Opinião

Revisão criminal informal para prejuízo do sentenciado nos autos de execução penal

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26 de setembro de 2019, 6h58

Certa vez em um desses colóquios sobre direito, justiça e a vida como um todo, ouvimos do Professor Nilo Batista uma comparação sobre drogas e bruxas na idade média, num discurso de equivalência que todo “mal injustificado” na fase atual seria diagnosticado por uma culpa oriunda da droga, como ocorria com as bruxarias na inquisição. A ideia marcante é a perseguição implacável, sem que haja uma racionalidade jurídica, uma visão crítica da politica capitalista de mercado e da consequente fragilidade do slogan das “guerras às drogas”.

Estamos vendo esse efeito: muitas perdas e nenhuma construção humanizada! Violência pura, sendo entregue aos agentes de segurança, uma única solução, o enfrentamento a qualquer custo. Basta ver que o injusto do tráfico tem gerado maior encarceramento e mortes como observamos nas favelas de todo Brasil e nos locais periféricos, sendo vitimados em maior número os/as pobres, pretos(as) e as crianças.

O labirinto da violência não permite que encontremos uma saída, nem a emergencial, pois mais que haja letreiros em vermelho, vamos bater nos pilares da insensatez.

Lembramos a clássica peça As Bruxas de Salem, escrita por Arthur Miller em 1953, num período do macarthismo do governo dos EUA. O absurdo desses julgamentos começou com escrava negra realizado por um juiz pregador colonial que acreditava em bruxaria, sendo mortas várias mulheres que teriam recebido em cada corpo essa tal bruxa… Consta que após esses julgamentos, o juiz teria confessado que suas sentenças haviam sido um grande…

Pois bem. Tenho receio que a reincidência também seja visto como uma bruxa[1]. Pior, que seu efeito seja devastador, maléfico literalmente ou que atinja como um fogueira a garantia fundamental da segurança jurídica no instituto da coisa julgada[2].

Vamos abrir o palco de um julgamento que está se desenrolando, sem saber qual será o seu desfecho… Um réquiem da coisa julgada? Vamos ao roteiro.

Está em julgamento no Superior Tribunal de Justiça os Embargos de Divergência em Recurso Especial n. 1.738.968/MG que, em suma, trata da possibilidade do Juízo de Execução Penal modificar ou não a situação do sentenciado de primário para reincidente, nos casos em que a sentença de origem o considerou primário, com decisão transitada em julgado.

Veja que nosso thema é a insegurança jurídica, qual seja, a possibilidade ou não de um juiz na execução penal alterar aquilo que já foi reconhecido na sentença originaria de um processo de conhecimento – a primariedade protegida por um decisum com trânsito em julgado.

Importante: não se trata de fato novo ou nova guia (condenação por segundo fato) que ingressou nos autos de execução e que resultou em um incidente de execução penal. Trata-se, tão somente, da modificação da situação reconhecida pelo Juízo criminal, por fato pretérito. Verdadeira revisão criminal informal, por vezes de ofício, para prejuízo do sentenciado.

Existem duas questões distintas apresentadas aos Tribunais Superiores que tratam da situação do sentenciado como primário ou reincidente no processo de execução.

A peça tem dois atos. Vejamos o roteiro do 1º ato.

Primeira situação. O sentenciado possui condenação em mais de um processo. Em um processo foi considerado primário e, no outro, reincidente.

Nesse caso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica na linha de que o Juízo da execução pode modificar a situação do condenado para reincidente em todas as guias. Desfecho já crítico…

A Defensoria Pública combate a tese do Superior Tribunal de Justiça, pois entende que a jurisprudência viola a coisa julgada, o princípio da non reformatio in pejus e a decisão proferida em Recurso Extraordinário n. 453000/RS, Rel. Min. Marco Aurélio, cujo tema encontrava-se submetido à repercussão geral no RE 591563/RS, do Supremo Tribunal Federal, em que ficou assente que a reincidência não tem efeito para o passado – aliás, é por não ter efeito para o passado que a reincidência foi considerada constitucional pelo STF.

