Opinião

O Supremo, afinal, representa o povo? Um diálogo com o ministro Barroso

Autor

  • Gustavo Binenbojm

    é procurador do estado do Rio de Janeiro e professor titular da Faculdade de Direito da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

23 de setembro de 2019, 21h43

I. Introdução
No belo e corajoso artigo intitulado “A razão sem voto”, o ministro Luís Roberto Barroso apresenta uma síntese de sua visão sobre os papéis institucionais exercidos pelo Supremo Tribunal Federal no arcabouço da democracia brasileira. Fruto certamente de uma combinação de suas reflexões teóricas como scholar e de sua experiência prática como jurista, advogado e, mais recentemente, juiz da própria Corte, o texto refaz o itinerário histórico do constitucionalismo no Brasil, descreve com precisão a emergência do Judiciário como Poder político independente após a promulgação da Constituição de 1988, e culmina com a apresentação, tanto em termos descritivos como prescritivos, das funções que, segundo o autor, deveriam caber à jurisdição constitucional.

Spacca" data-GUID="gustavo-binenbojm1.png">De parte o seu já tradicional papel contramajoritário, consistente na fiscalização e anulação de leis e demais atos normativos contrários à Constituição, Barroso atribui ainda ao Supremo dois outros papéis menos ortodoxos: o papel representativo, entendido como a função de captar o sentimento ou a vontade popular majoritária que haja sido negligenciada pelos canais de representação política, traduzindo-a de forma argumentativa; e o papel de vanguarda iluminista, em cujo exercício a Corte assumiria a tarefa de empurrar a história e impulsionar o progresso social.

A razão subjacente a justificar e legitimar tais funções mais heterodoxas, ao menos à luz da doutrina tradicional, parece ser a crise da representação, a natureza falha do processo político eleitoral para expressar os anseios e preferências da maioria da população e a sua maior permeabilidade à captura por grupos de interesses políticos, econômicos e corporativos. Da menor suscetibilidade dos juízes às influências da política partidária e eleitoral, de sua vitaliciedade e recrutamento predominantemente por concursos públicos, do dever de fundamentação das decisões e da abertura do processo constitucional à participação da sociedade civil, Barroso extrai esse duplo encargo da Justiça Constitucional: vocalizar a voz das ruas, elaborada sob a forma de argumentos jurídicos, diante da indiferença das instâncias representativas (uma espécie de papel representativo subsidiário); e fazer ecoar a sua própria voz, para “empurrar a história quando ela emperra” (papel de vanguarda iluminista).

Tenho por objetivo neste artigo discorrer, de forma abreviada, sobre as fontes de legitimação democrática dos Tribunais Constitucionais e discutir os possíveis impactos, em termos de incentivos políticos, dos papéis de instância representativa e de vanguarda iluminista inovadoramente sugeridos pelo Ministro Luís Roberto Barroso.

II. Jurisdição Constitucional, democracia e o problema contramajoritário
Quando, há pouco mais de dois séculos, John Marshall proferiu a sua célebre decisão no caso Marbury v. Madison, havia mais em jogo do que apenas a supremacia da constituição escrita e a autoridade do Poder Judiciário para determinar seu sentido em caráter definitivo. De fato, essa decisão histórica inaugurou uma nova era nas relações entre a política e o direito: um experimento que propôs a combinação da noção liberal de governo limitado com a ideia democrática de soberania popular.

Embora esses dois ideais contenham aspirações humanas ancestrais, eles sempre conviveram em uma relação delicada e conflituosa. Assim, o controle judicial da constitucionalidade surgiu nos Estados Unidos da América como a voz da razão —“desprovida de força ou vontade, e dotada apenas de discernimento” (“having neither force nor will, but merely judgment”, v. Alexander Hamilton, Federalist n˚ 78, p. 523, 1961)— e invocando sua aptidão para, de forma racional e isenta, delinear as fronteiras entre os valores básicos da sociedade (os limites constitucionais) e a vontade da maioria (as leis e programas de governo). Desde então, e por razões mais pragmáticas que teóricas, a modernidade tem tentado realizar seu projeto de racionalização da política mundo afora por meio do discurso constitucional.

