Interesse público

Eleições: questões sobre periodicidade e representatividade

Autor

  • Adilson Abreu Dallari

    é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

2 de abril de 2020, 8h00

Spacca

Por causa do novo coronavírus, cogita-se agora do adiamento ou da supressão das eleições municipais de outubro do corrente ano. A primeira manifestação de peso, nesse sentido, foi do Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta,  ditada por razões inerentes à saúde pública, mas autoridades do Legislativo e do Judiciário se colocaram em posição contrária. O ministro Luís Roberto Barroso se manifestou absolutamente contra a prorrogação de mandatos, mas sem considerar as peculiaridades do momento.

Não há como simplesmente manter o calendário eleitoral, fixado antes do advento da Covid-19. Algumas lideranças políticas admitem o simples adiamento das eleições, para dezembro, mas outros falam em prorrogar os atuais mandatos municipais. Já existem projetos de lei e de emendas constitucionais estabelecendo, em caráter absolutamente excepcional, a prorrogação dos mandatos, exatamente em função da necessidade atual de afastamento social.

A questão continua em debate, pois o processo eleitoral não dispensa reuniões, manifestações e outras formas de comportamento contrárias ao isolamento havido como necessário ao combate dessa pandemia.

A matéria é realmente polêmica. Em qualquer seminário em que se examinem questões inerentes ao sistema político, eleitoral e partidário, é impossível haver unanimidade, salvo quanto à imprestabilidade do quadro vigente. Todos acham que é preciso mudar, mas divergem quanto às possíveis soluções. Porém, os detentores de competência para mudar esse deplorável cenário não estão interessados nisso, pois são beneficiários dos defeitos do sistema.

A Constituição Federal, ao dispor sobre os Direitos Políticos, no artigo 14, diz que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”. Já tivemos oportunidade de examinar esse dispositivo em artigo publicado: “Numa leitura descuidada, que não ultrapasse os limites da literalidade, essa parte final poderia significar, apenas e tão-somente, uma proibição ao voto de qualidade. Mas, na verdade, aí está dito muito mais: está afirmado o princípio da igualdade entre os eleitores, que determina, entre outras coisas, a igualdade de informação eleitoral, a igualdade de acesso aos locais de votação, a proteção contra influências do poder econômico e também do poder político.” (ADILSON ABREU DALLARI, “Abuso de Poder Político”, in Direito Eleitoral, coordenadores: Carlos Mário da Silva Velloso e Cármen Lúcia Antunes Rocha, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1996, p.240.

Essa afirmada igualdade se limita ao voto, mas é bastante afetada pelas exigências relativas à capacidade de ser votado, pois o artigo 14, em seu § 3º, da CF, ao estabelecer as condições de elegibilidade, menciona, expressamente, no inciso V, “a filiação partidária”. Isso significa que ninguém pode ser eleito para exercer um mandato político sem estar filiado a um partido político.

Não é o caso de se examinar, agora, a questão da possibilidade de candidaturas avulsas, mas, sim, apenas, de enfocar o papel atual dos partidos políticos, para, ao final, enfocar a relevância da periodicidade das eleições. Partido político é uma entidade com sede constitucional, prevista para desempenhar uma determinada função, necessariamente ligada à representação do povo (titular do poder político), como instrumento da democracia. Essa vocação constitucional é incompatível com os desvios que na prática se observam, conforme comenta o Eminente Ministro Carlos Velloso: “A democracia representativa realiza-se através dos partidos políticos. Estes devem refletir, pelos seus programas, o pensamento de setores da sociedade, devem conter um ideário, de modo que as pessoas possam escolher os seus candidatos a partir da discussão de idéias e de temas de governo e não em razão do carisma ou de discursos individuais, que refletem, em última análise, pensamentos afastados da realidade partidária, quase sempre demagógicos e inviáveis.” CARLOS MÁRIO DA SILVA VELLOSO, “A Reforma Eleitoral e os Rumos da Democracia no Brasil”, in Direito Eleitoral, coordenadores: Carlos Mário da Silva Velloso e Cármen Lúcia Antunes Rocha, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1996, p. 17.

