Advocacia em tempos de crise

Defensora e advogada atuam para evitar mortes por Covid-19 em presídios

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2 de abril de 2020, 19h04

Com a pandemia da Covid-19, a maior parte das pessoas já se acostumou com as principais recomendações para evitar a disseminação da doença: lavar bem as mãos com água e sabão, higienizá-las com álcool em gel e, principalmente, isolar-se em casa, caso seja possível. 

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Para OMS, as pessoas privadas de liberdade são mais vulneráveis ao novo coronavírus
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Se essa não é uma tarefa fácil de ser seguida em tempo integral, nem garante integral efetividade no combate ao novo coronavírus, a contenção do surto dentro das penitenciárias levanta dificuldades ainda maiores. 

Segundo o escritório europeu da Organização Mundial da Saúde, as pessoas privadas de liberdade são as mais vulneráveis à disseminação da doença, dadas as condições sanitárias e a superlotação dos presídios.

"A experiência demonstra que prisões, cadeias e similares, onde as pessoas ficam aglomeradas e em proximidade umas das outras, tendem a atuar como fontes de infecção e ampliação do contágio por doenças infecciosas, dentro e para além das prisões", registrou a organização em um guia publicado em março. 

No Brasil, iniciativas para combater o avanço do surto dentro das penitenciárias estão sendo tomadas. Dentre elas, destaca-se a Recomendação 62, do Conselho Nacional de Justiça, que indica a tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo. 

O documento foca, principalmente, nos presos que fazem parte do chamado grupo de risco e, por isso, estão mais suscetíveis a complicações caso padeçam da Covid-19. O CNJ também recomenda a reavaliação de prisões preventivas com prazo maior que 90 dias, regime domiciliar a devedores de pensão, entre outras.

É possível ver um esforço por parte de alguns magistrados — mas não de todos — para se adequarem à recomendação. Tribunais e instituições, como a Defensoria Pública, também adotaram práticas para conter o surto. 

Fato é que a recomendação do CNJ abriu as portas para uma série de pedidos de liberdade provisória e conversão de prisões preventivas para o regime domiciliar.

Para além das medidas vindas de cima, todo o trabalho feito para tentar reverter detenções enquadradas no rol da Recomendação 62 partem também de baixo, de advogados e defensores. A ConJur separou duas histórias sobre isso.

Defensoria
Em 18 de março, a Defensoria Pública da União publicou uma orientação interna pedindo para que os defensores promovessem inventário de todos os seus procedimentos criminais e avaliassem, caso a caso, a possibilidade de apresentar pedidos liberatórios com base na recomendação do CNJ. 

Foi o que a defensora Fabiana Severo, baseada em São Paulo, começou a fazer desde então. De lá para cá, ela inspecionou 276 processos para saber quais deles poderiam render pedidos de liberdade provisória ou domiciliar. 

"O nosso foco é verificar os casos que contam com prisão provisória há mais de 90 dias e preventivas de crimes cometidos sem violência ou grave ameaça. Também verificamos acusados que se enquadram no grupo de risco", conta. 

A defensora explica que muitos dos casos mereceriam reavaliação por parte do Judiciário mesmo fora do contexto de pandemia. Isso porque algumas pessoas são mantidas presas provisoriamente, apesar de, ao final do processo, quase não haver possibilidade de pena privativa de liberdade. Ou seja, com ou sem surto de coronavírus, muita gente já não deveria estar detida, mas está.

Ela cita dois exemplos de crimes comuns: passar moeda falsa e dano a patrimônio. Em ambos os casos, o réu é geralmente sentenciado a penas restritivas de direito, como prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária. Ainda assim, especialmente em casos de reincidência, são mantidas presas até que haja uma sentença, que, ao fim e ao cabo, tende a colocá-las em liberdade. 

Dos 276 processos inspecionados por Severo, em quatro ela poderá pedir cautelares alternativas com base na recomendação do CNJ. Em um desses quatro, a defensora já prepara Habeas Corpus. O processo envolve um réu primário que engoliu cápsulas de cocaína. Trata-se de um portador de doença de chagas que, apesar de ter sido condenado em regime inicial semiaberto, foi mantido preso preventivamente.

Alguns de seus colegas já conseguiram reverter provisórias. Em um dos casos, o réu estava preso preventivamente por roubar fios de cobre de um prédio abandonado dos correios. 

Barril de pólvora
Impulsionada principalmente pela Recomendação 62, a criminalista Maira Machado Frota Pinheiro resolveu agir para o benefício de seus clientes, assim como para o de seus colegas advogados.

Ela, que também atua em São Paulo, elaborou dois modelos de Habeas Corpus, um sobre cumprimento de pena, outro em caso de prisão provisória, que podem ser usados livremente por outros profissionais. 

Os documentos foram são fundamentados por medidas adotadas em outros países, dados de estudos sobre disseminação de doenças em ambiente carcerário e recomendações internas. 

"A partir do momento que saiu a Recomendação 62 e que eu vi que a gente tinha uma base legal mais consistente para adotar medidas de desencarceramento caso a caso, eu percebi que os pedidos que faria para os meus clientes poderiam ser parcialmente aproveitados por outras pessoas”, explica. 

A advogada conta que sempre teve interesse por saúde e que cursou algumas matérias na Faculdade de Saúde Pública durante a graduação. "Então eu estava afim de compreender um pouco melhor o que era a Covid-19, quais eram as formas de disseminação, e quais eram os riscos com relação ao sistema carcerário, por meio de referências científicas". 

A iniciativa partiu de uma angústia. "Os presídios são um barril de pólvora para a disseminação desse vírus. O Estado de coisas inconstitucional, que a ADPF 347 fala, irá ajudar a pandemia a se espalhar e a produzir mortes em massa. Estamos em um momento de isolamento social com cooperação, porque existe uma compreensão de que essa pandemia tem efeitos coletivos às vezes muito mais pesados do que os efeitos que as pessoas vão sustentar individualmente".

Machado diz que, com o seu modelo, tentou mostrar que há uma percepção mundial de que o encarceramento em massa terá consequências terríveis dentro e fora dos presídios.

"O nosso Judiciário, assim como o senso comum, está em um momento bem avesso a qualquer tipo de reflexão sobre a urgência de medidas para combater o número alto de prisões. Ao mesmo tempo, por causa da forma que essa pandemia se dissemina, a sociedade será cobrada pelo encarceramento em massa e por ser conivente com ele", afirma.

E o futuro?
Tanto a advogada como a defensora pública acreditam que o modo como o país está tratando a questão carcerária em tempos de pandemia pode gerar efeitos que vão perdurar mesmo depois que o surto passar.

Um dos motivos para isso, dizem, é que os problemas do encarceramento em massa estão ficando mais claros. Além disso, também é evidente que medidas poderiam ter sido tomadas antes, e não apenas durante o surto. 

"Eu espero que esse espírito humanitário mais generalizado, que parece estar sendo um pouco a tônica de algumas pessoas, de alguns setores, contribua para uma reflexão mais profunda sobre os efeitos do encarceramento em massa. Em um plano mais subjetivo, a população está sentindo o quanto a experiência do isolamento social é dura e difícil. Espero que olhem com mais empatia para quem está vivendo o cárcere", afirma Machado.

Já para Severo, toda a situação catastrófica que o mundo está experimentando talvez gere uma evolução no sistema de justiça. "Eu nunca mais vou ser a mesma defensora nos processos criminais depois da pandemia. O olhar é diferente. A gente precisa ficar mais atento, sair de uma posição de inércia para assumir uma posição proativa, intransigente contra o encarceramento em massa". 

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