Direito Civil Atual

Os seguros privados cobrem eventos associados a pandemias?

Autor

  • Thiago Junqueira

    é doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro mestre em Ciências Jurídico-Civilísticas pela Universidade de Coimbra professor convidado da FGV Direito Rio da FGV Conhecimento e da Escola de Negócios e Seguros diretor de Relações Internacionais da Academia Brasileira de Direito Civil advogado e sócio de Chalfin Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

1 de abril de 2020, 11h43

Ficaram eternizadas as palavras ditas por Cuthbert Heath em 1906, após terremoto com magnitude 8,25 na escala Richter, seguido de três dias de incêndios que devastaram a cidade de São Francisco, na Califórnia: “Paguem todos os segurados na íntegra, independentemente dos termos de suas apólices”. A atitude do referido subscritor inglês, considerado um dos principais nomes dos seguros, contribuiu para que o grupo segurador Lloyd’s of London se consolidasse no mercado dos Estados Unidos da América.1

Em tempos de pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2), há crescente apelo político e social para que semelhante medida seja tomada pelo setor de seguros brasileiro. Seria esse, porém, o melhor caminho? Antes de se responder à pergunta em tela, afigura-se medida essencial esquadrinharem-se os seguintes pontos: i) os riscos relacionados a pandemias costumam ser garantidos por contratos de seguros privados?; ii) existem atos normativos sobre o tema no Brasil?; iii) quais têm sido as respostas das seguradoras e da SUSEP aos recentes acontecimentos?

De partida, convém relembrar que existem diversos seguros dos ramos pessoa e dano que serão impactados por eventos associados à pandemia. Caso se mantenham a estimativa – relativamente baixa – de letalidade da doença e o lockdown (paralisação geral da economia), é bem provável que riscos relacionados ao inadimplemento de obrigações e danos patrimoniais (v.g., lucros cessantes ocasionados pela interrupção da produção nas indústrias) despertem disputas jurídicas com montas significativamente mais elevadas do que as relacionadas aos gastos de saúde dos segurados/consumidores. Entre os diversos seguros afetados, destaquem-se os de: i) vida; ii) saúde; iii) viagem; iv) garantia; v) educacional; vi) D&O e vii) riscos operacionais.

Apesar de não haver a proibição e, tampouco, uma obrigação legal de cobertura pelo segurador, é praxe no mercado a exclusão de riscos em caso de sinistros associados a epidemias e pandemias declaradas por órgãos competentes. Argumenta-se, nesse sentido, que, se assim não fosse, a estabilidade financeira e a capacidade de pagamento de reivindicações das seguradoras ficariam fortemente comprometidas, tendo em vista a grande concentração, no tempo e espaço, de sinistros com mensuração atuarial praticamente inalcançável.

Ao tratar da exclusão em tela, Bruno Miragem destaca que o “seu fundamento legítimo é evitar que eventos cuja extensão imprevista supere de modo expressivo o cálculo do risco originalmente definido pela técnica atuarial, comprometa a solvência do segurador”.2 De fato, é tudo, menos simples, a inserção da cobertura de pandemia na lógica dos seguros – de um lado o pagamento de prêmios, relativamente baixos, por muitos segurados e, do outro, a efetiva cobertura pelo segurador de reivindicações, eventualmente elevadíssimas, de alguns segurados, ou seja, daqueles que vierem a sofrer um sinistro.

Como mensurar as possíveis perdas oriundas de uma pandemia? Como controlar a taxa de sinistralidade da carteira de clientes em momentos tão atípicos? Visando-se a contornar tais dificuldades, é usual, como se disse, constar nas apólices de seguros a exclusão de riscos de pandemia e outros (v.g., guerras e terremotos) que teriam impactos devastadores no grupo segurado e na sociedade. Seriam tais exclusões, porém, incontestáveis?