Há uma distância abissal entre o que deveria ser um partido político e a realidade existente. A CF, no artigo 17 afirma a liberdade de criação de partidos políticos, que, entretanto, não é ilimitada, pois está sujeita à observância de alguns preceitos, dentre os quais, para os fins deste estudo, se destaca o inciso I, —“caráter nacional”.  A periodicidade das eleições tem tudo a ver com essa exigência. A realidade mostra que a cada dois anos, os partidos se acomodam aos interesses daquela específica eleição, formando um cenário totalmente heterogêneo, completamente contrário ao que se deve entender como “caráter nacional”.

A descoincidência das eleições, no plano nacional e regional e no plano local, milita em favor da incoerência, do absurdo e da falsificação da representatividade política. No estágio atual, a cada dois anos é possível um rearranjo no quadro eleitoral e partidário, com a celebração de novas coligações, precedidas de negociações nada republicanas. Por outro lado, a coincidência geral das eleições, na medida em que dificulta tais negociações, acaba por desestimular a criação de legendas de aluguel e milita em favor de uma representatividade mais autêntica, ou, no mínimo, menos falsa. Pelo menos, não será possível ser aliado no plano local e adversário no plano nacional, e vice-versa.

Desde longa data defendemos a unificação de todas as eleições. Seja permitido simplesmente transcrever o que já publicamos em favor dessa tese: “Em termos práticos, não é possível ignorar que eleições custam muito dinheiro, tanto para os partidos políticos quanto para os cofres públicos e, em última análise, para os cidadãos. Além disso, conturbam a regularidade da atuação administrativa, pela instabilidade dos quadros dirigentes, que precisam se amoldar às mutações do ambiente partidário. Com a coincidência geral das eleições esses problemas não são eliminados, mas, sem dúvida, são reduzidos. Outro importantíssimo efeito reflexo da redução da periodicidade é  viabilizar  a formulação e execução de  políticas públicas de Estado. Com muita frequência, a racionalidade e o dever de boa administração demandam a adoção de medidas impopulares, cujos bons efeitos somente aparecerão a médio ou longo prazo. Com a periodicidade estreita das eleições é usual que os governos substituam aquilo que deveria ser feito, por algo politicamente mais rentável, embora danoso ao interesse público. Não é incomum que o governo atenda a interesses corporativos, com vistas a possíveis vantagens eleitorais. Com o distanciamento maior entre os pleitos, é possível que medidas necessárias, mas impopulares, sejam adotadas, ao mesmo tempo em que também é possível reduzir o contubérnio entre governos e corporações”   (ADILSON ABREU DALLARI, “Periodicidade das eleições e representatividade”, in Direito Eleitoral, Estudos em homenagem ao Desembargador Mathias Coltro, coord. Luiz Guilherme da Costa Wagner Jr. e Petrônio Calmon, Ed. Gazeta Jurídica, 2014, p. 11)

O distanciamento maior entre as eleições, conjugado com sua unificação, pode reduzir o vergonhoso nível de corrupção, a deslavada demagogia e a falta de representatividade, que caracterizam o ambiente político administrativo em todos os níveis. Além de proporcionar economia na corrupção lícita (viabilizada por meio de emendas parlamentares e de bancada, e dos fundos partidário e eleitoral), diminui a corrupção paralela (os acordos espúrios) e contribui para o saneamento do pútrido quadro partidário.

Não podemos desperdiçar a oportunidade atual, para uma depuração partidária e para dar autenticidade à representação popular. É simplesmente impossível reduzir o número de partidos por meio de alterações na legislação, pois quem pode não quer. No momento atual, o simples adiamento das eleições para dezembro não tem maiores efeitos. A prorrogação dos mandatos, com vistas à unificação das eleições em 2022, não terá resistência dos atuais mandatários (muito pelo contrário) e proporcionará tempo suficiente para um ajuste a essa nova ordem.

A miríade de arranjos de conveniência, de feudos e de balcões de negócios que integram a grande maioria dos chamados partidos políticos (que agora resolveram adotar denominações de fantasia, já que desprovidos de conteúdo político ideológico), certamente será reduzida, pois a quase totalidade não tem expressão nacional. A necessidade de aglutinação partidária (para garantir a sobrevivência) certamente proporcionará um saneamento, em favor da autêntica representatividade, que até hoje não existe.

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