Opinião

A abstrativização do controle difuso já é uma realidade no STF?

Autor

  • Eliseu Antônio da Silva Belo

    é promotor de Justiça do Ministério Público de Goiás pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes-RJ e professor de Direito Constitucional na pós-graduação em Direito Público do Instituto Goiano de Direito (IGD).

30 de setembro de 2019, 6h07

Um dos temas mais instigantes e debatidos do controle de constitucionalidade brasileiro diz respeito ao que se tem denominado de “abstrativização do controle difuso”, no sentido de que, nos últimos anos, tem ocorrido um processo gradual de total equiparação jurídica dos efeitos da decisão proferida no controle difuso de constitucionalidade (inter partes) em relação aos efeitos da decisão adotada pelo STF no controle concentrado e abstrato de constitucionalidade (erga omnes), notadamente no que tange ao plano subjetivo, ou seja, do universo de pessoas que são atingidas por tais decisões.

Esse tema, que havia sido enfrentado pelo STF entre os anos de 2007 a 2014, no longo julgamento da Reclamação 4335/AC, rel. min. Gilmar Mendes, voltou ao cenário jurídico e acadêmico, com acalorados debates e dúvidas, a partir do julgamento conjunto de duas ações diretas de inconstitucionalidade (3406/RJ e 3470/RJ), em novembro de 2017, ambas da relatoria da min.ª Rosa Weber, em que declarada a constitucionalidade da Lei n. 3.579/2001 do Estado do Rio de Janeiro, a qual “proíbe a extração do asbesto/amianto em todo o território daquela unidade da Federação e prevê a substituição progressiva da produção e da comercialização de produtos que o contenham”, conforme noticiado no Informativo STF n. 886.

Isso porque, no aludido julgamento conjunto, “a Corte declarou, também por maioria e incidentalmente, a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei federal nº 9.055/1995, com efeito vinculante e “erga omnes”. O dispositivo já havia sido declarado inconstitucional, incidentalmente, no julgamento da ADI 3.937/SP (rel. orig. min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. min. Dias Toffoli, julgamento em 24.8.2017)” (trecho do Informativo STF n. 886).

Como a declaração de inconstitucionalidade desse dispositivo da citada lei federal se deu de forma incidental e de ofício pelo STF, quatro ministros,[1] a começar pelo min. Gilmar Mendes, resgataram o debate em torno do sentido e alcance da norma prevista no art. 52, X, da Constituição Federal de 1988, segundo o qual “Compete privativamente ao Senado Federal: […]; X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”.

Pretendeu-se, com essa referência, trazer novamente à baila o debate que havia sido encerrado, de forma contrária à posição do min. Gilmar Mendes, na aludida Reclamação 4335/AC, em que a maioria dos ministros negou, de forma clara, a existência de uma suposta “mutação constitucional” da referida norma constitucional, no sentido que foi defendido pelos ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, de que a atribuição do Senado Federal teria passado a ser de mera publicação da decisão de inconstitucionalidade proferida pelo STF, no controle difuso de constitucionalidade. As seguintes passagens do Informativo STF n. 886 deixam esse aspecto muito evidente:

A partir da manifestação do ministro Gilmar Mendes, o Colegiado entendeu ser necessário, a fim de evitar anomias e fragmentação da unidade, equalizar a decisão que se toma tanto em sede de controle abstrato quanto em sede de controle incidental. O ministro Gilmar Mendes observou que o art. 535 do Código de Processo Civil reforça esse entendimento. Asseverou se estar fazendo uma releitura do disposto no art. 52, X, da CF, no sentido de que a Corte comunica ao Senado a decisão de declaração de inconstitucionalidade, para que ele faça a publicação, intensifique a publicidade.

O ministro Celso de Mello considerou se estar diante de verdadeira mutação constitucional que expande os poderes do STF em tema de jurisdição constitucional. Para ele, o que se propõe é uma interpretação que confira ao Senado Federal a possibilidade de simplesmente, mediante publicação, divulgar a decisão do STF. Mas a eficácia vinculante resulta da decisão da Corte.[2] Daí se estaria a reconhecer a inconstitucionalidade da própria matéria que foi objeto deste processo de controle abstrato, prevalecendo o entendimento de que a utilização do amianto, tipo crisotila e outro, ofende postulados constitucionais e, por isso, não pode ser objeto de normas autorizativas. A ministra Cármen Lúcia, na mesma linha, afirmou que a Corte está caminhando para uma inovação da jurisprudência no sentido de não ser mais declarado inconstitucional cada ato normativo, mas a própria matéria que nele se contém. O ministro Edson Fachin concluiu que a declaração de inconstitucionalidade, ainda que incidental, opera uma preclusão consumativa da matéria. Isso evita que se caia numa dimensão semicircular progressiva e sem fim. E essa afirmação não incide em contradição no sentido de reconhecer a constitucionalidade da lei estadual que também é proibitiva, o que significa, por uma simetria, que todas as legislações que são permissivas — dada a preclusão consumativa da matéria, reconhecida a inconstitucionalidade do art. 2º da lei federal — são também inconstitucionais.

