MP no debate

Lei de abuso de autoridade é ato de abuso de poder parlamentar

Autor

  • Roberto Livianu

    é procurador de Justiça em São Paulo doutor em Direito pela USP presidente do Instituto Não Aceito Corrupção e ex-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático.

30 de setembro de 2019, 9h26

Spacca
É importante a elaboração de uma nova lei 54 anos depois do Decreto-Lei 5898. Sempre defendi punições rigorosas para Promotores de Justiça que abusem do poder. Assim como para Juízes e Policiais. Mas isto deve valer igualmente para Senadores e Deputados, entre outros, não atingidos concretamente por esta nova lei de abuso de autoridade. A lei mal-feita aprovada não visa, infelizmente, atender ao bem comum.

Vale lembrar que na década de noventa, Juízes e membros do Ministério Público travaram na Itália intensa e profunda luta anticorrupção, que levou à prisão ineditamente poderosos nos campos político e econômico, desafiando-se a impunidade.

Na sequência, o corpo político atacado reagiu fortemente e aprovou diversas leis que enfraqueceram e amesquinharam as Instituições do sistema de justiça, contando com a aliada letargia do povo, que não se mobilizou e não reagiu ao letal contra-ataque. Hoje, a Itália ostenta um dos piores níveis de combate à corrupção do continente europeu, tendo ido lamentavelmente ladeira abaixo todas as conquistas bravamente alcançadas pela Mãos Limpas.

Passadas quase três décadas do roteiro italiano, após sete anos do caso mensalão e cinco e meio do início da Lava Jato, forças retrógradas da república brasileira vem cuidando de repetir o filme, aprovando o projeto de lei 7596/17 (originalmente PLS 280/16 – autoria Renan Calheiros), a chamada nova lei de abuso de autoridade é verdadeiro ato de abuso de poder parlamentar.

Visa retaliar, tentando ameaçar e amedrontar membros do MP, Judiciário e da Polícia, o que se evidencia pelas circunstâncias que envolvem a tramitação meteórica e aprovação, nas sombras deprimentes e constrangedoras de uma votação simbólica na Câmara, sem a identificação dos votos dos Deputados, apesar de várias mãos erguidas pedindo a votação nominal, imperando a opacidade, com indisfarçável pretensão de construção de instrumento legal de auto-blindagem.

A mesma opacidade que tinha prevalecido na ALERJ em 2017, quando o Deputado que presidia a sessão impediu que cidadãos ingressassem nas galerias para acompanhar os trabalhos, mesmo munidos de ordem judicial garantidora deste direito elementar, como se o prédio não fosse público – condutas não prevista como crime de abuso de autoridade na abusiva lei aprovada.

Ao mesmo tempo, fala-se em reavivar projeto de Lei que pretende proibir delações de presos, ao arrepio do princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, assim como se fala em amordaçar auditores da Receita Federal (PL 6064/16), cerceando sua autonomia funcional, instituindo a desigualdade de todos perante a lei.

De minha parte, continuo exercendo minhas atribuições exatamente da mesma maneira que o fazia antes da aprovação deste famigerado diploma legal. Lamentavelmente, já se noticia amplamente, no entanto, que muitos magistrados estão determinando a soltura de réus, com menções à nova lei de abuso de autoridade, que não vigora — somente entrará em vigor em janeiro de 2020, 120 dias depois de sua publicação.

O Presidente da República vetou 36 pontos, visando imunizar principalmente a Polícia, mas o Congresso derrubou 18 deles, e, segundo noticiado pelo Estadão, com o aval do próprio Presidente da República ao Presidente do Senado.

Mesmo vetando diversos pontos, a Presidência sancionou diversos dispositivos descabidos, como o artigo 27, que criminaliza a instauração de procedimentos investigatórios, o artigo 28, sobre divulgação de segredos (conduta já punida pelo artigo 325 do Código Penal), o artigo 31, que criminaliza “excessiva duração de investigações” – quem definirá isto?, o artigo 36, que constrange o juiz que determina bloqueio de bens em excesso – o que é excesso? Assim como o 37, que pune pela demora no exame de processos – e se o caso é complexo? Qual o tempo aceitável?

Dentre os vetos derrubados pelo Congresso estão os artigos 9, 30, 38 e 43. Estes e muitos dos mencionados acima são tipos penais abertos e subjetivos, dando margem a abusos no manejo das próprias normas. O artigo 9 prevê penas de 1 a 4 anos para juízes que determinem privação de liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais. Isto nada mais é que criminalização da atividade interpretativa da lei, eliminada dos ordenamentos jurídicos ocidentais democráticos após a Revolução Francesa, no século XVIII.

No artigo 30, novamente se criminaliza a hermenêutica, quando se fala em punir quando faltar justa causa, cujo conceito é totalmente técnico e 100% sujeito a interpretação. Ou seja, o Promotor oferece denúncia criminal entendendo haver lastro probatório, o juiz a recebe, considerando a acusação razoável e, se o Tribunal de Justiça conceder liminar em habeas corpus, interpretando diferentemente a lei, trancando a ação penal, o Promotor e o Juiz viram criminosos, sujeitos à mesma pena de um ladrão que furta.

O artigo 38, de forma anacrônica, institui a mordaça, mesmo diante do princípio constitucional da publicidade e da vigência da lei de acesso à informação pública. Se um Promotor e um Delegado, durante um inquérito policial não sigiloso em andamento, derem entrevista coletiva para, por exemplo, prestar contas à sociedade a respeito de indiciamento realizado, poderão ser punidos com prisão de 6 meses a 2 anos.

No artigo 43, criminalizam-se os atos de violação a prerrogativas de advogados, que merecem respeito e admiração pela importância social de seu trabalho. Mas, por que somente em relação a advogados? E os médicos e jornalistas, por exemplo? Em que país do mundo, violar estas prerrogativas constitui crime?

Fácil perceber que muitas destas normas ferem frontalmente o disposto no artigo 93, IX da Constituição (livre convencimento do Juiz), consagrado pelo STF, bem como a independência funcional destes (art. 95 e 127 da CF) assim como os Princípios de Conduta Judicial de Bangalore (2008), onde se enunciou: “A independência judicial é um pré-requisito do estado de Direito e uma garantia fundamental de um julgamento justo. Um juiz, consequentemente, deverá apoiar e ser o exemplo da independência judicial tanto no seu aspecto individual quanto no aspecto institucional."

O caminho seria a elaboração de um novo texto – tecnicamente cuidadoso, equilibrado e isonômico, incluindo todos debatido de forma democrática e cuidadosa com a sociedade. O caminho que nos resta é a proclamação da inconstitucionalidade de todos os dispositivos afrontosos à Carta Magna. Não nos amedrontemos diante deste monstrengo jurídico, que cairá! Cumpramos a Constituição e nossos deveres, com ética, retidão e lealdade!

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    é promotor de Justiça em São Paulo, doutor em Direito pela USP, presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, ex-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático c Comentarista do Jornal da Cultura.

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