Direto do Carf

Carf discute exigências fiscais baseadas em informações bancárias

Autor

  • Fernando Brasil de Oliveira Pinto

    é conselheiro da 1ª Turma Câmara Superior de Recursos Fiscais auditor fiscal da Receita Federal e professor em cursos de especialização na Unisinos Universidade Lasalle e Verbo Jurídico. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Feevale em parceria com a PUC-RS e bacharel em Direito pela Universidade Feevale e em Ciências Contábeis pela USP (Universidade de São Paulo).

25 de setembro de 2019, 8h00

Spacca
Hoje analisaremos o entendimento do Carf envolvendo lançamentos com base em depósitos bancários, em especial na pessoa jurídica, também com ênfase na obtenção dos extratos pelo Fisco.

O dispositivo legal que rege o tema é antigo: o art. 42 da Lei nº 9.430, de 1996[1].

A partir da edição dessa norma, estabeleceu-se uma presunção de omissão de receitas (com suas repercussões tributárias) sempre que o titular da conta bancária, regularmente intimado, não comprove, mediante documentação hábil e idônea, a origem dos recursos creditados em sua conta de depósito ou de investimento.

A inversão legal do ônus da prova é perfeitamente aceita por nosso ordenamento jurídico, estando regulada também no artigo 374, inciso IV, do Código de Processo Civil[2] (CPC/2015), aplicado subsidiariamente ao Decreto nº 70.235/1972 no Processo Administrativo Fiscal.

O CTN define em seus artigos 43, 44 e 45 o fato gerador, a base de cálculo e os contribuintes do IR. De acordo com o artigo 44, a tributação da renda não se dá apenas sobre rendimentos reais, mas, também, sobre os arbitrados ou presumidos por sinais indicativos de sua existência.

A presunção em favor do Fisco transfere ao contribuinte o ônus de elidir a imputação, mediante a comprovação, no caso, da origem dos recursos utilizados para efetuar os depósitos bancários. Trata-se, afinal, de presunção relativa, passível de prova em contrário.

É função do Fisco, entre outras, comprovar o crédito dos valores em contas de depósito ou de investimento e intimar o titular da conta bancária a apresentar os documentos, informações e esclarecimentos, com vistas à verificação da ocorrência de omissão de receitas de que trata o artigo 42 da Lei nº 9.430/96. Contudo, a comprovação da origem dos recursos utilizados nessas operações é obrigação do contribuinte.

Não comprovado-a, o Fisco deve considerar os valores depositados em conta bancária como receita, efetuando o lançamento do imposto e contribuições correspondentes.

A matéria já foi alvo de intensos debates que redundaram na edição de uma série de Súmulas pelo Carf[3].

Afora essas questões já sedimentadas no Carf, há ao menos duas outras discussões que merecem destaque: a primeira dela diz respeito às hipóteses em que o contribuinte consegue demonstrar que sua atividade operacional provém de prestação cumulativa e contínua de serviços de assessoria creditícia, mercadológica, gestão de crédito, seleção e riscos, administração de contas a pagar e a receber, compras de direitos creditórios resultantes de vendas mercantis a prazo ou de prestação de serviços (factoring); o segundo ponto diz respeito ao rito para obtenção dos extratos bancários diretamente pelo Fisco com base na Lei Complementar nº 105/2001 e no Decreto nº 3.724/2001.

No que diz respeito às pessoas jurídicas que alegam desenvolver atividades de factoring, o primeiro precedente sobre o tema é antigo (Acórdão 108-09.632, sessão de 25/06/2008), concluindo-se que havendo nos autos provas robustas de que o contribuinte exercia a atividade de factoring, a base tributável deveria ser apurada mediante a aplicação, sobre o valor dos depósitos/créditos bancários, do “Fator de compra”, indicador publicado diariamente pela ANFAC/Associação Nacional das Sociedades de Fomento Mercantil -Factoring e que serve de referência para os negócios de fomento no país. Segundo esse raciocínio, como o “Fator ANFAC” constituiria um preço de referência para o mercado nas suas relações com as empresas-clientes, sendo comumente utilizado para a precificação da compra de créditos, computando-se, inclusive, todos os itens de custeio de uma sociedade de fomento, a multiplicação desse fato sobre os créditos em conta-corrente de uma empresa de factoring seria essencial para se presumir a receita auferida pelo contribuinte. Acompanhando esse mesmo raciocínio temos os Acórdãos 108-09.796 (sessão de 18/12/2008), 1402-001.885 (sessão de 27/11/2014) e 1301-002.972 (sessão de 11/04/2018).

