Opinião

A interrupção da prescrição pelo acórdão da sentença de condenação anterior

Autor

  • Ludgero Liberato

    é mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); advogado; sócio do Cheim Jorge & Abelha Rodrigues Advogados Associados.

27 de setembro de 2019, 6h27

O informativo nº 948 do STF noticiou o julgamento, perante a 1ª turma daquele tribunal, do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 1.210.551/GO, em que se discute se o acórdão que, em sede de apelação, confirma sentença condenatória, tem o condão, ou não, de interromper a prescrição penal. O Ministério Público, recorrente, busca conferir interpretação extensiva ao art. 117, IV, do CP, segundo o qual o curso da prescrição interrompe-se pela “sentença ou acórdão condenatórios recorríveis”.

O julgamento foi iniciado na sessão do dia 20/08/2019, ocasião em que o relator, Min. Marco Aurélio, votou pelo desprovimento do recurso, por não vislumbrar ofensa direta à Constituição. Segundo a notícia, o Ministro Alexandre de Moraes “deu provimento ao agravo a fim de prover o recurso extraordinário e afastar o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva. O julgamento foi suspenso em razão de pedido de vista do Min. Roberto Barroso.

A questão não é nova e suas discussões remontam à edição da Lei nº 11.596/2007, que incluiu a expressão “acórdãos condenatórios recorríveis”[1][2].

Apesar de haver sido noticiado o julgado, fato é que, desde 2017, a 1ª turma do STF, por maioria, tem dado provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público.[3]. Já a 2ª turma do STF[4] e o STJ[5] não cederam à tese.

Um dos argumentos utilizados para sustentar o entendimento quanto à interrupção da prescrição é o de que o acórdão confirmatório, em última análise, nada mais seria do que a própria condenação, uma vez que acaba por substituir a sentença, ocorrendo o denominado efeito substitutivo dos recursos[6].

É preciso, portanto, averiguar a procedência, ou não, do fundamento invocado, isto é, saber se o efeito substitutivo dos recursos tem, ou não, o condão de autorizar nova interrupção do prazo prescricional.

O CPP não trouxe qualquer dispositivo referente ao efeito substitutivo dos recursos, de modo que sua aplicação na seara penal se dá por força dos arts. 3º do CPP c./c. art. 1.008 do CPC/15[7].

Como ensina a doutrina, quando um recurso é conhecido pelo tribunal, a decisão de mérito nele proferida substitui a decisão recorrida, pouco importando que haja provimento ou desprovimento da impugnação[8]. A isso, atribuiu-se o nome de “efeito substitutivo dos recursos”.

Tal efeito está relacionado à prevalência da decisão que poderá transitar em julgado ou ser objeto de impugnação, seja pela via recursal seja pelo manejo das ações autônomas. Desse modo, nada há que autorize extrair, de seu conteúdo, qualquer produção de efeitos sobre o direito material, em especial no que toca à interrupção da prescrição[9].

Nesse passo, cabe relembrar que, ao contrário do mundo natural, de onde a observação científica pode estabelecer relações de causa e efeito, no mundo jurídico os efeitos são atribuídos pelo ordenamento jurídico aos atos[10][11]. É certo que o direito material, por vezes, toma atos e fatos processuais como hipótese normativa para a criação de direitos, proibições e para alterações de situações jurídicas[12], mas a opção por tomar atos ou fatos processuais como hipótese normativa é uma escolha do legislador.

E assim, ao regular a interrupção da prescrição no direito penal, tomou o legislador, como hipóteses, diversos atos processuais que, em seu entender, seriam relevantes a ponto de retirar do acusado a possibilidade de ter sua pena extinta. Sua preocupação em assentar temporalmente tais atos foi tamanha a ponto de o próprio texto legal utilizar a expressão “acordão confirmatório” para deixar evidente sua intenção em realizar nova interrupção quando houvesse confirmação da decisão de pronúncia (art. 117, III), expressão esta que não foi utilizada no art. 117, IV.

Em verdade, se a prescrição pudesse ser interrompida novamente como simples decorrência do efeito substitutivo dos recursos, o art. 117, III, do CP, seria completamente desnecessário, pois a própria previsão de interrupção pela decisão de pronúncia já seria suficiente, bastando sua confirmação, em sede recursal, para que houvesse nova interrupção. Como o efeito substituto dos recursos não produz essa consequência sobre o direito material, foi necessária a inclusão da expressão “decisão confirmatória” da pronúncia.

A teratologia da tese resta evidenciada quando se observam as consequências que dela podem advir, caso seja aceita. Quer-se, a qualquer preço, diminuir-se os casos de prescrição na seara penal, mas se poderá, em verdade, ampliá-los.

Como já dito, nos casos em que há juízo de admissibilidade positivo, isto é, nos casos em que há o conhecimento do recurso, a decisão proferida em sede recursal substitui a decisão recorrida, passando a prevalecer sobre aquela.

