Contas à Vista

DDD fiscal traz desigualdade, desonestidade e destruição constitucional

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24 de setembro de 2019, 8h00

“Mas então”, eu disse, “de que serve esconder os livros, se pelos livros acessíveis se pode chegar aos ocultos?”
“No decorrer dos séculos não serve para nada. No arco dos anos e dos dias serve para alguma coisa. Vê como nos encontramos de fato perdidos.
“E então uma biblioteca não é um instrumento para divulgar a verdade, para retardar sua aparição?” perguntei estupefato.
“Não sempre e não necessariamente. Neste caso é.”

Umberto Eco, em “O Nome da Rosa”

Spacca
A interdição do debate sobre a revisão do teto dado pela Emenda 95/2016 e, por conseguinte, o bloqueio da reflexão sobre alternativas contrapostas à tese dogmática de que “o” único problema das contas públicas brasileiras residiria nas despesas primárias obrigatórias, aos nossos ouvidos, soa como uma profissão de fé quase inquisitorial.

Parodiando Umberto Eco, em sua notável obra “O Nome da Rosa”, estamos a viver no Brasil, às vésperas do trigésimo primeiro aniversário da nossa Constituição Cidadã, uma misteriosa narrativa de ocultações e dogmas quase religiosos sobre como equalizar fiscalmente nossas prioridades orçamentárias e financeiras.

Entre a Emenda 95/2016 e o texto permanente da Constituição de 1988, há os que defendem francamente a suposta preservação incólume da primeira, a pretexto de desobrigar, desvincular e desindexar o Estado das suas atribuições constitucionais nucleares, como se o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias se prestasse ao papel de substituto hipócrita (uma espécie de “Retrato de Dorian Gray”?[1]) do nosso pacto civilizatório.

Sem corrigir distorções da regressiva matriz tributária e do elevado estoque de renúncias fiscais[2], tampouco sem cumprir os ditames constitucionais sobre os limites de dívida consolidada e mobiliária federal[3], a proposta de desvincular, desindexar e desobrigar o orçamento público traz consigo, a bem da verdade, outra tríade “DDD”: desigualdade, desonestidade e destruição constitucional.

Nesse sentido, soa como chantagem[4], sem qualquer “autoridade moral”, como bem assinalado por Armínio Fraga[5], falar em “abismo inflacionário”[6] diante da cavalar desigualdade brasileira e, sobretudo, diante da persistente agenda de anistiar[7]/desonerar alguns em detrimento de todos… O alerta dado pelo ex-presidente do Banco Central brasileiro é claro no sentido de que “não dá mais para esperar o bolo crescer para, lá na frente, investir no social”, sobretudo porque:

“A desigualdade é um veneno que dificulta a construção de uma agenda de reformas necessária para o crescimento”.

Atacar esse veneno requer uma “megafaxina” nas iniquidades, ineficiências e aberrações que existem na política de pessoal do setor público, nos gastos tributários e na Previdência social. A reforma da Previdência que está para ser votada no Senado, ao incluir Estados e municípios, terá efeito impactante. Falta a reforma do Estado e uma limpeza geral nos regimes tributários especiais, nas desonerações, nos subsídios.

Arminio considera possível obter de 2 a 3 pontos percentuais do PIB de economia em cada um desses três grandes blocos de despesa. Isso somado à alta de alguns impostos resultaria em um ajuste de até 9% do PIB em recursos que deveriam, segundo a sua visão, ser usados em mais investimentos na área social e para o sanar o déficit público.

“Uma resposta eficaz ao quadro de estagnação desigual passa, obrigatoriamente, pelo aumento dos investimentos públicos em saúde, educação, saneamento, transportes, segurança, infraestrutura e ambiente”, atesta ele, que define de onde viriam os recursos para os investimentos. […]

A resistência política às reformas é grande. Mas a terceira frente de combate às desigualdades daria “autoridade moral” para a proposta como um todo, acredita ele. São os gastos tributários – entendidos como a redução de impostos mediante desonerações e regimes especiais. […]

Do lado das receitas, Arminio sugere uma revisão nas deduções e isenções no Imposto de Renda das pessoas físicas; aumento da alíquota para rendas mais elevadas; o fim da “pejotização”, que permite que indivíduos com altas rendas paguem IR bem menor que o da tabela do IRPF. A faxina teria que pegar também o Simples e o imposto sobre o lucro presumido, cita.