Nada obstante, o exercício da jurisdição constitucional é marcado, desde suas origens remotas, por um dilema: entregar a tarefa de interpretar a Constituição, em caráter definitivo, aos legisladores, e com isso consagrar a supremacia do Parlamento, e não propriamente das ideias contidas na Lei fundamental; ou confiá-la a um Tribunal em moldes judiciários, e com isso conferir a última palavra jurídica da Nação a um colegiado de juízes não eleitos e não submetidos à forma mais tradicional de accountability democrática, que são as eleições periódicas.

A tendência inquestionável à opção pelo modelo de controle jurisdicional da constitucionalidade das leis – e que se expandiu até para redutos de resistência histórica a sua influência, como a França, a partir da reforma constitucional de 2008, com a inserção no ordenamento jurídico francês da chamada “questão prioritária de constitucionalidade” (question prioritaire de constitutionnalité) – revela a ascensão dos Tribunais Constitucionais no mundo ocidental, desde pelo menos o segundo pós-guerra, como estratégia institucional de moderação à soberania popular e de proteção das minorias. Com efeito, a experiência histórica recente demonstra que as Cortes constitucionais têm cumprido um importante papel de salvaguarda de direitos fundamentais e árbitro dos conflitos entre os Poderes, servindo de maneira satisfatória à causa da democracia.

Essa constatação, entretanto, não resolve o dilema. Antes, ao contrário, torna-o ainda mais problemático. Isso porque as intervenções da jurisdição constitucional em decisões dos demais Poderes não são mais apenas pontuais e episódicas —como o foram, no século XIX, as da Suprema Corte norte-americana, limitadas a duas— mas passaram a constituir o cotidiano dos regimes democráticos. Como as Constituições não são documentos claros e objetivos, a tarefa de interpretá-las e aplicá-las envolve sempre uma margem, maior ou menor, de subjetividade do intérprete. É dizer, os Tribunais Constitucionais atuam criativamente na suposta revelação do sentido dos textos que interpretam. Qual a fonte de legitimidade democrática desse enorme poder, que anula leis votadas pela maioria dos representantes eleitos pelo povo? Mais ainda, o que legitima decisões integrativas das Cortes, que passam a desempenhar um papel verdadeiramente normativo, em muito desbordante da tradicional alegoria do legislador negativo kelseniano?

Robert Alexy sustenta que o Tribunal Constitucional se legitima quando a coletividade o aceita como instância de reflexão racional do processo político. Se um processo de reflexão entre coletividade, legislador e Tribunal Constitucional se estabiliza duradouramente – isto é, quando a Corte Constitucional adquire credibilidade política e social –, pode-se afirmar que a institucionalização dos direitos do homem deu certo, no âmbito do Estado Democrático de Direito (Robert Alexy, Direitos Fundamentais no Estado Constitucional Democrático. Para a Relação entre Direitos do Homem, Direitos Fundamentais, Democracia e Jurisdição Constitucional, in Revista de Direito Administrativo n° 217, jul./set. 1999, p. 66). Neste sentido é que Alexy faz alusão à função de representação argumentativa do Tribunal Constitucional, segundo a qual a sua legitimidade depende da sua capacidade de produzir argumentos válidos e corretos, que obtenham a aceitação e adesão da sociedade (Robert Alexy, Ponderação, jurisdição constitucional e representação, in Constitucionalismo Discursivo, 2007, pp. 155-166).

A atribuição de uma função de representação ao Tribunal Constitucional, como propõem Alexy e Barroso, desperta algumas perplexidades. O caráter democrático de uma instituição não decorre apenas da investidura popular. A legitimidade pode decorrer de sua funcionalidade para o regime democrático, isto é, da capacidade que tenha de contribuir para a continuidade e o aprimoramento da democracia. Assim, ao preservar direitos fundamentais e as regras do jogo democrático, anulando leis aprovadas pela maioria parlamentar, a atuação da jurisdição constitucional se dá a favor, e não contra a democracia. De igual modo, quando a Corte adota procedimentos decisórios abertos, transparentes e racionais, de forma permitir uma participação ativa dos cidadãos na construção de suas deliberações.

Isto, no entanto, não me parece autorizar que o Tribunal Constitucional se arrogue um papel propriamente de representação popular.

