Opinião

A Lei 13.871/2019: até quando punitivismo vai superar Constituição?

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29 de setembro de 2019, 6h16

Recentemente foi sancionada a Lei nº 13.871/19, que alterou a Lei Maria da Penha, criando a obrigação (para aquele que por ação ou omissão, causar lesão, violência física, sexual ou psicológica e dano moral ou patrimonial a mulher) de ressarcimento ao Estado, pelos gastos relativos ao atendimento da vítima através do Sistema Único de Saúde (SUS).

No artigo 9º, §5º da supramencionada lei, ainda foi criada outra sanção ao agressor, qual seja, de ressarcir os gastos estatais a utilização dos dispositivos de segurança destinados ao uso em caso de perigo iminente e disponibilizados para o monitoramento das vítimas de violência doméstica ou familiar amparadas por medidas protetivas.

Em conformidade com a consolidada moda do poder legislativo brasileiro, a novatio legis possui em sua essência uma constitucionalidade evidentemente duvidosa, além de um discurso implícito que necessita ser elucidado para uma melhor compreensão de seus propósitos. Diante da problemática, pretende-se trazer a lume alguns pontos teratológicos da lei, sem pretensão de esgotamento da matéria.

Insta de logo salientar que, nos termos do art. 196 da Constituição Federal, é dever do Estado garantir o direito à saúde para todos os indivíduos, indistintamente. Nesta esteira, como forma de concretizar a disposição, foi instituído o SUS com a finalidade de oferecer o acesso integral, universal e gratuito de serviços relacionados à saúde.

Bem, partindo de tal premissa em concurso com a disposição constitucional acerca da igualdade formal e material, diga-se, sem distinção de qualquer natureza, entre os integrantes da população brasileira (art. 5º, CF), não se pode admitir que seja ônus do particular a obrigação de arcar com as responsabilidades do ente estatal em promover saúde, e, sobretudo, dignidade à pessoa humana, direito este constitucionalmente garantido como fundamento da República Federativa.

Deve-se ter em mente que os efeitos de uma sentença penal condenatória não têm o condão de retirar a condição de sujeito de direitos ou até mesmo de inverter o ônus de uma obrigação estatal. Assim, admitir tal cobrança significa legitimar e efetivar uma discriminação entre indivíduos (legitimada pelo próprio Estado promotor desta igualdade, diga-se) e uma desoneração do Estado por um direito que deveria ser garantido a todos indistintamente.

Cumpre frisar que o objetivo do texto não é enfraquecer ou, de algum modo, deslegitimar as conquistas protetivas normativas adquiridas pela mulher, que foi por muito tempo discriminada e violentada, e, infelizmente, ainda sofre violações atualmente. Contudo, não se pode perder de vista o exercício da reflexão e de críticas, quando necessárias.

Neste momento, então, surgem os questionamentos. A primeiro, uma indagação: qual o motivo jurídico legal do agressor ter a incumbência de ressarcir ao SUS, sistema universal e gratuito? Se todos os indivíduos usam, seja estrangeiro ou brasileiro, por que somente o infrator de uma norma (específica, diga-se) tem a obrigação de pagar por este serviço? Estas pessoas são menos humanos, cidadãos, indivíduos de direitos e obrigações que os demais? Fixe-se a reflexão.

Igualmente questionável é a utilização do termo “agressor”. Nos ditames do – tão atacado – princípio da presunção, ou melhor, estado de inocência, deve-se considerar “agressor” o indivíduo condenado após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, sob pena de incorrer em violação do art. 5º, LVII da Constituição Federal. Estamos, então, diante de uma condenação antecipada, ou então, de uma certeza fática sem, ao menos, instaurar procedimento investigativo? Por que o agressor?

Ainda há que se falar, caso posto em sentido contrário, poderá dar causa a ressarcimentos indevidos. Para ilustrar imaginemos que o Estado logre êxito na cobrança do ressarcimento ora discutido, neste passo, sendo o réu obrigado a pagar antes mesmo da sentença penal em definitivo, e transcorrido certo tempo, ao final do processo penal o dito “agressor” seja declarado inocente. Quanto tempo levaria para obter de volta o valor indevidamente ressarcido, à vista da morosidade estatal? E se aquela quantia executada for essencial ao seu sustento? Quando o montante devido pelo agressor será executado pelo Estado? 

A nosso modesto entendimento, o correto seria que a vítima de um delito doméstico buscasse ressarcimento perante um juízo cível, tendo como réu o possível agressor, após comprovada sua culpa, para, assim, garantir indenização em razão do dano moral, estético, material, lucro cessante, enfim, todo prejuízo que fora ocasionado pelo autor. Para isto, e demais inúmeras outras situações, claro, que configura objeto uma ação de reparação civil.

Outro quesito que merece atenção diz respeito a finalidade do discurso oculto ao promulgar a lei; o ente estatal ao deslocar seu encargo para o particular, sob o manto de um discurso punitivo, pretende demonstrar um comportamento ativo na reprimenda de tal conduta a partir de um recrudescimento no tratamento do “agressor”. Todavia, é necessário analisar as ações estatais além do que se declara.

Neste passo, torna-se possível observar dois propósitos por trás do discurso declarado, quais sejam, a desoneração do Estado em relação a uma garantia fundamental do cidadão, de modo a ampliar a fronteira para outras desonerações em mesmo sentido, bem como a utilização da lei como capital político, vez que cria a imagem de que o ente estatal está empenhado em reprimir aquela conduta que aflige, principalmente, as mulheres, que fazem parte de um grupo considerado minoria.

As inconsistências desta lei não param por aí. O artigo 5º, caput, da Constituição Federal que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.

Pela simples e clara análise ao teor do artigo constitucional citado, é cristalina que constitui obrigação do Estado em promover segurança a todos, sem qualquer distinção de dada natureza. Por este motivo, questiona-se: por que o “agressor” tem o dever de ressarcir o Estado pela utilização dos dispositivos de segurança destinados ao uso em caso de perigo iminente e disponibilizados para o monitoramento das vítimas de violência doméstica ou familiar amparadas por medidas protetivas? Estamos diante de uma terceirização de obrigações constitucionais e, sobretudo, exclusivas e indelegáveis?

As incongruências desta norma são manifestas e, a cada dia que passa, infelizmente, cumprir a Constituição tornou-se matéria de difícil percepção. É pedir muito cumpri-la? Até que ponto a fiel garantia ao quanto estabelecido pela Constituição Federal configurar-se-á falsa ideia de garantismo atrelada à impunidade? Necessitamos, em verdade, prevenir dadas situações sociais e, na hipótese de haver eventual reprimenda, que seja atrelada aos estritos ditames do ordenamento pátrio. Pensemos e reflitamos.

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