Assim, se o acórdão confirmatório puder gerar interrupção da prescrição, em razão de haver substituído a sentença, forçoso será reconhecer a interrupção da prescrição feita por esta (pela sentença) deixará de existir no mundo jurídico juntamente com a decisão que a gerou e que foi substituída, devendo-se aferir o prazo prescricional entre o recebimento da denúncia e o acórdão confirmatório, ignorando a interrupção feita pela sentença, o que, inevitavelmente, ampliaria o lapso prescricional sem interrupção. E assim o seria, pois, a sentença deixaria de existir por completo, naquilo em que foi substituída, seja pelo provimento ou pelo desprovimento do recurso.

Quando se observa essa consequência, vê-se que os que sustentam a tese da interrupção da prescrição não desejam que o acórdão confirmatório da condenação realize efeito “substitutivo”, mas, sim, “efeito aditivo”. Isto é, desejam que a interrupção feita pela sentença continue a existir e seja acrescida de uma nova interrupção, feita pelo acórdão que a confirma.

Em suma, o denominado efeito substitutivo dos recursos não é capaz de produzir qualquer outro efeito senão o de substituir a decisão impugnada, quando esta é apreciada pelo órgão ad quem, unicamente para os fins de recorribilidade e aptidão a produzir coisa julgada, sendo necessária a existência de lei expressa para se atribuir a esse ato processual (acórdão confirmatório) o efeito de interromper a prescrição penal, sob pena de intolerável analogia in malam partem.


[1] Explica Cezar Roberto Bittencourt: “Instalaram-se de plano, na doutrina, duas interpretações sobre o significado da locução “acórdão condenatório”. Para uma corrente, à qual nos filiamos, acórdão condenatório é aquele que reforma uma decisão absolutória anterior, condenando efetivamente o acusado; para a outra, que consideramos uma posição reacionária, é condenatório tanto aquele acórdão que reforma decisão absolutória anterior como o que confirma condenação precedente” (BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito penal, Vol. 1, 24ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação,2018, Ebook, Item 5.2.3.2.). Sustentado idêntica posição, pela impossibilidade de interrupção pelo acordão que confirma a sentença condenatória: NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 17ª ed. rev. Atual e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017, E-book, Capítulo VIII, item 67.

[2] Sustentando a interrupção da prescrição pelo acordão que confirma condenação anterior, V., dentre outros: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli; CALLEGARI, André. Manual de Direito Penal. 4ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2018, E-book, Item 4.1.10.2, IV; BARBAGALO, Fernando Brandini. A interrupção da prescrição penal pela publicação do acórdão condenatório recorrível in Boletim do IBCCrim n. 185, v. 15, 2008. p. 16.

[3] V. HC 138.088, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão: Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgado em 19/09/2017, DJe de 24/11/2017. O entendimento tem sido seguido na turma: ED no RE nº 1210552, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. em 28/06/2019, DJe de 05/08/2019; AgRg no ARE 1.130.096, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Relator para o acórdão, Min. Roberto Barroso, j. em 14/9/2018.

[4] No âmbito da 2ª turma do STF, tais recursos são inadmitidos, por ausência de violação direta ao texto constitucional, em grande parte com menções, em obter dictum, sobre a não aceitação da tese ministerial. V.: STF, AgRg no RE nº 1.202/790, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 28/06/2019, DJe de 05/08/2019. No mesmo sentido: AgRg no RE nº 1.193.719, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. em 23/08/2019, DJE 11/09/2019.

[5] V. exemplificativamente, os recentes julgados em ambas as turmas com competência criminal: AgRg-REsp 1.831.638; Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª turma, j. em 10/09/2019, DJE de 16/09/2019; EDcl-AgRg-REsp 1.807.628, Rel. Minª Laurita Vaz, 6ª turma, j. em 03/09/2019, DJE 16/09/2019.

[6] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito penal, Vol. 1, 24ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação,2018, Ebook, Item 5.2.3.2.

[7] V. art. 512 do CPC/73 e do art. 825 do CPC/1939.