É importante ainda ressaltar que, mesmo para a corrente que defende a aplicação de tal índice na quantificação das receitas omitidas, não basta a mera argumentação do contribuinte de que exerceria a atividade de factoring, mas sim provas efetivas desse desempenho, tal qual decidido no Acórdão 1402-003.349 (sessão de 15/08/2018) no sentido de que improcede a substituição da base de cálculo, apurada pelos depósitos bancários de origem não comprovada, por suposta margem de lucro considerada a diferença entre o valor de face e o valor de venda do título de crédito à empresa de factoring ou eventual aplicação do “Fator ANFAC”, se ausentes elementos que permitam aferir e comprovar que a efetiva atividade do contribuinte era a de fomento mercantil.

Por outro lado, nos Acórdãos 1401-001.455 e 1401-001.456 (sessão de 10/12/2015) entendeu-se que no caso de receitas decorrentes da atividade de factoring, inexistiria fundamento legal à pretensão do contribuinte em utilizar os índices publicados pela ANFAC para quantificação das receitas omitidas, concluindo-se que ele seria mero parâmetro orientador da atividade de factoring, não podendo servir como índice capaz de revelar o lucro apurado por uma entidade que desenvolva o fomento mercantil.

Por oportuno, frisa-se que, até o momento, a 1ª Turma da CSRF ainda não se debruçou sobre o tema, não podendo se afirmar, conforme analisado alhures, a existência de jurisprudência pacífica sobre esse ponto.

Pois bem, o segundo tema a ser abordado diz respeito à obtenção dos extratos bancários diretamente pelo Fisco.

Sobre essa matéria, a LC nº 105, de 2001, outorgou poderes à Administração Tributária para requisitar a movimentação financeira dos contribuintes diretamente às instituições financeiras.

Sobre a constitucionalidade dessas normas, o Carf já pacificou seu entendimento, por meio da Súmula nº 2, de que não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária.

De todo modo, analisando o tema, o STF, no julgamento do RE 601314, e nas ADIs 2390, 2386, 2397 e 2859 garantiu ao Fisco o acesso a dados bancários dos contribuintes sem necessidade de autorização judicial, nos termos da LC nº 105 e do Decreto nº 3.724, de 2001.

Superada a questão da constitucionalidade das normas, convém ressaltar que o art. 6º da LC nº 105, de 2001, dispõe que o Fisco somente poderá examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

A fim de regulamentar o art. 6º da LC nº 105/2001, o Poder Executivo editou o Decreto nº 3.724, de 2001, relativamente à requisição, acesso e uso, pela RFB, de informações referentes a operações e serviços das instituições financeiras e das entidades a elas equiparadas. Em seu artigo 3º, o citado Decreto listou em quais hipóteses os exames das informações bancárias pelos Auditores Fiscais da RFB serão considerados indispensáveis[4].

Conforme se observa, para que a autoridade fiscal possa requerer informações de determinado contribuinte diretamente às instituições financeiras este deve estar sob procedimento fiscal, o exame deverá ser considerado indispensável, enquadrando-se o caso concreto em uma das 12 hipóteses contidas no art. 3º do Decreto nº 3.724/2001, e o contribuinte deve ter sido previamente intimado a apresentar tais informações e assim não tenha procedido. Além disso, a emissão da RMF deverá se basear em relatório circunstanciado elaborado pela autoridade fiscal, no qual se demonstre tratar-se de situação enquadrada em hipótese de indispensabilidade (observado o princípio da razoabilidade), nos termos dos §§ 5º e 6º do art. 4º do Decreto nº 3.724/2001[5].

Em relação ao citado relatório circunstanciado em que deve se basear a expedição da RMF (incluindo-se a menção à hipótese de sua indispensabilidade), nas Resoluções nº 1302-00.021 (sessão de 03/11/2009) e nº 1301-000.588 (sessão de 15/05/2018), entendeu-se que tal documento é essencial ao pleno exercício de defesa do contribuinte, determinando-se que, antes do julgamento, o feito fosse convertido em diligência a fim de que esse relatório fosse disponibilizado ao contribuinte para que esse pudesse se manifestar a respeito da regularidade na emissão da RMF. Nessa última decisão, destaca-se ainda o entendimento firmado de que esses dispositivos devem ser interpretados de forma restritiva por envolver informações protegidas pelo sigilo de dados que, em se tratando de pessoas físicas, podem inclusive violar a intimidade do sujeito passivo.