O necessário controle de merecimento de tutela da referida cláusula contratual de exclusão de riscos – nas mais variadas modalidades de seguro – não pode perder de vista o tratamento normativo da questão no País. Embora não dê a última palavra, frise-se, a sua consideração é racionalmente impositiva para a solução do problema.

Nesse pano de fundo, urge, desde logo, reconhecer-se a permissibilidade da exclusão da cobertura de pandemia pelos dispositivos normativos e medidas administrativas da SUSEP. Ao regular os planos de microsseguro de pessoas, o art. 12, inc. I, al. d), da Circular SUSEP nº 440, de 27 de junho de 2012, por exemplo, autoriza, de modo expresso, a exclusão de riscos causados por “epidemia ou pandemia declarada por órgão competente”. No que toca ao seguro de pessoas, os principais atos normativos são omissos; o item 69 da designada “Lista de verificação” (versão de setembro/2012), que traz requisitos para o envio de novos planos de seguro de pessoas à SUSEP (em busca da aprovação de sua comercialização), aponta, todavia, o seguinte: “Riscos excluídos – Epidemias e Pandemias (Orientação da Procuradoria Federal junto à SUSEP). Caso a sociedade seguradora queira excluir a morte do segurado decorrente de epidemias ou pandemias, deverá redigir: ‘epidemias e pandemias declaradas por órgão competente’”.

Isso basta para reforçar a conclusão já enunciada: em condições normais de temperatura e pressão, o segurador possui respaldo da SUSEP para que a delimitação do seu risco contratual não agasalhe eventos associados a epidemias e pandemias. Seria tal respaldo, no entanto, suficiente? Dito de outra forma: o segurador poderá escudar-se do pagamento de indenizações associadas à pandemia da Covid-19 com base em cláusula de exclusão de riscos imposta ao segurado em contrato por adesão?

Como nunca havia sido posta à prova, praticamente inexistiu discussão jurídica sobre a efetiva validade dessa exclusão à luz dos preceitos do Código Civil, do CDC e da legalidade constitucional. Há nítida tendência de que, nos próximos meses, o assunto ganhe protagonismo no mercado e no Judiciário. Conforme espirituosa afirmação de Luc Mayaux: “Enquanto o coronavírus coloca a França em quarentena, advogados se isolam para trabalhar no assunto”.3

As autoridades brasileiras, nesse sentido, poderiam contribuir para o alcance de solução menos belicosa do que a que parece se avizinhar. Diferentemente do que ocorreu, por exemplo, em terras lusitanas, com manifestações da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões e da própria Associação Portuguesa de Seguradores, até o momento a SUSEP e a CNseg não se pronunciaram sobre o tema da cobertura de sinistros relacionados à Covid-19.4

Tem sido noticiado, nos últimos dias, que algumas seguradoras assumiram o compromisso público de cobrir a morte de segurados ocasionadas pela Covid-19. Tal medida vai ao encontro de apelo feito pela Federação Nacional dos Corretores de Seguros Privados (Fenacor), em comunicado à sociedade, no qual clama às seguradoras, particularmente àquelas que atuem na área de “proteção da vida e da saúde das pessoas”, que não se socorram de “quaisquer cláusulas de exclusão ou restritivas de direitos relacionadas às epidemias ou pandemias”.5

Quase na mesma velocidade da expansão do vírus, surgiram propostas legislativas que visam a obrigar as seguradoras a garantir as mortes causadas por pandemias, tal qual a Covid-19, nos seguros de vida.6 De igual sorte, começa a ganhar eco a defesa de que o Judiciário deveria afastar a aplicabilidade das cláusulas de exclusão de riscos. Antes da tomada de medidas precipitadas, porém, o cenário deve ser analisado de forma sóbria e individualizada.