[8] Nesse sentido é o magistério de Flávio Cheim Jorge: “uma vez julgado no mérito o recurso, a decisão proferida pelo Tribunal, seja no sentido da decisão recorrida, seja em sentido contrário, passará a prevalecer a anterior, naquilo em que tiver sido impugnada. O imprescindível, no entanto, é que o recurso tenha sido admitido. Somente há que se falar na existência de substituição quando o órgão julgador ultrapassa a barreira da admissibilidade. Se o Tribunal não admite o recurso pela ausência de um de seus requisitos, necessariamente também não analisou o mérito da impugnação e a irresignação do recorrente. Em tal hipótese, a decisão recorrida permanecerá intocável, tal qual inexistisse recurso contra ela interposto. Esse é, sem qualquer discussão, o principal efeito da discussão” (JORGE, Flávio Cheim. Teoria Geral dos Recursos Cíveis [livro eletrônico]. 3ª ed. Baseada na 8ª ed. Impressa. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2017, item 6.2.3). A mesma característica foi destacada, no processo penal, por Ada Pellegrini Grinover: “Sendo o recurso julgado em seu mérito, a decisão recorrida jamais passa em julgado. Evidente a circunstância quando o recurso é provido; mas mesmo quando o órgão ad quem nega provimento à impugnação, “confirmando” a decisão recorrida, o que pode passar em julgado é sempre e só o pronunciamento do órgão ad quem, que substitui o da jurisdição inferior, no que foi objetivo do conhecimento do tribunal” (GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. Recursos no processo penal. 6ª edição, rev. Atual. E ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 60). V. Em igual sentido: NERY JR., Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6ª ed. Atualizada, ampliada e reformulada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 488.

[9] O mencionado efeito é destacado, em especial, na problemática da definição do órgão competente para o ajuizamento da ação rescisória, aspecto reiterado por grande parte da doutrina. V. Nesse sentido: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. V. 15ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 399; EDUARDO TALAMINI E FELIPE WLADECK são incisivos: “8. Relevância da norma: saber se houve substituição da decisão recorrida pelo julgamento recursal é relevante, por exemplo, para a definição do pronunciamento a ser atacado pela via da ação rescisória e a consequente determinação do foro prevalente para essa demanda (art. 968, § 5º; CF, arts. 103, I, j, art. 105, I, e, e art. 108, I, b, p. ex.). Há quem pretenda ver nessa questão relevância também para a definição do momento do trânsito em julgado. Mas isso não é correto, como se procura demonstrar a seguir” (BUENO, Cassio Scarpinella. Comentários ao código de processo civil – volume 4 – arts. 926 a 1.072)– São Paulo: Saraiva, 2017).

[10] Foi o que destacou em BARBOSA MOREIRA em célebre passagem: “(…) É natural que se estabeleça relação íntima entre o conteúdo e os efeitos de um ato jurídico. O ordenamento atribui a cada ato jurídico, em princípio, efeitos correspondentes ao respectivo conteúdo, sem embargo da possibilidade de que, eventualmente, se atribuam efeitos iguais a atos de diferentes conteúdos, ou vice-versa. Para admitir a correspondência não é preciso ver entre o ato jurídico e os efeitos que ele produz, ou pode produzir, nexo de causalidade semelhante ao que existe entre um fato natural e suas consequências. Substitua-se o conceito de causalidade, neste âmbito, pelo de imputação, e continuará verdadeiro o princípio de que depende do conteúdo do ato o serem tais ou quais os efeitos deste. De modo algum significa isso que o efeito produzido pelo ato se identifique ou se confunda com o respectivo conteúdo, ou faça parte desse conteúdo. O efeito é algo que está necessariamente, por definição, fora daquilo que o produz, quer se trate de fato natural, quer de ato jurídico. 2. Padece de contradição a ideia de um efeito "incluso" no ato jurídico. O que nele está incluso são os elementos de seu conteúdo. Pode-se legitimamente indagar a que elemento do conteúdo de um ato corresponde o efeito x, que a esse ato se atribui; ou, inversamente, qual dos seus vários efeitos corresponde ao elemento y, que lhe integra o conteúdo. Não se pode, todavia, fazer tábua rasa da distinção entre as duas realidades, para localizar no conteúdo do ato os efeitos, ou qualquer dos efeitos, a este atribuídos”. (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Conteúdo e efeitos da sentença: variações sobre o tema in Revista de Processo, vol. 40/1985, p. p. 7 – 12, Out – Dez / 1985).

[11] Até a própria aptidão para fazer coisa julgada decorre de opção legislativa, que estabelece os casos em que esta se dará, a forma com que se dará e os que serão por ela atingidos, bastando observar o regramento constante do art. 502 do CPC/15 e do art. 103 do Código de Defesa do Consumidor.

[12] É o caso, por exemplo, o rol do art. 202 do Código Civil, no qual foram tomados, como marcos interruptivos da prescrição, atos processuais e fatos naturais. Outro exemplo é o art. 115 do Código Penal, no qual o legislador, ao definir as hipóteses em que a prescrição deve ter seus prazos reduzidos pela metade, optou por tomar como critério legal a publicação da sentença condenatória e não qualquer ato anterior ou posterior. Poderia ter atribuído tais efeitos ao despacho que determina a apresentação de alegações finais ou ao acórdão que confirmasse a sentença, mas não o fez. Escolheu um ato processual específico, qual seja, a sentença.

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    é mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); advogado; sócio do Cheim Jorge & Abelha Rodrigues Advogados Associados.

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