Opinião

Sanções no Procon precisam obedecer ao princípio da presunção de inocência

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29 de setembro de 2019, 6h49

Os atos administrativos sancionadores dos órgãos e entidades administrativas de defesa dos consumidores, como manifestações do poder punitivo do Estado, devem ser examinados mais pela perspectiva constitucional garantista que protege os particulares em geral contra o arbítrio do Estado na imposição de penalidades e menos sob o ponto de vista das conveniências, oportunidades e prerrogativas da Administração Pública.

Nesse sentido, é perfeitamente lógico afirmar que a atuação dos Programas de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon), assim como toda manifestação abarcada pelo denominado Direito Administrativo Sancionador, consoante já manifestado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)[1], deve estar pautada no máximo respeito às mesmas garantias já consagradas no âmbito do Direito Penal, dentre elas, a presunção de ausência de culpa quanto ao resultado danoso decorrente da infração.

Ocorre que o referido princípio, assim como outros decorrentes da constitucionalização do Direito, tem passado ao largo da atenção dos operadores e intérpretes jurídicos, seja no campo da Administração, seja no âmbito do Poder Judiciário, na medida em que se confunde a teoria da culpabilidade com a da responsabilidade civil objetiva, utilizando-se desta última como premissa justificadora para a imposição de penalidades, as quais deveriam estar atreladas, entre outros pressupostos, à verificação do elemento subjetivo da infração, qual seja, a culpabilidade.

Nessa linha, inclusive, já bem decidiu a Corte Superior ao tratar do assunto, afirmando que “a aplicação de penalidades administrativas não obedece à lógica da responsabilidade objetiva da esfera civil (responsabilidade por danos causados), mas deve obedecer à sistemática da teoria da culpabilidade, ou seja, a conduta deve ter sido cometida pelo alegado transgressor, com demonstração de seu elemento subjetivo, e com demonstração do nexo causal entre a conduta e o dano”[2].

Não obstante, o que a praxe jurídica nos tribunais Brasil afora vem demonstrando é a pacífica, porém equivocada, sedimentação do entendimento segundo o qual, acaso objetivamente responsável na esfera civil, automaticamente estará apto a ser penalizado pelo Estado na via administrativa; e, mais que isso: em se tratando de agentes de uma mesma cadeia econômica, como no caso das relações de consumo, a regra da responsabilidade solidária, por si só, justificaria a aplicação de sanções administrativas contra qualquer um deles ou sobre todos.

Foi o que se verificou em recente decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) nos autos da Apelação Cível 0285215-93.2016.8.19.0001. Na hipótese, entendeu-se que, embora a apelante apenas preste serviços de marketing online a outras empresas mediante site de compras coletivas, tal circunstância não seria razão suficiente para eximir a sua “responsabilidade” em relação ao fato de que uma determinada consumidora, ao adquirir um produto de uma empresa anunciante, viu-se lesada por não ter sido cumprido o prazo de 60 (sessenta) dias para entrega, devendo, por isso mesmo, ser mantida a pena de multa aplicada pelo PROCON do Rio de Janeiro.

Ora, não há dúvida de que, no campo da reparação civil do dano, como não poderia deixar de ser, deve-se seguir a lógica da responsabilidade objetiva e solidária, tal como depreendida da leitura integrada do parágrafo único do art. 927 do Código Civil com os arts. 12 e 18 do Código de Defesa do Consumidor, estes últimos referentes ao dever reparatório decorrente de vícios ou fatos do produto ou do serviço. No entanto, nos termos da jurisprudência do STJ, o mesmo raciocínio não é juridicamente correto quando se trata dos pressupostos de aplicabilidade de uma pena pelo Estado contra o particular.

Aliás, conforme preconiza Fábio Medina Osório, é crucial não confundir medidas ressarcitórias ou de reparação com medidas punitivas ou sancionadoras. Nesse sentido, afirma que “as medidas de cunho ressarcitório não se integram no conceito de sanção administrativa, pois não assumem efeito aflitivo ou disciplinar, não ambicionam a repressão, mas sim a reparação do dano, assumindo conteúdo restituitório, reparatório, submetendo-se, nesse passo, a princípios próprios, específicos, mais próximos, naturalmente, do Direito Civil”[3].

E nesse diapasão, prossegue o ilustre doutrinador, afirmando que a culpabilidade é princípio básico em matéria de responsabilidade do agente na esfera administrativa sancionatória, constituindo verdadeiro pressuposto de responsabilidade não só das pessoas físicas, mas também das pessoas jurídicas, respeitados os contornos diferenciados que a estas são conferidos[4].

Assim, o Direito Administrativo Sancionador deve ser posto em um patamar mais garantista e que corresponda aos anseios intrínsecos à constitucionalização do direito. No entanto, essa compreensão esbarra no fato de que o Direito Administrativo, em especial o Sancionador, ainda não recebeu uma efetiva sistematização, tendo em vista que ainda deixa de considerar os avanços do constitucionalismo e da sua influência no jus puniendi.


[1] MS 21.586/DF, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/05/2019, DJe 16/08/2019

[2] REsp nº 1.251.697/PR; Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, Segunda Turma; DJe 17/04/2012.

[3] Osório, Fabio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 6. Ed. ver. e atual. – São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 113.

[4] Ibid., p. 363.

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