Opinião

Uso ilegítimo de convenções internacionais para decretação de prisões na "lava jato"

Autores

  • Michelle Aguiar

    é advogada Criminalista. Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa. Especialista em Processo Penal e Garantias fundamentais pela ABDConst (Academia Brasileira de Direito Constitucional). Graduada no curso de bacharelado em Direito pelo Ibmec (Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais) do Rio. Vice-presidente da Comissão Nacional de Investigação Defensiva e Inovações Tecnológicas da Abracrim (Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas). Vice-presidente da Comissão de Investigação Defensiva da OAB-RJ. Diretora de pesquisa da Abracrim (Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas) do Rio. Diretora de pesquisa da Abracrim Mulher Rio.

  • Alexandre M. Pontes

    é advogado criminalista; graduado em Direito e em Jornalismo pela PUC-RJ; mestre em Ciências Criminais na Universidade Cândido Mendes; membro da REDEJUR- Associação Brasileira de Advogados Empresariais; especialista em compliance pelo IBC.

30 de setembro de 2019, 6h56

No âmbito da chamada “operação lava jato” no Rio de Janeiro tem sido utilizada de forma contínua Convenções Internacionais contra a Corrupção e o Crime Organizado Transnacional como fundamentos normativos supostamente capazes de embasar a decretação da prisão preventiva para a “garantia da ordem pública” na sua função teleológica que visaria obstar a “reiteração delitiva” do agente. (art. 312, CPP).

A título exemplificativo colaciona-se abaixo trecho extraído de um dos decretos prisionais proferidos pelo mencionado juízo:

No mesmo sentido, a Convenção Interamericana Contra a Corrupção, aqui promulgada pelo Decreto nº 4.410, de 7 de outubro de 2002, deixa claro o entendimento comum dos Países de nosso continente de “que a corrupção solapa a legitimidade das instituições públicas e atenta contra a sociedade, a ordem moral e a justiça, bem como contra o desenvolvimento integral dos povos”.

Cabem mais algumas considerações que considero pertinentes a partir dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.

De fato, uma vez ratificadas pela República Federativa do Brasil, as Convenções internacionais assumem o mesmo status das demais leis federais (Resp. 426495/PRSTJ, Rel. Min Teori Zavaski, DJ 25/08/2004). Em sendo assim, é de rigor a observância das referidas Convenções Contra a Corrupção, bem como da Convenção da ONU contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção Palermo – Decreto 5.015/2004), que trazem disposições específicas sobre a prisão cautelar no curso de processos criminais relativos a esses temas.

Dispõe o artigo 30, item ‘5’, da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção: 5. Cada Estado Parte terá em conta a gravidade dos delitos pertinentes ao considerar a eventualidade de conceder a liberdade antecipada ou a liberdade condicional a pessoas que tenham sido declaradas culpadas desses delitos.

Repare que o instrumento normativo internacional, cujo texto genérico se explica pela possibilidade de ser observado por muitos e distintos sistemas jurídicos ao redor do mundo, permite também sua incidência a um momento processual anterior a eventual condenação. Ou seja, o que a norma convencional estatui é que, em caso de processo por crimes de corrupção e outros relacionados, o reconhecimento da gravidade do caso deve dificultar a concessão de liberdade provisória, consideradas sua lesividade extraordinária para a sociedade.[3] (grifos nossos)

Conforme os decretos prisão, as denúncias ofertadas pelo Ministério Público Federal tratariam de uma espécie de “corrupção qualificada”, o que habilitaria a utilização da carga normativa extraída das Convenções Internacionais contra a Corrupção e o Crime Organizado Transnacional incorporadas ao ordenamento jurídico brasileiro.

Não obstante, a pretensão decisória inspirada por esse desiderato não ultrapassa os limites impostos pelo Controle de Convencionalidade junto ao art. 312, do CPP, a partir da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).

CADH e o Artigo 312 do CPC
Após a entrada em vigor da Emenda Constitucional 45/2004, o e. Supremo Tribunal Federal definiu que os Tratados Internacionais de Direitos Humanos incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro sem a observância do art. 5º, § 3º, da CR/88, possuem o status normativo de norma supra legal (acima da legislação ordinária federal).[4]

Já os decretos presidencial e legislativo[5] que internalizam as Convenções e Tratados Internacionais que não disponham sobre direitos humanos possuem o status normativo de lei federal.[6]

De seu turno, a CADH cuida em preceito específico tanto do regramento interno do Estado parte a respeito da privação da liberdade física do indivíduo (hipótese da prisão preventiva), quanto da orientação interpretativa Pro Homine de suas normas, inerente ao estatuto jurídico daquela Convenção e vinculativa aos Estados que a ratificaram.