Em divergência, o ministro Marco Aurélio afirmou que o fenômeno previsto no inciso X do art. 52 da CF — regra que atende a independência e harmonia entre os poderes — é constitutivo e não simplesmente declaratório, visto que diz respeito à suspensão da execução da lei no território nacional. (destaques nossos).

A partir de então, como dito, alguns professores passaram a defender a ideia de que o STF teria adotado de vez a chamada “teoria da abstrativização do controle difuso de constitucionalidade”, de modo que não mais seria necessário comunicar o Senado Federal para fins do art. 52, X, da Constituição Federal de 1988, a não ser para que este órgão legislativo apenas publicasse, no Diário do Congresso Nacional, a respectiva decisão de inconstitucionalidade da Corte, a qual, independente disso, passaria a ter os efeitos vinculante e erga omnes, tal como se houvesse sido proferida no controle concentrado e abstrato de constitucionalidade.

Cite-se, por exemplo, a posição do nobre juiz federal Márcio André Lopes Cavalcante, reconhecido pelo grandioso trabalho divulgado em seu site “Dizer o Direito”, em comentários que ele fez logo após o julgamento conjunto das ADIs 3406/RJ e 3470/RJ, nos seguintes termos:

Pode-se dizer que o STF passou a adotar a teoria da abstrativização do controle difuso?

SIM. Apesar de essa nomenclatura não ter sido utilizada expressamente pelo STF no julgamento, o certo é que a Corte mudou seu antigo entendimento e passou a adotar a abstrativização do controle difuso.

Em uma explicação bem simples, a teoria da abstrativização do controle difuso preconiza que, se o Plenário do STF decidir a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, ainda que em controle difuso, essa decisão terá os mesmos efeitos do controle concentrado, ou seja, eficácia erga omnes e vinculante.

Para essa corrente, o art. 52, X, da CF/88 sofreu uma mutação constitucional e, portanto, deve ser reinterpretado. Dessa forma, o papel do Senado, atualmente, é apenas o de dar publicidade à decisão do STF. Em outras palavras, a decisão do STF, mesmo em controle difuso, já é dotada de efeitos erga omnes e o Senado apenas confere publicidade a isso.[3]

O objetivo do presente trabalho, todavia, é justamente demonstrar que esse entendimento está completamente equivocado e, por isso, deve ser rechaçado.

Clique aqui para ler o artigo na íntegra.


[1] Os outros três são os ministros Cármen Lúcia, Edson Fachin e Luiz Fux, sendo que nenhum deles desenvolve muito bem o voto quanto a esse aspecto, tendo o min. Luiz Fux, por exemplo, se limitado a dizer o seguinte: “De sorte que eu, adotando essa equivalência do controle difuso e do controle concentrado, entendendo que o artigo 52, X, apenas permite uma chancela formal do Senado – o Senado não pode alterar a essência da declaração de inconstitucionalidade do Supremo -, eu, então, acompanho integralmente o voto da Ministra Rosa Weber […]” (página 88 do acórdão na ADI 3470/RJ).

[2] Quanto ao min. Celso de Mello, é preciso informar, desde já, que ele simplesmente cancelou todos os comentários que fez a respeito do art. 52, X, da Constituição Federal de 1988, antes da publicação dos acórdãos relativos a esse julgamento conjunto, de modo que não se pode mais considerar o registro que ficou apenas no Informativo em questão, conforme será melhor abordado adiante.

[3] Disponível em https://www.dizerodireito.com.br/2017/12/stf-muda-sua-jurisprudencia-e-adota.html, acesso em 9 set. 2019.

Autores

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    é promotor de Justiça do Ministério Público de Goiás; assessor jurídico do procurador-geral de Justiça até março de 2019, com atuação na área de controle de constitucionalidade perante o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.

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