Afinal, utilizar a situação de reincidente da última guia para as guias anteriores, é modificar a coisa julgada e dar efeito retroativo. Inclusive, o art. 1º da Lei de Execução Penal, dispõe que a execução penal tem por objetivo efetivar, justamente, as disposições da sentença e não inovar. Há, portanto, excesso de execução.

Argumento pragmático. Interessante que a própria calculadora do Sistema Eletrônico de Execução Unificada (SEEU) e a calculadora do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), abrem campos próprios para lançamento da situação do condenado guia por guia de recolhimento.

Assim, na primeira guia, pode ser lançado como primário, com cálculo do requisito objetivo do primário. Na segunda guia, pode ser lançado como reincidente, com cálculo do requisito objetivo do reincidente. Se a questão somente levasse em conta a última situação, os campos seriam desnecessários.

A Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Relatora no HC 68.373/GO, da 6ª Turma do STJ, entendeu que “A soberania da coisa julgada é apanágio do Estado Democrático de Direito. Somente poderá ela ser afastada em casos extremos e quando, estritamente, autorizado pela lei”. Não há lei que permita tal modificação. Vejamos que o conceito legal de reincidência é a prática de um crime após o seu autor já ter sido condenado definitivamente pelo outro[5][6], importante para balizar o problema posto.

Entretanto, não é o foco central a ser decidido no EREsp em comento. Os Embargos de Divergência tratam da segunda situação – 2º ato, que é ainda mais escandalosa – na violação de direitos fundamentais. Um alto grau de inconstitucionalidade, pois malogra uma série de direitos fundamentais, além de permitir maior encarceramento no Inferno de Dante das cadeias brasileiras.

Segunda situação. Vejamos. Em um, ou em todos os processos, o réu foi considerado primário. Não houve recurso do Ministério Público para modificar a situação do réu. Todas as decisões transitaram em julgado. Então, na execução penal, às vezes depois de anos, o Ministério Público, ou o próprio juiz, verifica que o juiz a quo errou em uma das condenações e que deveria ter considerado o réu reincidente e não primário.

A Quinta Turma do STJ entende que não é possível à violação da coisa julgada. Já a Sexta Turma, não em todos os julgados, entende que é possível a modificação da situação do condenado para reincidente pelo Juízo da Execução. Por isso os Embargos de Divergência.

O Ministério Público Federal argumenta em sua peça que “não há ofensa aos limites da coisa julgada, tampouco ao princípio do non reformatio in pejus, uma vez que os benefícios (indevidamente) assegurados no título permanecerão inalterados”.

A premissa não é verdadeira.

Trata-se de revisão criminal sem a íntegra do processo de origem para verificar os documentos existentes à época, como a Certidão de Antecedentes Criminais e a Folha de Antecedentes Criminais utilizadas na ocasião e, assim, sem contraditório e ampla defesa.

Além da patente violação da coisa julgada, a reforma causa, sim, prejuízo. De início, não temos benefícios assegurados, mas direitos, que são reduzidos e, por vezes, suprimidos.

No caso do crime hediondo, por exemplo, se o sentenciado foi considerado primário, sua progressão seria de 2/5 e seu livramento de 2/3. Com a modificação de sua condição de primário para reincidente específico, sua progressão seria de 3/5 e seu livramento inexistente, ou seja, um direito diminuído e outro suprimido.

Com isso, em um simples exemplo demonstramos que a modificação da situação de primário para reincidente não só aumenta a fração de tempo para persecução de direito, mas pode excluir o direito por inteiro. Isso não é prejuízo?

Além disso, na segunda situação, não existe nenhum fato novo, nenhuma nova guia que o considera reincidente, assim, apenas se trabalha com fato pretérito. É impossível a formação de incidente de execução penal com fato pretérito em prejuízo do sentenciado.

