Academia de Polícia

Investigação e acusação não são regidas pelo in dubio pro societate

Autor

  • Henrique Hoffmann

    é delegado de Polícia Civil do Paraná autor pela Juspodivm professor da Verbo Jurídico Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná mestre em Direito pela Uenp colunista da Rádio Justiça do STF e ex-professor do Cers TV Justiça Secretaria Nacional de Segurança Pública Secretaria Nacional de Justiça Escola da Magistratura Mato Grosso Escola do Ministério Público do Paraná Escola de Governo de Santa Catarina Ciclo Curso Ênfase CPIuris e Supremo.

25 de setembro de 2019, 12h32

Spacca
Como se sabe, o princípio da presunção de inocência é consagrado não apenas no ordenamento constitucional (artigo 5º, LVII da CF), mas também convencional (artigo 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos) e legal (artigo 386, VI do CPP). Enquanto a Lei Maior estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o Pacto de São José da Costa Rica afirma que toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Daí a existência de diferentes terminologias para se referir ao mesmo postulado, havendo quem prefira o termo princípio da presunção de não culpabilidade.

Do estado de inocência decorrem duas regras básicas:[1] (a) a regra probatória segundo a qual a dúvida na persecução criminal milita em favor do réu (in dubio pro reo), e (b) a regra de tratamento de acordo com a qual a prisão cautelar configura exceção.

Quanto à regra probatória, grande parte dos estudiosos limita sua incidência após a deflagração do processo penal (depois do recebimento da acusação), a fim de que o magistrado faça, no momento da sentença, a valoração da prova.

Contudo, a valoração da prova ocorre também nos momentos anteriores à sentença, a saber, instauração ou não do inquérito policial, indiciamento ou não indiciamento, oferecimento da denúncia ou requerimento de arquivamento, e recebimento ou não da denúncia. E nessas fases costuma-se falar em princípio do in dubio pro societate como suposta variação da regra probatória penal.

De acordo com o in dubio pro societate, em caso de dúvida sobre a materialidade e autoria, estaria autorizada a investigação, o indiciamento e a acusação, pois a incerteza favoreceria a sociedade em detrimento do imputado. Significa dizer que se a autoridade policial tiver incerteza, deve instaurar o inquérito e indiciar; se o promotor estiver indeciso, deve acusar; se o juiz estiver confuso, deve receber a denúncia. Segundo essa corrente de pensamento, não deveria o in dubio pro reo obstar o prosseguimento da persecução.

Todavia, parece indevido esse afastamento do princípio da presunção de inocência durante a persecução criminal, por contrariar a lógica que rege o desenrolar da investigação e processo judicial e os stantards probatórios exigidos.

O desenvolvimento da persecução penal (desde sua primeira fase policial até sua segunda etapa judicial) tem início com a instauração do inquérito policial e indiciamento, passando pelo oferecimento e recebimento acusação, e chegando por fim à sentença. O avanço na persecução é diretamente proporcional ao aumento do grau de convicção sobre materialidade e autoria delitivas. Quanto mais constrangedora a ação estatal contra o imputado (indiciamento, acusação ou condenação), maior o patamar de convencimento.

Nesse sentido, o standard probatório aumenta de um juízo de possibilidade na instauração da investigação, para um juízo de probabilidade no indiciamento e acusação, chegando por fim a um juízo de certeza (além de dúvida razoável) [2] na condenação.

Em outros termos, o inquérito policial somente pode ser iniciado mediante indícios mínimos (princípio de justa causa); o indiciamento e a acusação só são autorizadas com indícios suficientes (justa causa); e a condenação apenas se justifica com provas robustas.

Embora não se tenha alcançado um consenso quanto ao significado preciso dos standards probatórios,[3] podemos falar em prova crível, prova preponderante e prova para além de dúvida razoável, para exprimir respectivamente o juízo de possibilidade, juízo de probabilidade e juízo de certeza necessários nas diferentes fases da persecução criminal.

A probabilidade percebe os motivos convergentes e divergentes e os julga dignos de serem levados em conta se bem que mais os primeiros e menos os segundos. A certeza acha, ao contrário, que os motivos divergentes da afirmação não merecem racionalmente consideração, e por isso, afirma.[4]

O que precisa ficar claro é que, havendo dúvidas sobre a existência de indícios mínimos de materialidade e autoria, não se deve instaurar o inquérito policial. E se for incerta a presença de indícios veementes do crime e de seu autor, o indiciamento e a acusação não devem ser feitas. A dúvida, portanto, continua beneficiando o imputado, por aplicação do in dubio pro reo.