A tributação sobre a renda do capital é baixa, diz. Ele propõe a inclusão dos dividendos na renda tributável. […]

O imposto sobre heranças e doações, que varia de 4% a 8% nos Estados, deveria ter uma escala com alíquotas mais elevadas e com uma boa base de isenção. Nos EUA, a alíquota mais alta chega a 45%, mas há limite grande de doações isentas.

Outra sugestão do ex-presidente do BC é uma redução da tarifa média e da variância de alíquotas do imposto de importação sem justificativa econômica, o que leva à suspeita de captura do Estado por alguns segmentos. Ou seja, dar um passo maior na direção de uma economia mais aberta deve ser um objetivo para os próximos cinco a oito anos. […] As coisas foram acontecendo ao longo de décadas e só somando, somando, sem saber de onde vinha o dinheiro. Quando você faz as contas, vê que é um sistema que está cheio de moleza para quem não precisa, para quem não merece, e a carga tributária é muito horizontal. Não é à toa que gerou esse resultado: o baixo crescimento associado à desigualdade.” (grifos nossos)

Diante das propostas de Armínio Fraga acima arroladas, apresenta-se, no mínimo, como parcial e limitado o foco da agenda “DDD”, assumida por Mansueto Almeida[8], na qualidade de Secretário do Tesouro Nacional:

O baixo nível do investimento público no Brasil não é culpa do teto dos gastos, mas sim do crescimento excessivo das despesas obrigatórias, o excesso de vinculações e a elevada indexação do orçamento. O desafio de mexer com essas três características do orçamento em conjunto com a reforma administrativa, controle de concursos públicos e suspensão de aumentos salariais por alguns anos é o que de fato importa para o controle da despesa. O teto dos gastos apenas explicita esse desafio.

[…] A grave situação fiscal do Brasil decorre do crescimento excessivo das despesas obrigatórias e, se não mudarmos essa situação, pagaremos mais impostos para equilibrar as contas ou a inflação poderá reclamar o seu direito de impor um “ajuste” forçado. (grifos nossos)

Muito embora concordemos com a necessidade de aprimorar o controle das despesas com pessoal ativo e inativo, especialmente em face do descompasso fiscal entre os três poderes (algo que já expusemos em diversas oportunidades nesta coluna Contas à Vista, dentre as quais destacamos https://www.conjur.com.br/2017-mar-01/50-anos-decreto-lei-200-falencia-estado e https://www.conjur.com.br/2018-ago-14/contas-vista-sistema-freios-contrapesos-desbalanceado-piora-desajuste-fiscal), aqui particularmente indagamos: qual é a razão de ser da aparente impossibilidade de o governo federal buscar equidade de ajuste também pelo prisma das receitas e do controle das despesas financeiras?

Enigmaticamente, eis uma pergunta que mata os incautos leitores dos livros proibidos, porque falar em alternativas é depor contra o sofrimento unívoco e a disciplina inquisitorialmente imposta como exercício seletivo e assimétrico de ocultação da verdade.

Propor tão somente[9] corte de despesas primárias obrigatórias é uma espécie de proibição mortal à equidade fiscal que ampara o custeio dos direitos sociais (o que, na obra de Umberto Eco, equivaleria à apologia do riso e suas virtudes, no proibido acesso à “Poética” de Aristóteles).

Assim, mortes simbólicas e reais se acumulam, porque não ousamos dar nome à rosa e denunciar o que Martin Wolf claramente apontou em seu artigo “Capitalismo rentista ameaça a democracia”[10]:

“Capitalismo rentista” significa uma economia na qual o mercado e o poder político permitem que pessoas físicas e jurídicas privilegiadas extraiam um bom volume dessa renda de todos os demais. […] As finanças desempenham papel central, com várias dimensões. O setor financeiro liberalizado tende a entrar em processo de metástase, como um câncer. Assim, a capacidade desse setor de criar crédito e dinheiro é o que financia suas próprias atividades, receitas e lucros (mitos vezes ilusórios).