Em seu art. 7º, ao tratar do “Direito à liberdade pessoal”, a CADH prevê que “2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas. (…)” De seu turno o art. 29 dispõe que: Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de a) permitir a qualquer dos Estados-partes, grupo ou indivíduo, suprimir o gozo e o exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista’; ou ‘d) excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacionais da mesma natureza.’” (grifamos)

Com efeito, o manuseio das disposições normativas das Convenções Internacionais contra a Corrupção e o Crime Organizado Transnacional[7] (todas da hierarquia de Lei Ordinária Federal) não passa pelo Controle de Convencionalidade junto aos artigos. 7.2 e 29, ‘a’ e ‘d’, da Convenção Americana de Direitos Humanos. Seja porque o art. 7.2 da CADH veda que a liberdade física do indivíduo possa ser suprimida quando a lei que a autorize não tenha sido promulgada de acordo com a Constituição Política do Estado parte, seja em virtude de que o art. 29, ‘a’ e ‘d’ da CADH obsta a que as suas disposições sejam interpretadas no âmbito do Estado parte para o efeito de supressão da liberdade do indivíduo de modo a limitar algum de seus preceitos e garantias.

A inspiração da prisão preventiva sob o argumento de garantia da ordem pública sem fundamento em lei ordinária promulgada consoante o Texto Constitucional (art. 59, III, CR/88[8]) não supre a exigência do art. 7.2 da CADH. A expressão “lei” referida por esse preceito alude à exigência lei ordinária, e não à norma produzida por intermédio de Decretos Presidencial e Legislativo mediante a incorporação ao ordenamento brasileiro de Convenções e Tratados Internacionais contra a Corrupção e Organização Criminosa. Interpretação diversa limitaria o alcance da garantia insculpida pelo art. 7.2 da CADH e infirmaria o Princípio Pro Homine disposto pelo art. 29, ‘a’ e ‘d’, da mesma CADH.

Isso porque a prisão preventiva para a garantia da ordem pública sob o argumento de se obstar a reiteração delitiva possui natureza eminentemente penal[9]. A instrumentalização da prisão, nesse caso, não visa assegurar o resultado/provimento final de um processo penal, mas sim antecipar um dos efeitos da própria pena, qual seja, a prevenção especial sobre o agente.

Gustavo Badaró destaca a natureza essencialmente penal do pressuposto cautelar da garantia da ordem pública, por se tratar de “uma nítida e inconteste antecipação parcial de um dos efeitos da condenação penal, qual seja, de prevenção especial”, razão pela qual parece evidente que nessas situações a prisão não é um ‘instrumento a serviço do instrumento’, mas uma antecipação da punição, dita por razões de ordem substancial e que pressupõe o reconhecimento da culpabilidade.”[10](grifamos)

Revelada a natureza substancialmente penal do pressuposto cautelar para a garantia da ordem pública que visaria travar a reiteração delitiva, a orientação principiológica de interpretação dessa norma é extraída do Direito Penal. [11]

Assim como a irretroatividade penal mais gravosa, a exigência de lei formal em sentido estrito para a tipificação de delitos e cominação de penas na esfera penal se alinha à principiologia do Direito Penal, diferenciando-a daquela que é específica ao Direito Processual Penal. Nessa linha, o e. Supremo Tribunal Federal[12] já fixou o entendimento pelo qual os Tratados e Convenções Internacionais não podem dispor sobre matéria penal.

Ainda que assim não fosse, afora a discussão sobre o caráter híbrido do art. 312, do CPP, Fauzi Hassan Choukr[13], ao discorrer sobre o art. 2º do Código de Processo Penal, ensina que a própria norma processual penal não pode ser produzida por qualquer outro processo legislativo que não aqueles previstos na CR/88 para a elaboração das leis ordinárias.