Por isso mesmo já há vozes na doutrina e nos Tribunais Superiores se insurgindo contra o in dubio pro societate:

Percebe-se a lógica confusa e equivocada ocasionada pelo suposto “princípio in dubio pro societate”, que, além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova.[5]

Por mais que se queira propalar a máxima de que, no átrio da ação penal, teria força a máxima in dubio pro societate, em verdade, tal aforisma não possui amparo legal, nem decorre da lógica do nosso sistema processual penal, constitucionalmente orientado. A tão só sujeição ao juízo penal já representa, per se, um gravame, cuja magnitude Carnelutti já dimensionava como verdadeira sanção. Desta forma, é imperioso que haja razoável grau de convicção para a submissão do indivíduo aos rigores persecutórios. Trata-se de uma das fases do escalonamento da cognição, que se inicia pelo indiciamento, passa pelo recebimento da acusação e se ultima com a sentença, recebendo a pá de cal com o trânsito em julgado. [6]

Afirmar, simplesmente, que a pronúncia é mera admissibilidade da acusação e que estando o Juiz em dúvida aplicar-se-á o princípio do in dubio pro societate é desconhecer que num País cuja Constituição adota o princípio da presunção de inocência torna-se heresia sem nome falar em in dubio pro societate.[7]

Isso não se confunde, obviamente, com o in dubio pro societate. Não se trata de uma regra de solução para o caso de dúvida, mas sim de estabelecer requisitos que, do ponto de vista do convencimento.[8]

Que fique bem claro que a inexistência do princípio do in dubio pro societate não traduz a exigência de certeza para investigar, indiciar ou acusar, mas apenas a não admissibilidade da utilização da máxima como artimanha para camuflar o não atingimento do standard probatório. A ausência de dúvidas ou a incerteza em baixo patamar (com inverossimilhança da versão defensiva) persiste sendo reclamada somente para a condenação.

Também convém salientar que negar a existência do in dubio pro societate não significa deixar a sociedade desprotegida. Pelo contrário, quando se impede a deflagração e o desenvolvimento de persecuções penais temerárias, os direitos fundamentais dos indivíduos são protegidos e a coletividade ganha com um sistema mais racional e justo. No Estado de Direito, o estado de inocência deve reger qualquer etapa da persecução penal, servindo de norte na atuação dos agentes públicos e de proteção para os cidadãos contra o arbítrio estatal.

Nessa vereda, é preciso que as deliberações do delegado de polícia (ao iniciar o inquérito ou indiciar), do promotor (ao acusar) e do juiz (ao receber a denúncia ou pronunciar) estejam fundamentadas na existência do lastro probatório exigido, não podendo a dúvida autorizar o avanço da atividade persecutória estatal.

Outrossim, o Ministério Público deve cessar a comum prática de acusar sem provas suficientes, sob o argumento de que durante a ação penal serão colhidos os elementos necessários. Até porque o processo penal costuma seguir a sorte da investigação, apenas chancelando as provas cautelares e irrepetíveis (com a formalização do contraditório diferido) e repetindo as oitivas sob o crivo do contraditório (com sua transformação de elementos informativos em probatórios).

A discussão sobre a valoração da prova certamente é importante,[9] porém a criação de princípio sem amparo legal em nada contribui para o avanço do debate.


1 TORRES, Jaime Vegas. Presunción de inocência y prueba em el processo penal. Madrid: La Ley, 1993, p. 35.

2 artigo 386, VI do CPP; STF, AP 470, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 22/04/2013; STF, AP 676, Rel. Min. Rosa Weber, DJ 17/10/2017; STF, HC 83.947, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 07/08/2007.

3 GARDNER, Thomas J; ANDERSON, Terry M. Criminal evidence: principles and cases. 2010.

4 MALATESTA, Nicola. A lógica das provas em matéria criminal. São Paulo: Conan, 1995, p. 61.

5 STF, ARE 1.067.392, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 26/03/2019.

6 STJ, HC 175.639, Rel. Min Maria Thereza de Assis Moura, DJ 20/03/2012.

7 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 79.

8 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahi. Ônus da prova no processo penal. São Paulo, RT, 2004, p. 390-391.

9 KNIJNIK, Danilo. A prova nos juízos cível, penal e tributário. Rio de Janeiro> Forense, 2007. p. 6.

Autores

  • Brave

    é delegado de Polícia Civil do Paraná. Professor do Cers (onde também coordena a pós-graduação), da Escola da Magistratura do Paraná, da Escola da Magistratura de Mato Grosso, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e do Senasp. Mestre em Direito pela Uenp. Coordenador do Iberojur no Brasil. Colunista da Rádio Justiça do STF e autor e coordenador do Juspodivm. www.henriquehoffmann.com

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