Consultor Tributário

Autovinculação do lançamento tributário e controle de revisão no processo administrativo

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

1 de abril de 2020, 17h39

Spacca
O lançamento tributário é um ato administrativo que gera, por força do princípio de legalidade, para todos os agentes da Administração Pública, um dever de controle e de autovinculação ao seu conteúdo, tanto por seu conteúdo quanto pelo procedimento adotado para sua formação. Questão recorrente é saber se autoridades administrativas, como julgadores em tribunais administrativos, têm poderes para modificar os atos de lançamento, e, se sim, em qual extensão.[1]

Lançamentos tributários, quanto à vinculação, são típicos “atos próprios” que não podem conviver com decisões contraditórias da Administração Tributária. A autovinculação, como efeito inerente ao ato de lançamento, exclui os conflitos de subjetividades por parte de outras autoridades.

Decorrem do lançamento  pelo menos duas consequências de autolimitação administrativa: a) autovinculação imediata, que impede qualquer outra autoridade de pretender modificar o lançamento tributário, o que vale para sua “motivação” ou para a determinação dos fatos geradores; e b) autovinculação mediata, que se aplica às autoridades julgadoras no processo administrativo quanto aos limites para a motivação vinculada no controle de legalidade material.

A autovinculação do lançamento tributário tem como fundamento que a Administração não pode agir contra os atos próprios. Deveras, a autovinculação da Administração Pública exige um dever de coerência nas decisões administrativas e veda a existência de decisões divergentes de um mesmo órgão ou de distintos órgãos sobre o mesmo sujeito (ou sujeitos, quando em situações equivalentes), semelhante situação fática e idêntica matéria ou regras aplicáveis.[2]

Nesta dinâmica, ao contribuinte cabe o direito de proteção de expectativas de confiança legítima pelo princípio de autovinculação da Administração Pública, pois deve-se assegurar ao administrado o controle sobre atos de distintas autoridades sobre situação já tutelada pela Administração.

Assim, da natureza de ato vinculado, inerente ao ato administrativo de lançamento, deflui uma vinculação para toda a Administração, cuja desconstituição ou modificação somente se pode operar nos limites dos procedimentos e condições entabulados pelo ordenamento. 

A vinculação à lei em matéria tributária manifesta-se de variadas formas, podendo-se mencionar: a reserva legal para a instituição e majoração de tributos; a constituição de créditos (respaldo legal do lançamento tributário);  a adequação da legislação tributária à própria Constituição Federal (regras de competência e garantias fundamentais) e o primado da lei na função regulamentar, a impedir que atos infralegais onde as leis são exigidas.

Diante disso, mais do que decorrência da legalidade, é do princípio da moralidade administrativa que decorre a autovinculação administrativa dos lançamentos de tributos. E isso vale, inclusive, para os atos de controle, na sua revisão ou mesmo para o processo administrativo, os quais somente podem “rever” ou “julgar” sua forma ou seu conteúdo nos limites entabulados por lei.

A autoridade julgadora tem como objeto dos seus fundamentos de decidir os fatos e a legalidade, é certo, mas no limite do quanto tenha sido apurado pela autoridade lançadora, pois julga a irresignação do contribuinte manifesta na impugnação ou manejada por recursos administrativos.

Por isso, a decisão que possa ser empregada pela autoridade julgadora consistirá em (1) anular o lançamento tributário por vício formal; (2) admitir as razões do contribuinte, no devido processo com contraditório e ampla defesa, para declarar o dever de eventuais modificações do lançamento a serem feitas a posteriori pela autoridade lançadora; ou (3) manter a autuação tributária como fora fixada pela autoridade competente pelo lançamento.

As motivações e provas apuradas pela autoridade do lançamento tributário não podem sofrer mutações pelos julgadores, a converter o “processo administrativo” em procedimento de “revisão” do lançamento, por novas argumentações ou seleção arbitrária de critérios pelas autoridades julgadoras.  

Deveras, o ato administrativo do lançamento tributário não tem apenas a função de aplicar a lei tributária (dever-poder), mas cumpre ainda o importante papel de dar estabilidade e segurança jurídica ao contribuinte, que passa a ter a certeza de quanto deve de tributo e de quanto não deve.[3]

Assim, se o ato administrativo vinculado tem a “função de concretizar e de estabilizar as relações jurídicas entre o Estado e o cidadão particular”, como bem resume Hartmut Maurer,[4] essa qualidade estabilizadora da relação jurídica oferece-se ao cidadão também como expectativa de confiança no próprio Estado Democrático de Direito.

Por isso, tem-se a proibição, para as autoridades administrativas, em relação a um mesmo sujeito passivo, de efetuar qualquer modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, sobre os parâmetros adotados naquele ato de constituição do direito. Por isso, pelo art. 146 do CTN, a modificação por ato de ofício ou por decisão judicial ou administrativa só terá eficácia para os fatos geradores ulteriores à sua introdução. A modificação de critérios jurídicos somente pode projetar efeitos para o futuro. Caso contrário, certamente atingiria ato jurídico perfeito ou direito adquirido do contribuinte.

O alcance do artigo 146 do CTN pode ser empregado a qualquer processo administrativo ou judicial, ao consagrar típico caráter de efeito ex nunc para as modificações de critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento, as quais somente valeriam para o futuro, sem qualquer concessão de valência para o passado, pela afetação inexorável à vedação da irretroatividade do não benigno e à proibição de comportamentos contraditórios,[5] ambos inerentes à segurança jurídica do ordenamento.