Um estudo de 2015 de Stephen Cecchetti e Enisse Kharroubi para o Banco de Compensações Internacionais (BIS) disse que “o nível de desenvolvimento financeiro é bom só até certo ponto, a partir do qual torna-se um entrave ao crescimento”. Afirma também que “um setor financeiro de crescimento acelerado é prejudicial ao crescimento da produtividade agregada”.

[…] É por isso que nenhum governo atual ousa permitir que o setor financeiro, supostamente dirigido pelo mercado, opere desassistido e sem comando. Mas isso, por sua vez, cria enormes oportunidades de ganho com a irresponsabilidade: jogando a moeda, se der cara, eles ganham; se der coroa, todos perdemos. Novas crises são inevitáveis. O setor financeiro também cria crescente desigualdade.

[…] Um aspecto vergonhoso da busca por renda é a radical elisão fiscal. Empresas (e, portanto, também os acionistas) se beneficiam de bens públicos — segurança, sistemas jurídicos, infraestrutura, população economicamente ativa escolarizada e estabilidade sociopolítica — fornecidos pelas democracias liberais mais poderosas. Mas essas empresas também estão em posição perfeita para explorar brechas fiscais, principalmente as que têm locais de produção ou inovação difíceis de definir. Os maiores desafios no âmbito do sistema fiscal corporativo são a concorrência fiscal, a erosão da base de cálculo e a transferência dos lucros (BEPS, pelas iniciais em inglês). Vemos a primeira na queda das alíquotas de impostos. Vemos as últimas na localização de propriedade intelectual em paraísos fiscais, na cobrança de dívidas dedutíveis dos impostos sobre lucros em países de taxação elevada e nas transferências de lucros dentro das empresas.

[…] Nesses casos, as rendas não estão sendo simplesmente exploradas. Elas estão sendo criadas, por meio de “lobby” em favor de brechas fiscais distorsivas e injustas e contrário à tão necessária regulação de fusões, de práticas anticoncorrenciais, do comportamento financeiro impróprio, do meio ambiente e dos mercados de trabalho. O “lobby” corporativo esmaga os interesses dos cidadãos comuns. Na verdade, alguns estudos sugerem que os desejos dos cidadãos têm peso praticamente nulo na formulação de políticas públicas. Especialmente, à medida que algumas economias ocidentais se tornaram mais latinoamericanas na distribuição de suas rendas, sua política também se tornou mais latinoamericana. Alguns dos novos populistas estudam mudanças radicais, mas necessárias, nas políticas concorrencial, reguladora e fiscal. Mas outros recorrem a mensagens xenófobas muito precisamente dirigidas, enquanto continuam a promover um capitalismo manipulado para favorecer uma pequena elite. Essas atividades poderão desembocar, talvez, na morte da própria democracia liberal.

[…] O que parecemos cada vez mais ter, em vez disso, é um instável capitalismo rentista, uma concorrência enfraquecida, um crescimento fraco da produtividade, alta desigualdade e, não por acaso, uma democracia cada vez mais degradada. Corrigir isso é um desafio para todos nós, mas principalmente para os que comandam as empresas mais importantes do mundo. A maneira pela qual nossos sistemas econômico e político operam tem de mudar, ou eles vão perecer. (grifos nossos)

“O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, calha bem ao debate fiscal brasileiro, porque é como se estivéssemos em plena Idade Média e como se o orçamento público fosse uma biblioteca de acesso restrito. Há ali sendas e livros proibidos, em prol do adiamento da descoberta de uma crua realidade que encerra escolhas fiscais iníquas (um “orçamento de castas”[11]?) e, por vezes, cínicas[12] de tão fisiológicas.

Retardar a aparição da verdade é algo que – no curto prazo – pode dar certo, mas os muitos mortos pelo esgarçamento fiscal já deixam vestígios da farsa fiscal em que se assenta nossa democracia, cada vez mais revelada, como já dissemos, na forma de outros três “D’s”: desigualdade, desonestidade e destruição constitucional.

