Opinião

A convenção da ONU e a importância da resolução amigável de conflitos

Autor

  • Andrea Marighetto

    é advogado doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito summa cum laude pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

25 de setembro de 2019, 10h03

Spacca
A Convenção da ONU sobre os Acordos Internacionais de Transação resultantes da Mediação[1], ou mais simplesmente a Convenção de Singapura[2], na sua versão adotada em 2018 pela Assembleia Geral das Nações Unidas e assinada em Singapura em 7 de agosto de 2019, evidencia como a mediação, enquanto método alternativo de resolução das controvérsias (ADR – Alternative Dispute Resolution), foi finalmente reconhecida globalmente também pela comunidade jurídica internacional.

A Convenção visa criar, para a mediação comercial internacional, as mesmas condições favoráveis que obteve a arbitragem (provavelmente o mais famoso meio de resolução alternativa de controvérsias) após da adoção da Convenção sobre o Reconhecimento e Execução das Sentencias Arbitrais Estrangeiras de Nova York de 1958[3]. Por isso, a Convenção de Singapura modifica todo o conjunto normativo da ONU que trata da mediação. Não a caso, conjuntamente à adoção da Convenção de Singapore, a UNCITRAL modificou também a lei modelo sobre a Conciliação Comercial Internacional de 2002[4], identificando de jure a conciliação na própria mediação[5].

Em um atual cenário de “crise” comercial global, a adoção desta Convenção que privilegia a via amigável, mediática, na resolução dos litígios é certamente um sinal positivo e uma resposta forte a toda a comunidade jurídica internacional, e não unicamente a que trata do comércio internacional. Há, portanto, que se frisar que o escopo da Convenção, além de promover a mediação comercial internacional como meio alternativo eficaz e eficiente de resolução das controvérsias internacionais, fomenta o desenvolvimento da harmonia nas relações econômicas internacionais.

A mediação permite encontrar soluções a conflitos e contenciosos políticos, econômicos e jurídicos através do mecanismo do confronto direto entre as partes envolvidas. Por isso, a função que é desenvolvida pelo instituto é principalmente a de “conciliar” e “reparar”, favorecendo o diálogo e o recíproco respeito entre as partes [pessoas] à presença de um terceiro neutro [mediador] que permite e estimula este diálogo. O resultado é a realização de uma justiça mais substancial, que se fundamenta não tanto numa ordem imposta por uma autoridade externa à relação, mas que é gerada “internamente” pelas próprias partes envolvidas no conflito, mesmo que com a ajuda do mediador.

O percurso da mediação se fundamenta na autonomia da vontade das partes em aderir a propostas negociais avançadas por elas mesmas, através da ajuda do mediador. Em síntese, o mediador (i) conversa separadamente com os litigantes para verificar e acertar os reais entendimentos, interesses e disponibilidades à composição da lite; (ii) verifica, dirige e facilita o eventual confronto consensual e participativo; (iii) ajuda a identificar – dentro os limites e no respeito das eventuais propostas avançadas pelas partes – possíveis soluções ao conflito; (iv) ajuda na redação do acordo de transação.

A ratio da mediação é, portanto, a de “transformar” o conflito em um momento de reflexão, reconhecimento das respectivas responsabilidades através do confronto direto entre as partes, permitindo o desenvolvimento da relação sobretudo “substancial” porque orientada a recompor, respeitar e tutelar o equilíbrio relacional entre os litigantes. Na mediação, o conceito de responsabilidade se concretiza na atitude de reconhecer os recíprocos interesses, e respeita-os promovendo um procedimento de transformação das “próprias razões” até chegar à aceitação das da outra parte[6]. Unicamente no recíproco respeito é possível a longa convivência. Exatamente no intento de preservar esta relação se concretizam a moralidade e a misericórdia da mediação!

A harmonia na preservação das relações – ainda que sejam unicamente comerciais – nasce pela própria característica educacional da mediação, que visa a procurar a resolução “amigável” do conflito, no respeito das respectivas pessoalidades e razões envolvidas, utilizando técnicas que privilegiam e instigam à reflexão sobre os atos realizados e as causas que estão à base desses.

O intento da convenção, portanto, segundo seu preâmbulo, é o de criar uma norma que permita aos Estados que possuem sistemas jurídicos, sociais e econômicos diferentes “confiar” em um mecanismo uniforme capaz de promover e garantir o desenvolvimento de pacificas e prósperas relações econômicas internacionais. A Convenção de Singapura se propõe de estabelecer regras que permitam o reconhecimento dos acordos de transação, realizados através da mediação, entre partes e/ou parceiros comerciais sediados em países diferentes.

O art. 1o estabelece que a Convenção se aplica a acordos escritos ou registrados resultados de um procedimento de mediação para resolver uma controvérsia comercial entre partes sediadas em países diversos. A Convenção, portanto, não se aplica a acordos que se referem à resolução de controvérsias com Consumidores e que – de qualquer forma – tenham a objeto (i) a realização de escopos pessoais, familiares e domésticos; (ii) que envolvam Direito de Família, Sucessões ou Trabalho. Ainda, a Convenção não se aplica aos acordos aprovados ou concluídos em/por Tribunais ou que executam uma sentença judiciaria ou arbitral.

A Convenção define o conceito de mediação como “procedimento [independentemente do nome ou expressão utilizada] por meio do qual as partes tentam buscar uma composição amigável da controvérsia com a assistência de uma ou mais pessoas (“o mediador”) privo da autoridade de impor uma solução às partes em lite”.

O art. 3º define os princípios gerais aplicáveis ao acordo de transação fruto da mediação: (i) cada pais é regulado pelas normas de processo aplicáveis e em linha com o estabelecido pela própria Convenção; (ii) caso surja uma controvérsia sobre um assunto já resolvido pelo acordo de transação, o Estado signatário deverá permitir à parte poder invocar o acordo de transação desde que isso não conflite com o seu regimento interno.