Por outro lado, no Acórdão 1102-001.017 (sessão de 12/02/2014), entendeu-se que o referido relatório circunstanciado é um instrumento de cunho informativo destinado a subsidiar a decisão daquele que é responsável pela expedição da RMF, não acarretando a sua ausência dos autos cerceamento do direito de defesa do contribuinte ou
qualquer outra nulidade, uma vez que a expedição da RMF presume a
indispensabilidade das informações requisitadas, nos termos do § 8º do art. 4º do Decreto nº 3.724/2001.

No que diz respeito à continuidade do julgamento dos processos a que se referem as citadas Resoluções, no retorno dos autos ao Carf, constatou-se que a hipótese para emissão da RMF estaria calcada no inciso II do art. 3º do Decreto nº 3.724/2001 (hipóteses previstas no art. 33 da Lei nº 9.430, de 1996). Nos relatórios circunstanciados que embasaram a emissão das respectivas RMF constava, mais precisamente, que no art. 33, inciso I, caracterizaria embaraço à Fiscalização a negativa não justificada de exibição de livros e documentos em que se assente a escrituração das atividades do sujeito passivo, bem como pelo não fornecimento de informações sobre movimentação financeira, e não tendo o contribuinte apresentado os extratos bancários requeridos, restaria configurada a hipótese de indispensabilidade das informações diretamente às instituições financeiras.

Com base nessa informação, no Acórdão 1302-000.489, decidiu-se por cancelar a infração referente à omissão de receitas, firmando-se o entendimento de que a emissão da RMF com base em suposto “embaraço à Fiscalização”, seria necessário o aporte de documentação capaz de indicar condutas que permitissem concluir pela intenção deliberada do contribuinte de obstaculizar o andamento da ação fiscal (embaraço), sendo insuficiente, à evidência, a mera comprovação do não atendimento de intimação para apresentar extratos bancários, pois se tal entendimento prevalecesse, todas as demais hipóteses previstas no art. 3º do Decreto nº. 3.724/2001 seriam dispensáveis, bastando-se intimar o contribuinte a apresentar os documentos bancários e, uma vez não tendo sido apresentada resposta satisfatória, expedir a competente requisição aos estabelecimentos bancários.

Seguindo essa mesma linha de raciocínio, no Acórdão 1301-003.904, entendeu-se que, naquele caso concreto, a emissão da RMF não teria se dado com base em mera negativa do contribuinte na apresentação dos extratos bancários, mas sim diante de atitude recalcitrante do fiscalizado que, intimado e reintimado, teria deixado de apresentar, durante o procedimento fiscal, todos os livros contábeis e fiscais e a documentação solicitada pela autoridade fiscal, incluindo-se os extratos bancários, restando configura a hipótese de “embaraço à Fiscalização”. Nessa decisão, convém ainda destacar a interpretação dada ao § 8º do art. 4º do Decreto nº 3.724/2001: no que diz respeito à presunção de indispensabilidade das informações requisitadas em RMF, essa seria dirigida à instituição financeira requerida, a fim de que não se oportunizasse a terceiros a possibilidade de se questionar a legalidade da requisição efetuada pela autoridade fiscal, não se aplicando tal restrição ao contribuinte sob procedimento fiscal, uma vez que tal interpretação implicaria evidente cerceamento ao exercício de seu direito à ampla defesa. Com efeito, esse entendimento contrapõe-se àquele esposado no referido Acórdão 1102-001.017.

Do Acórdão 3301-005.617 (sessão de 29/01/2019), extrai-se que a necessidade de intimação prévia para apresentação de extratos e demais documentos bancários antes expedição da RMF somente poderia ser arguida pelo contribuinte autuado caso a RMF dissesse respeito aos seus próprios extratos bancários, não se permitindo tal questionamento em caso de a requisição referir-se a documentos de terceiros que realizaram operações com o contribuinte sob fiscalização.

A respeito da necessidade de o relatório circunstanciado compor o processo administrativo fiscal, no Acórdão 1401-003.651 (sessão de 14/08/2019), entendeu-se que como constava no relatório fiscal que a RMF teria sido emitida por agente competente e nas situações previstas na legislação, de forma a possibilitar ao contribuinte aferir a legalidade do procedimento administrativo, não haveria que se falar em nulidade do procedimento, ainda que não constasse nos autos o citado relatório.