Um último alerta, contudo parece-nos necessário: juridicamente, o antônimo de discricionariedade não é vinculação, mas, sim, arbitrariedade. Aqui esse é o nome da rosa: orçamento desatrelado da Constituição nada mais é do que arbitrariedade.


[1] Como suscitamos em https://www.conjur.com.br/2016-set-27/adct-retrato-dorian-gray-constituicao-1988

[2] Em rota de descumprimento dos arts. 21, 116 e 139 da LDO federal vigente.

[3] Trata-se de uma omissão inconstitucional, como Lais Khaled Porto, José Roberto Afonso e esta colunista escrevemos em https://www.conjur.com.br/2017-dez-05/contas-vista-inconstitucional-omissao-limitar-divida-publica-federal

[4] Esta colunista e Thales Garcia Nogueira alertamos que “diante do risco de paralisia de serviços públicos essenciais, o prognóstico de desvinculação total soa como extorsão reformista dos ditames constitucionais, mediante sequestro das regras que lhe asseguram custeio adequado.” https://www.conjur.com.br/2019-set-10/contas-vista-equalizar-regras-fiscais-necessidade-constitucional-economica

[5] Em entrevista concedida a Claudia Safatle no jornal Valor, em 20/09/2019 e disponível em https://valor.globo.com/brasil/coluna/um-programa-fiscal-progressista.ghtml

[6] Como suscitado por Samuel Pessoa em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/samuelpessoa/2019/09/chegou-o-dia-seguinte-da-previdencia.shtml

[7] Cabe aqui trazer o exemplo do debate recente sobre a anistia dos débitos do Funrural https://exame.abril.com.br/economia/ruralistas-podem-obter-anistia-de-divida-de-r-17-bilhoes/ e a mitigação do alcance moralizante da nova redação dada para o §11 do art. 195 pela PEC 6/2019, para conter sucessivos refinanciamentos tributários a sonegadores contumazes.

[8] Em artigo denominado “O orçamento de 2020 e os desafios do ajuste fiscal”, publicado no jornal Valor Econômico no dia 20/09/2019 (disponível em https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-orcamento-de-2020-e-os-desafios-do-ajuste-fiscal.ghtml)

[9] Vale a pena notar que o debate ampliado de outras alternativas na PEC 438/2018 segue também paralisado, como noticiado em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/09/pec-do-controle-de-gastos-vai-para-gaveta-por-falta-de-interlocucao-com-governo-diz-presidente-da-ccj.shtml

[10] Artigo originalmente publicado no Financial Times (https://www.ft.com/content/5a8ab27e-d470-11e9-8367-807ebd53ab77), cuja tradução está disponível em https://valor.globo.com/mundo/noticia/2019/09/20/capitalismo-rentista-ameaca-a-democracia.ghtml

[11] Como suscitamos em https://www.conjur.com.br/2018-out-09/contas-vista-alheio-eleicoes-orcamento-castas-ordena-prioridades-insolvencias

[12] Laura Carvalho ironicamente chega a apontar, no seu artigo denominado “O topo acima de todos”, que “Em vez de trabalhar para eliminar o caráter regressivo da tributação, o plano da equipe econômica parece ser o de tornar o Estado brasileiro concentrador de renda em seu conjunto por meio da "desvinculação, desobrigação e desindexação" de despesas. […] em meio à recuperação mais lenta da história das crises, a adoção de medidas que ampliam nossas abissais desigualdades afasta também qualquer possibilidade de retomada mais rápida da economia. […] Com as taxas de juros mais baixas, não faltam agendas alternativas compatíveis com a estabilidade da razão dívida-PIB no curto prazo, que reduzem desigualdades e estimulam o crescimento. Quando escolhe a via dos cortes de gastos e benefícios sociais, a equipe econômica deixa muito claro a que veio: atender os interesses do topo de nossa pirâmide distributiva.” (disponível em https://www1.folha.uol.com.br/amp/colunas/laura-carvalho/2019/09/o-topo-acima-de-todos.shtml, grifos nossos)

Autores

  • Brave

    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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