Assim como foi considerada infeliz a manifestação de algumas autoridades defendendo que a economia não poderia ficar suspensa em virtude de um “resfriadinho”, não se deve endossar acriticamente a afirmação de que o segurador não poderia negar cobertura por um sinistro associado a uma “gripe”. Para além dos gastos com a liquidação dos sinistros, a forte desvalorização das bolsas de valores tende a impactar as reservas técnicas dos seguradores e a diminuir consideravelmente o retorno de investimentos feitos com os prêmios dos segurados. Ainda que se argumente que os resseguradores e retrocessionários contribuirão na quitação de indenizações, o afastamento de cláusula de exclusão de riscos, em tempos de sinistros abundantes como o atual, é uma medida séria, e não deve ser feita sem a devida reflexão.

Nas relações de consumo, o cumprimento do dever de informação pelo segurador (art. 30 c/c art. 46 do CDC) e a abusividade da cláusula de exclusão de responsabilidade disposta em um contrato por adesão (art. 51 do CDC) estão entre as questões a gerar mais embates. Para se ficar no exemplo de escola, o falecimento, na sequência de uma infecção pela Covid-19, provavelmente acabará sendo coberto pelos seguradores, a despeito de eventual cláusula que estipule o contrário.

Tal relativização da exclusão de cobertura não deverá ser considerada uma “confissão de culpa” do segurador, gerando-se uma aplicação automática do mesmo raciocínio a outras modalidades. Ora, é reconhecida, pela jurisprudência do STJ, a especialidade das relações de consumo de seguro de vida,7 o que permite um maior espaço de manobra da solidariedade na base mutualística desse seguro.

Navegando em outras águas, a cobertura de interrupção de negócios (lucros cessantes) nos seguros de riscos operacionais demonstra-se um terreno fértil para discussões jurídicas atinentes à Covid-19. Em que pese a cobertura do segurador geralmente se restringir a avarias, perdas e danos materiais, decorrentes de acidente de origem súbita e imprevista, causada diretamente a bens segurados, a falta de clareza de algumas apólices tende a gerar disputas nada desprezíveis. Cite-se, à guisa de ilustração, o ingresso de demanda, na Corte de Oklahoma, por parte de um cassino, requerendo lucros cessantes das seguradoras pela interrupção de suas atividades.8

Outro campo que envolve quantias volumosas no setor de seguros internacional é o do seguro para eventos – que, em alguns casos, garante expressamente riscos associados a pandemias. De acordo com analistas, apenas o adiamento das Olimpíadas de Tóquio gerará uma obrigação de dois bilhões de dólares aos seguradores (e resseguradores).9

Tudo isso a demonstrar que as mais variadas modalidades de seguro serão impactadas e que as seguradoras terão de fazer um gerenciamento de riscos – financeiro e reputacional – deveras cuidadoso.

Assim como a maioria das áreas da economia, o setor segurador não está imune à crise sistêmica. Se é bem provável que, daqui para a frente, boa parte de toda essa celeuma se resolverá via subscrição – com o aumento geral de prêmios para a inclusão da cobertura de riscos ligados a pandemias – ou com a implementação, conforme proposto pelo U.S. House Financial Services Committee, de um pool de resseguro obrigatório de risco pandêmico,10 no atual momento a situação afigura-se bastante incerta.

A sociedade encontra-se diante de desafios sem precedentes, e não há como se projetar o efetivo impacto do novo coronavírus nas relações securitárias. O dificultoso equilíbrio entre a proteção do segurado e da seguradora (bem ainda, da comunidade segurada) dependerá de uma atuação certeira – sopesando-se os interesses contrapostos – pela SUSEP e o Judiciário, para além dos próprios segurados e seguradores – que deverão negociar de boa-fé cada regulação de sinistro.

Voltando os olhos para o caso de São Francisco, naquela ocasião se discutiu a respeito da cobertura, no seguro residencial, de incêndio (risco coberto) causado na sequência de terremoto (risco contratualmente excluído). Apesar de a passagem ter se tornado folclórica, o ato solidário de Cuthbert Heath não se encaixa facilmente no presente. Mesmo que astronômicas (estima-se que metade da população havia ficado sem lar e mais de 80% da cidade fora destruída), ele foi capaz de mensurar o tamanho de suas perdas, ao contrário do que, até onde vai a vista, ocorre na quadra atual.