Já no Acórdão 1301-003.764, o colegiado cancelou a exigência em razão de, mesmo em sede de diligência, não ter sido localizado e disponibilizado ao contribuinte cópia do relatório circunstanciado que motivou a emissão da RMF. Entendeu-se, assim, que houve nulidade na obtenção dos extratos bancários, e, por consequência, ausência de provas lícitas de omissão de receitas. Nesse julgado, o voto condutor do aresto salienta a importância do Decreto nº 3.724/2001, a ponto de o STF, no julgamento da ADI 2.859-­DF, ao declarar constitucional o direito do Fisco ao acesso à movimentação financeira do contribuinte, fazer menção expressa no sentido de que as autoridades fiscais dos Estados e Municípios somente poderão acessar diretamente estas informações quando os respectivos poderes executivos editarem regulamentos semelhantes ao citado Decreto Federal.

Por outro lado, sobre o tema foram identificados apenas dois pronunciamentos das turmas que compõem a CSRF: enquanto no Acórdão 9202-003.897 (sessão de 13/04/2016), entendeu-se não existir vícios tanto no relatório circunstanciado quanto na própria RMF, no Acórdão 9202-007.438 (sessão de 12/12/2018), a 2ª Turma pronunciou-se no sentido de que embora a expedição da RMF deve ser precedida de intimação ao sujeito passivo para prestar informações sobre a sua movimentação financeira, a legislação não estipularia a quantidade de intimações a serem feitas pela Fiscalização, e, uma vez tendo o contribuinte sido intimado a prestar as informações sobre movimentação financeira, e não o fazendo a contento, restaria caracterizado o “embaraço à Fiscalização”.

Conforme se observa, em que pesem os inúmeros enunciados de Súmula sobre o tema, há ainda matérias controvertidas envolvendo a exigência de tributos com base em omissão de receitas decorrentes da presunção legal a que se refere o art. 42 da Lei nº 9.430/96, não só no que diz respeito a sua aplicação em casos específicos, como também no correto rito processual para obtenção das informações bancárias dos contribuintes, pelo Fisco, diretamente das instituições financeiras.

Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas sim uma análise dos seus precedentes publicados no sítio virtual do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] Remete-se o leitor à consulta da redação integral do art. 42 da Lei nº 9.430, de 1996 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9430.htm).

[2] Art. 374. Não dependem de prova os fatos:

[…]

IV – em cujo favor milita presunção legal de existência ou de veracidade.

[3] Súmulas Carf números 25, 26, 29, 30, 32, 34, 35, 38, 61 e 120, disponíveis para consulta em http://idg.carf.fazenda.gov.br/jurisprudencia/sumulas-carf/sumulas-por-materia/depositos-bancarios).

[4] Remete-se o leitor à consulta da redação do art. 3º do Decreto nº 3.724, de 2001 (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2001/D3724.htm).

[5] Art. 4º Poderão requisitar as informações referidas no § 5º do art. 2º as autoridades competentes para expedir o MPF

§ 1º A requisição referida neste artigo será formalizada mediante documento denominado Requisição de Informações sobre Movimentação Financeira (RMF) e será dirigida, conforme o caso, ao:

[…]

§ 2º A RMF será precedida de intimação ao sujeito passivo para apresentação de informações sobre movimentação financeira, necessárias à execução do MPF.

§ 3º O sujeito passivo responde pela veracidade e integridade das informações prestadas, observada a legislação penal aplicável.

[…]

§ 5º A RMF será expedida com base em relatório circunstanciado, elaborado pelo Auditor-Fiscal da Receita Federal do Brasil encarregado da execução do procedimento fiscal ou pela chefia imediata.

§ 6º No relatório referido no parágrafo anterior, deverá constar a motivação da proposta de expedição da RMF, que demonstre, com precisão e clareza, tratar-se de situação enquadrada em hipótese de indispensabilidade prevista no artigo anterior, observado o princípio da razoabilidade.

[…]

§ 8º A expedição da RMF presume indispensabilidade das informações requisitadas, nos termos deste Decreto.

Autores

  • Brave

    é conselheiro presidente da 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 1ª Seção do Carf, auditor fiscal da Receita Federal, instrutor da Escola de Administração Fazendária (Esaf) e professor em cursos de especialização na Unisinos, Universidade Lasalle e Verbo Jurídico. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Feevale em parceria com a PUCRS e bacharel em Direito pela Universidade Feevale e em Ciências Contábeis pela Universidade de São Paulo.

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