Este efeito retroativo, pelo quanto causa de dano à segurança jurídica, é expressamente proibido pelo artigo 146 do CTN, a saber:

“Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.”

À luz do art. 146 do CTN, a mudança de critério jurídico adotado pelo Fisco não autoriza a revisão de lançamento no julgamento de segunda instância, pois somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente a sua introdução.

Por força da proteção de autovinculação dos atos administrativos, por iniciativa de ofício da autoridade administrativa (CTN, art. 145, III), a autoridade tributária competente deverá comprovar se está diante de alguma das hipóteses taxativamente arroladas no art. 149 do CTN, o qual não contempla, em conjunto com o art. 146 do CTN, hipótese de revisão para fins de utilização retroativa de critério jurídico novo.  

Como diz José Souto Maior Borges, com acuidade: “O art. 146 denega a atribuição de efeitos retrospectivos ao ato jurisdicional em situações sub iudice antes não gravadas pelo tributo”.[6] Consagra-se, aqui, o efeito ex nunc para todas as decisões de tribunais em relação ao mesmo contribuinte.  

Pela autovinculação do ato administrativo, o lançamento somente pode ser “revisto” em angustos limites entabulados pelo ordenamento jurídico. Tamanha a importância do respeito conferido pelo legislador ao controle da autovinculação, que este usou do Código Tributário Nacional, logo, matéria reservada à lei complementar, para definir os parâmetros de revisibilidade do ato de lançamento.[7]

 Independentemente de se falar na distinção entre “erro de fato” e “erro de direito”,[8] seja qual for a modalidade, para o conhecimento de situação “de fato”, ou prova desta, ex vis do art. 149, VII; e quanto aos critérios jurídicos (situação “de direito”), conforme o art. 146 do CTN, modificações dos critérios jurídicos somente podem valer para fatos jurídicos futuros.  

O direito à defesa é a resposta da democracia contra os arbítrios do Estado, o que reclama efetividade plena, como norma constitucional a ser concretizada em todos os casos. É limitada, portanto, a possibilidade de alteração dos lançamentos fiscais, por iniciativa de ofício da autoridade administrativa (CTN, art. 145, III), que, para tanto, deverá comprovar estar diante de alguma das hipóteses taxativamente arroladas no art. 149 do CTN, o qual não contempla, em conjunto com o art. 146 do mesmo diploma, hipótese de revisão para fins de utilização retroativa de critério jurídico novo. E, por critério jurídico, entende-se a motivação de uma dada atuação fazendária, à luz do ordenamento em vigor, para fins de avaliação de situações da vida reputadas como fato gerador de tributos.

 


[1] Cf. CALMES, Sylvia. Du principe de protection de la confiance légitime en droits allemand, communautaire et français. Paris: Dalloz, 2001. MAURER, Hartmut. Elementos de direito administrativo alemão. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2001. MODESTO, Paulo. Autovinculação convencional da administração pública: o contrato de gestão no interior da administração pública brasileira. Revista Internacional de Contratos Públicos. Salvador: Instituto Brasileiro de Direito Público – IBDP, n.1, fev. 2013, p. 1-41. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do direito público. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. OTERO, Paulo. Legalidade e administração pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2003. HEINEN, Juliano. Autolimitação administrativa e segurança jurídica. In: Direito, Estado e Sociedade. RJ: PUC/RJ 2018, n. 52, jan/jun, p. 160-178. SILVA, Almiro do Couto e. O princípio da legalidade da administração pública e da segurança jurídica no estado de direito contemporâneo. Revista de direito público. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 84, 1987, p. 46-63. SADDY, André. Limites à tomada de decisão e controle judicial da Administração Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

[2]Cf. MAURER, Hartmut. Direito administrativo geral. Tradução de Luís Afonso Heck. Barueri: Manoel, 2006, p. 706.

[3] TIPKE, Klaus & LANG, Joachim. Direito Tributário, volume III. Porto Alegre: Fabris, 2014, p. 253.

[4] MAURER, Hartmut. Contributos para o direito do estado. HECK, Luís Afonso (Trad.). Livraria do Advogado, 2007. p. 108. Cf. MELIS, Giuseppe. L'Interpretazione nel diritto tributario. Padova: CEDAM, 2003. p. 514. GARCÍA NOVOA, César. El principio de seguridad jurídica en materia tributaria, Madrid: Marcial Pons, 2000, p. 77.

[5] Nesse sentido: NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos. Coimbra: Almedina, 1998. p. 409.

[6] BORGES, José Souto Maior. O princípio da segurança na Constituição Federal e na Emenda Constitucional 45/2004. Implicações fiscais. In: Pires, Adilson Rodrigues; Tôrres, Heleno Taveira (org.). Princípios de direito financeiro e tributário: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 268. 

[7] Como afirma Rubens Gomes de Sousa: “Este conceito do fundamento do revisibilidade, constituindo exceção ao princípio, que deixamos assentado, do direito vinculativo do lançamento em todos os demais casos, excluiria, notadamente, a revisibilidade baseada em eventual divergência entre os conceitos jurídicos adotados pelo contribuinte e os adotados pelo fisco na interpretação ou conceituação, para efeitos fiscais, dos fatos pertinentes ao lançamento, quando a aludida divergência se traduza por uma mudança de orientação do fisco, posterior a um primeiro lançamento em que tenham sido adotados ou aceitos pelo fisco conceitos jurídicos que este subsequentemente venha a repudiar.” SOUSA, Rubens Gomes de. Estudos de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 1950, p. 235.

[8] Cf. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 705.   

Autores

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    é professor titular de Direito Financeiro e livre-docente em Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Advogado, foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

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