O que não costuma ser lembrado é que ao menos doze seguradoras faliram no episódio e vários segurados também foram prejudicados.11 Por isso mesmo, espera-se que a ainda incerta resposta à pergunta que intitula estas notas seja alcançada de forma técnica, atenta às particularidades de cada hipótese fática, e que, na sua busca, não se desconsidere antigo ensinamento do médico suíço Phillipus von Hohenheim (1493-1541): o que diferencia o remédio do veneno é a dose.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA,UFRJ e UFAM).


1 “Como o terremoto de São Francisco mudou o Lloyd’s e o setor de seguros? A atitude de Heath em relação às reivindicações de São Francisco foi recompensada em benefício do mercado de seguros de Londres. Suas ações destacaram a excelente reputação do Lloyd’s de pagar reivindicações válidas – uma reputação que ainda existe hoje – e os negócios prosperaram. […] O terremoto acabou custando ao Lloyd’s mais de US$50 milhões – uma soma impressionante naquela época e equivalente a mais de US$1 bilhão em dólares de hoje”. Cf.: 4BUSINNES. Famous Insurance Claims of The Past. Disponível em: https://4-business.co.uk/2019/12/10/famous-insurance-claims-of-the-past/. (Tradução livre).

2 MIRAGEM, Bruno. Nota relativa à pandemia de coronavírus e suas repercussões sobre os contratos e a responsabilidade civil. Revista dos Tribunais, Rio de Janeiro, vl. 1015, p. 4, maio 2020 (no prelo).

3 MAYAUX, Luc. Coronavirus et assurance. La semaine juridique – Edition générale, nº 11, 16 mars 2020. Disponível em: http://www.tendancedroit.fr/wp-content/uploads/2020/03/LIP-MAYAUX.pdf. Em grande medida, a afirmação pode ser transposta ao Brasil.

4 Cf., respectivamente: ASF. Alertas ao consumidor – Covid-19. (https://www.asf.com.pt/.); e APS. Coronavírus: posição do Setor Segurador (https://www.apseguradores.pt/pt/.). Sem que se possa aprofundar o debate, registre-se que, no âmbito da saúde suplementar, a ANS adotou, no dia 12 de março último, resolução normativa que torna obrigatória a cobertura de testes diagnósticos para infecção pela Covid-19 (cf. Resolução Normativa nº 453).

5 Cf. https://www.fenacor.org.br/noticias/comunicado-a-sociedade-e-a-imprensa.

6 Cf. https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/12/senadores-apresentam-propostas-para-enfrentar-pandemia-do-coronavirus.

7 Por todos, STJ, AgInt no REsp 1.728.428/SC, 3ª turma, Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 25/02/2019.

8 BARLYN, Suzanne. UPDATE 1-Native American casino owner sues Lloyd's, AIG over coronavirus losses. Disponível em: https://www.reuters.com/article/health-coronavirus-insurers-idUSL1N2BH1SQ.

9 HAY, Laura. Do insurers have COVID-19 covered? Disponível em: https://home.kpmg/xx/en/home/insights/2020/03/do-insurers-have-covid-19-covered.html.

10 Cf. BUENO, Denise. EUA estudam criar seguro obrigatório, com subsídios para pandemias. Disponível em: https://www.sonhoseguro.com.br/2020/03/eua-estudam-criar-seguro-obrigatorio-com-subsidios-para-pandemias-ficaadica/.

11 CENICEROS, Roberto. Decisions to pay claims from quake were momentous. Disponível em: https://www.businessinsurance.com/article/20060416/story/100018725/decisions-to-pay-claims-from-quake-were-momentous.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito Civil pela Uerj, mestre pela Universidade de Coimbra, professor do ICDS e da Escola Nacional de Seguros e sócio de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!