Isso implica descumprimento da medida liminar em medida cautelar na arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 347, que determinou aos juízes e tribunais que considerem, fundamentadamente, o quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro durante o processo de execução penal.

Não há situação mais gravosa do que autorizar o juiz da execução penal a modificar coisa julgada, com efeitos no quantum de cumprimento de pena para fins de progressão, livramento condicional e saída temporária diante do quadro dramático do sistema penitenciário brasileiro.

Ora, já lutamos por indulto no STF recentemente, por direito a um regime adequado aos sentenciados, por pena proporcional, pela presunção de inocência após o trânsito em julgado, por não equivalência de maus antecedentes com a reincidência, por uma aplicação constitucional do artigo 59 do CP; agora, temos que evidenciar que COISA JULGADA garante uma imutabilidade penal em prol do apenado primário?

É preciso reafirmar que não se transmuda – como uma alquimia – a primariedade em reincidência por meio de um processo de execução? A intangibilidade da coisa julgada é mais que um argumento para impedir agravação da execução penal do individuo em razão de outro fato que à época não foi reconhecido como reincidente, é garantia fundante de um Estado Democrático de Direito, com proteção à sua dignidade humana na condição de apenado.

Se está fervilhando o debate no direito penal e na própria criminologia do efeito punitivo, por si só, da constitucionalidade do instituto da reincidente e sua inadequação ao modelo da Carta de 1988, imagine a criação de uma técnica decisória que possibilite ao juízo da execução penal a ampliação desse conceito, gerando um efeito modificativo de perda na contabilidade dos direitos do apenado, quando a sentença originária reconhece sua primariedade?

Nosso atuar nesse artigo é mais que um alerta ao retrocesso jurisprudencial ou mesmo dogmático. Visa, tem como escopo mostrar que essa ampliação resultará em mais encarceramento, numa insegurança jurídica, em sérias violações ao devido processo legal, potencializa matéria prima para formação de grupos organizados e descrédito do sistema de justiça. Falência completa.

Ante o reconhecimento de inúmeras faltas graves insanas, modificações de marcos para progressão, conversões das penas restritivas de direito em privativas de liberdade, prescrição de três anos para apuração de simples falta grave e modificação de coisa julgada para prejuízo do sentenciado, podemos chegar a conclusão de que a execução de pena no Brasil não tem relação nenhuma com os requisitos objetivos fixados em lei e tende a chegar ao cumprimento integral. Não há sistema prisional que sobreviva a isso.

Esperamos que até a publicação desse artigo, haja um final que faça lembrar que no julgamento haja uma espécie de confissão do sentenciante que havia tudo sido um grande ERRO. Um grande erro…


[1] Defensora Pública do Estado de Minas Gerais.

[2] Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro.

[3] CASARA, RUBENS , in Processo Penal do Espetáculo e outros ensaios, 2º edição, Florianópolis, Tirant lo Blanch, 2018, alerta que na atual perspectiva, o reincidente ainda é o “protótipo do “homem mau”; o reincidente seria aquela , que por ser mal/perigoso, praticou um crime após já ter sido condenado por outro delito.”, p. 144.

[4] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

[5] Art. 63 – Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

[6] CASARA, RUBENS , in Processo Penal do Espetáculo e outros ensaios, 2º edição, Florianópolis, Tirant lo Blanch, 2018, afirma que “o conceito de reincidência é autoritário, uma espécie de estigma, sem razão de ser e mostra-se em oposição às diretrizes constitucionais (liberdade, dignidade humana, presunção de inocência, etc). Além do mais, diante das desigualdades sociais e do preconceito contra os egressos do sistema penitenciário verificados no Brasil, facilmente percebe-se que a agravante não produz qualquer desestímulo ao desvio social etiquetado de crime.”, p. 145.

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