Os requisitos para que se possa obter o reconhecimento [doméstico] dos acordos de transação são (veja-se o art. 4º): (i) o acordo de transação seja firmado entre as partes; (ii) a prova do acordo de transação deve ser o resultado de um procedimento de mediação (portanto, o acordo deve ter a assinatura do mediador; o documento assinado pelo mediador deve indicar que a mediação aconteceu realmente; deve ser indicada a atestação da instituição que geriu a mediação, etc.). A Convenção permite que o acordo possa ser reconhecido também quando se concretize em uma comunicação eletrônica, sempre que (i) seja possível identificar as partes ou o mediador, assim como a vontade das partes ou do mediador em relação à difusão das informações contidas na comunicação eletrônica; e (ii) este método identificativo seja confiável e demonstre ter de facto cumprido os requisitos descritos pela letra (i).

As Autoridades domésticas podem também exigir comprovações para realizar o reconhecimento do acordo, e isso evidentemente para verificar que o que foi pedido pela Convenção tenha sido efetivamente respeitado. As autoridades domésticas competentes são legitimadas a recusar a emissão de um ato de reconhecimento quando (veja-se o art. 5º): (i) uma das partes for incapaz; (ii) o acordo de transação for nulo, invalido ou ineficaz ou for não vinculante ou não definitivo ou for sucessivamente modificado; (iii) as obrigações contidas nos acordos de transação não tenham sidas executadas ou não forem claras ou compreensíveis; (iv) o reconhecimento em si for contrário às mesmas previsões do acordo de transação; (v) foi cometida grave e determinante violação por parte do mediador em relação às normas aplicáveis ao mediador ou à própria mediação; (vi) o mediador não tenha revelado às partes circunstancias capazes de levantar dúvidas razoáveis sobre imparcialidade e independência e tal omissão tenha determinado um impacto concreto no processo decisório do próprio acordo; (vii) a concessão do reconhecimento seria contrário à ordem pública; (viii) as leis domesticas aplicáveis não permitam que o objeto da controvérsia possa ser resolvido através de um procedimento de mediação.

Ainda, quando a lite já tiver tramitado ou esteja em tramitação junto a um Tribunal [seja judiciário ou arbitral], o mesmo Tribunal – ou qualquer outra autoridade competente – poderá adiar a própria decisão, caso for oportuno, e poderá solicitar que seja fornecida idônea garantia até a eventual decisão final (veja-se o art. 6o).

A Convenção não limita ou prejudica os demais direitos que as partes poderiam reivindicar para beneficiar de um acordo de transação na forma prevista pela lei (veja-se o art. 7º). Todavia, a Convenção prevê que o Estado signatário possa fruir de duas reservas específicas [que devem ser indicadas no procedimento de adesão à Convenção ou na ratifica]: (i) a não aplicação da Convenção se dará quando uma parte do acordo de transação representa uma agência governamental ou agiu por conta desta; (ii) as próprias partes do acordo de transação concordarem os casos e os limites de aplicação da Convenção (veja-se o art. 8º).

É previsto que a Convenção possa ser assinada também por uma organização regional de integração econômica constituída por Estados soberanos e que tenha competência sobre determinadas matérias disciplinadas pela própria Convenção, em tal caso: (i) a organização de integração econômica regional possuirá os mesmos direitos e as mesmas obrigações de qualquer Estado soberano; (ii) a própria Convenção não prevalecerá sobre qualquer normas contrastantes de outras organizações de integração econômica regional, independentemente da data de adoção ou do tipo de procedimento interno utilizado para a adoção de tais regras (veja-se o art. 12º).

A Convenção entrará em vigor unicamente após ter sido ratificada pelo menos três Estados (sendo 85 os Estados que participaram ao debate final referente à preparação da Convenção). Dependerá, portanto, de quantos a assinarão e a ratificarão. Até hoje, 46 países – entre os quais China e Estados Unidos – já assinaram.

Desejamos à Convenção de Singapura a mesma ou mais sorte que teve a Convenção de Nova York de 1958!!!


[1] É interessante observar que o Working Group da UNCITRAL deliberadamente adotou o termo “mediação” no lugar de “conciliação”, motivando a escolha no sentido que o termo mediação é mais utilizado globalmente (A/CN.9/867, para 120), considerando que os dois termos seriam de fato intercambiáveis (A/CN.9/WG.II/WP.205/Add.1). A UNCITRAL, portanto, prefere utilizar unicamente o termine “mediação” de forma a melhorar a visibilidade da Convenção. e de olha no sentido que, mesmo mesmo mantendo o mesmo significado material eneficiar de um acordo de transacao O depositário desta Convenção é o próprio secretario geral da ONU (Art. 10º).

[2] Veja-se https://uncitral.un.org/sites/uncitral.un.org/files/media-documents/uncitral/en/annex_ii.pdf

[3] Veja-se https://uncitral.un.org/en/texts/arbitration/conventions/foreign_arbitral_awards

[4] Veja-se https://www.uncitral.org/pdf/english/texts/arbitration/ml-conc/03-90953_Ebook.pdf

[5] Sobre a diferencia dos institutos conciliação e mediação, se veja: Sgubini, A.; Prieditis, M.; Marighetto, A. Arbitration, Mediation and Conciliation: differences and similarities from an International and Italian business perspective. Em mediate.com, 2004.

[6] Deutsch, M.; Coleman, P. T.; Marcus, E. The handbook of conflict resolution: Theory and practice. San Francisco, CA, Jossey-Bass, 2006.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito, summa cum laude, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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