1] afirma:

"Problemática é a possibilidade de o juiz aplicar medida cautelar ou mesmo decretar a prisão preventiva por conversão da prisão em flagrante de ofício. É que os artigos 282, parágrafo 2º, e 311 do CPP, respectivamente, não autorizam a concessão destas medidas de ofício. No entanto, como noticia Marcos Paulo Dutra Santos, há quem sustente a possibilidade de concessão de ofício, a exemplo de Guilherme de Souza Nucci e Marcellus Polastri Lima (SANTOS, 2011, p. 158), já que o art. 310 do CPP é imperativo ao preceituar que o magistrado “deverá”, tampouco condicionando o seu agir ao pronunciamento prévio do Ministério Público. Essa última posição é acolhida pelo STJ (HC 228913/MG)."

O segundo argumento a sustentar esse posicionamento é o fato de que o § 2º do artigo 310 afirma que o juiz deverá denegar a liberdade provisória se verificar que o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito. Deixando de lado a discussão a respeito da constitucionalidade deste dispositivo e fixando-se apenas na intenção do legislador com esta norma, temos que esse parágrafo está diretamente subordinado ao caput, ou seja, com o tema da audiência de custódia, de modo que ele autoriza o juiz, nessa audiência, a indeferir o pedido de liberdade feito por qualquer das partes, inclusive pelo MP. Ora, o que o juiz faz quando indefere o pedido de liberdade é converter o flagrante em preventiva, de modo que existe autorização legislativa para que o juiz contrarie a manifestação ministerial, o que, mudando as palavras, seria "decretar prisão de ofício".

Nessa linha de raciocínio, a audiência de custódia estaria situada em uma zona neutra, na qual seria permitido ao Juiz contrariar posicionamento ministerial e converter a prisão em flagrante em preventiva.

Para corroborar ainda mais a tese de que a lei autoriza a atuação de ofício do magistrado no tocante à prisão preventiva, há que se focar na literalidade do artigo 316 do CPP, com a nova redação dada pela Lei n. 13.964/19, que assevera: "O juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a prisão preventiva se, no correr da investigação ou do processo, verificar a falta de motivo para que ela subsista, bem como novamente decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem".

Vê-se, claramente, que, na hipótese tratada no dispositivo legal alhures transcrito, o juiz poderá decretar a prisão preventiva, mesmo sem requerimento do MP ou representação da autoridade, atendidos três pressupostos: a) decretação inicial após ser instado a tanto (pelo MP ou delegado); b) revogação posterior por falta de motivo para mantê-la; e, c) o investigado/réu que estava solto dá motivos para que a preventiva seja de novo decretada. Preenchidos esses requisitos, o juiz, em nome da cláusula rebus sic standibus, poderia decretar de novo a prisão preventiva independente de pedido das partes.

Os tribunais já começam a enfrentar a matéria, proferindo decisões no sentido ora esposado, a exemplo do acórdão exarado em sede de Habeas Corpus (nº 2002378-94.2020.8.26.000), do TJSP, em março/2020, cujo relator foi Luis Augusto de Sampaio Arruda, que pontificou:

Cumpre salientar que não se olvida que o § 5º do artigo 282 do Código de Processo Penal dispõe que “o juiz poderá, de ofício ou a pedido das partes, revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que subsista, bem como voltar a decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem”. Todavia, in casu, o Juízo a quo não  voltou  a  decretar  a  prisão  preventiva  e  sim  a  decretou  após  revogar  a prisão temporária em razão do decurso do tempo e por entender que a prisão temporária não se fazia mais necessária […]

Da leitura do trecho do acórdão, conclui-se que a prisão seria legal se o Juízo tivesse voltado a decretar a preventiva, o que não ocorreu no caso porque não havia prisão preventiva anterior, mas prisão temporária.

A nosso ver, sustentamos que, em regra, como estabelecido pelo Pacote Anticrime, o Juiz não pode decretar prisão preventiva de ofício, o que, no entanto, se revela possível nas seguintes situações excepcionais:

I) por ocasião da audiência de custódia, ao analisar a prisão em flagrante, podendo convertê-la em preventiva, mesmo que o MP se manifeste pela liberdade provisória;

II) quando analisar prisão em flagrante, nos casos em que restar impossível a realização de audiência de custódia por motivo idôneo, a exemplo da situação em que o agente tenha sofrido lesão que o deixou internado em hospital sofrida no momento da prisão em flagrante, desde que haja manifestação prévia do MP, mesmo que este pugne pela liberdade;

III) durante o curso da investigação ou do processo quando houver o preenchimento das seguintes condições: a) decretação inicial após pedido do MP ou representação da autoridade policial; b) revogação posterior por falta de motivo para mantê-la; e, c) surgimento de motivos que tornam necessária a decretação da preventiva.

A questão é polêmica e logo se esclarecerá quando a jurisprudência se consolidar a respeito do tema.

Não foi suficiente o Pacote Anticrime ter a pretensão de consolidar o sistema acusatório no país vedando, a priori, o decreto judicial de ofício da prisão preventiva. Com esse nobre objetivo, deveria a novel legislação se esmerar para promover uma reforma harmônica e coerente em todo o sistema, evitando a coexistência de dispositivos legais que, muitas vezes, são conflitantes. De nada adiantou ao legislador a vontade de tirar dos juízes a responsabilidade de decretar preventiva de ofício, se não escreveu isso na lei a contento.

 


[1]     ALVES, Leonardo Barreto Moreira. Sinopses para Concursos: Processo Penal – Parte Geral. 9. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPODIVM, 2019. v. 7, pg. 83-84.

Autores

  • é promotor de Justiça em Minas, mestre em Direito pela PUC-MG, professor e autor de obras e artigos jurídico; Site: www.leonardobarreto.com.br; IG professor.leonardobarreto.

  • é juíza de direito na Paraíba; Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraiba (UFPB) e professora de Processo Penal da Escola Superior da Magistratura da Paraíba, Fundação Escola Superior do Ministério Público e SeuFuturo.com.

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