Assim, qualquer um dos pressupostos cautelares previstos pelo art. 312, do CPP, não podem receber um “tratamento qualificado” decorrente da internalização de Convenções e Tratados Internacionais sobre Corrupção e Organização Criminosa, sob pena de se criar, via Poder Judiciário, um pressuposto cautelar inovador e ilegítimo para a decretação da prisão preventiva.

Em suma, para se validar constitucional e convencionalmente leis penais e processuais penais, suas elaborações devem se ater com exclusividade à produção via Congresso Nacional, descabendo ao Poder Judiciário, em sede de prisão preventiva (especialmente para a garantia da ordem pública), se valer de atalhos junto às Convenções Internacionais contra a Corrupção e Organização Criminosa.


[1] A decisão foi proferida no âmbito da chamada Operação Rio 40 Graus, deflagrada em 03 de agosto de 2017.

[2]. RE 466343, Relator(a): Min. Cezar PeluzoTribunal Pleno julgado em 03/12/2008

[3] Neste cerne, ressalta-se que as Convenções e Tratados dessa espécie integram o ordenamento jurídico sem a observância formal de elaboração legislativa inerente às leis ordinárias e complementares, se situando mais próximo das Medidas Provisórias, já que o Decreto Presidencial é condição de validade do seu processo de entrada no ordenamento jurídico brasileiro junto com o Decreto Legislativo. (conforme arts. 49, I, e 84, IV, da CF/88).

[4] Conforme Resp. 426.495/PRSTJ, Rel. Min Teori Zavaski, DJ 25/08/2004.

[5] Em observância à Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, promulgada no Direito brasileiro através do Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006, Convenção Interamericana Contra a Corrupção, aqui promulgada pelo Decreto nº 4.410, de 7 de outubro de 2002 e Convenção da ONU contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção Palermo – Decreto 5.015/2004);

[6] Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: (…) III – leis ordinárias;

[7] O art. 312, do CPP, ao cuidar dos pressupostos cautelares para a prisão preventiva se constitui em norma processual de natureza mista

[8] Medidas Cautelares no Processo Penal, Prisões e suas alternativas – Comentários à Lei 12.403, de 04.05.2011, Coordenação Og Fernandes, ed. RT, 2011, São Paulo, pgs. 212, 213 e 216.

[9]Nesse sentido: PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 28- 29.

[10]“As convenções internacionais, como a Convenção de Palermo, não se qualificam, constitucionalmente, como fonte formal direta legitimadora da regulação normativa concernente à tipificação de crimes e à cominação de sanções penais.” (RHC 121835 AgR, Relator(a): Min. Celso DE Mello, Segunda Turma, julgado em 13/10/2015

[11]Dúvidas não restam quanto a ser a lei ‘ordinária’ a forma obviada pela Constituição para disciplinar o processo penal e, cuja tramitação exige várias intervenções até que se culmine com sua efetiva entrada em vigor (…) não sendo possível, pois, tentar fazer caber a figura infraconstitucional a qualquer custo na ordem constitucional; a operação lógica é a inversa: primeiro o conhecimento da CR (e da CADH) e, depois, a adequação do Código de Processo Penal àquelas normas.” CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal, Comentários Consolidados e Crítica Jurisprudencial. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 11; 17.


Bibliografia:

CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal, Comentários Consolidados e Crítica Jurisprudencial. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional. V.2, Rio de Janeiro: Lumes Juris, 2010.

LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006.

PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012.

PRADO, Geraldo. Medidas Cautelares no Processo Penal, Prisões e suas alternativas. Comentários à Lei 12.403, de 04.05.2011. Og Fernandes (Coord.). São Paulo: , ed. RT, 2011.

Autores

  • é advogada criminalista; graduada pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC/RJ); especialista em Processo Penal e Garantias fundamentais; mestranda pela Universidade Autônoma de Lisboa – UAL; diretora de Pesquisa da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim-RJ); membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM); membro da REDEJUR- Associação Brasileira de Advogados Empresariais; delegada da Comissão de Prerrogativas da OAB/RJ; coautora de diversas obras jurídicas na área criminal.

  • é advogado criminalista; graduado em Direito e em Jornalismo pela PUC-RJ; mestre em Ciências Criminais na Universidade Cândido Mendes; membro da REDEJUR- Associação Brasileira de Advogados Empresariais; especialista em compliance pelo IBC.

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