III. Objeções e possíveis disfunções decorrentes da atribuição de um papel representativo e de vanguarda iluminista ao Supremo Tribunal Federal
Em primeiro lugar, entendo que a ideia de representação política é modernamente associada ao exercício de mandatos livres, sem deferência formal à vontade dos representados. Tal liberdade é relativizada pela temporariedade do mandato e pelo seu caráter eletivo, o que assegura algum nível de accountability democrática.  Tal regime cria, assim, uma estrutura de incentivos políticos que direcionam os representantes, mediatamente, à busca da satisfação das aspirações dos representados, dentro da lógica da política eleitoral. Neste contexto, a possibilidade de responsabilização política dos agentes políticos pelo povo é a mola-mestra da democracia representativa.

Ora, a ideia de representação não parece refletir a relação entre o povo e o Poder Judiciário —ou entre aquele e o Supremo Tribunal Federal. Vivemos sob um regime em que os juízes não devem sua investidura à escolha popular e são vitalícios, não estando, portanto, sujeitos aos mecanismos temporários de responsabilização política. Ademais, não existe entre nós a figura do recall, nem tampouco temos tradição de impeachment de Ministros da Suprema Corte. Por fim, não custa lembrar que os juízes constitucionais não são politicamente livres, mas encontram-se jungidos a procedimentos e deveres de fundamentação técnica de suas decisões.

Qual o sentido, então, de atribuir-se ao Tribunal Constitucional um papel de representação política? Sua invocação, ademais, oferece o risco de alguma legitimação a priori, com a liberação dos ônus de fundamentação, transparência e permeabilidade à participação dos cidadãos. Embora não seja evidentemente este o caso de Barroso e Alexy, a ideia da função representativa pode se prestar, em contextos de embate institucional, como argumento retórico para a usurpação de poderes conferidos pelo povo a seus representantes políticos.

Veja-se ainda que a atribuição de função representativa às Cortes Constitucionais cria, potencialmente, uma alteração da estrutura de incentivos políticos no regime democrático. Preocupados em buscar apoio popular, juízes constitucionais sentir-se-iam intimidados pelo risco de reprovação de sua atuação em pesquisas de opinião ou em críticas jornalísticas, o que poderia inibir a prolação de decisões impopulares. Surgiria, assim, um fator dificultador ao cumprimento do papel contramajoritário pelo Tribunal, o qual invariavelmente exige posturas impopulares. Pessoas respondem a incentivos. Agentes públicos são pessoas e tendem a mover-se consoante o sinal dos incentivos produzidos por determinada estrutura institucional.

Por outro prisma, o argumento da representação política oferece o risco de uma artificial imputação do fundamento de algumas decisões do Tribunal à vontade popular. Nesses casos, a ausência de mandatos e de eleições periódicas para os cargos de juízes constitucionais impede qualquer tipo de responsabilização política na hipótese de insatisfação popular. Ao contrário do que ocorre nos postos eletivos, juízes não são removíveis de seus cargos pela vontade popular. Ao contrário do que ocorre com uma decisão legislativa equivocada, algumas decisões do Tribunal Constitucional —sobretudo aquelas que envolvem a aplicação de cláusulas pétreas— exibem o risco de se cristalizarem no tempo, tendo em vista a impossibilidade (ou a imensa dificuldade) de aprovação de providência legislativa superadora.

Por fim, no que se refere à função de vanguarda iluminista da Corte, vislumbro o risco de que tal argumento possa legitimar posturas solipsistas, elitistas ou paternalistas por parte de alguns juízes constitucionais. Ainda quando movido pelas melhores intenções, o Tribunal corre o risco de tornar-se uma instância de poder aristocrática e desvinculada dos fundamentos jurídicos que conferem legitimidade técnica a suas decisões. Ainda, arrogar-se a condição de agente propulsor do processo histórico é tarefa que pressupõe um sentido de progresso social historicista, potencialmente incompatível com a ideia de autogoverno democrático.

O velho Francisco Campos dizia, numa de suas tiradas cortantes, que o STF, sendo o juiz último da autoridade dos demais poderes, acabava por se tornar o juiz único de sua própria autoridade. A tentação de juízes constitucionais por emplacar suas visões de mundo, de processo civilizatório ou da própria história em decisões criativas é enorme. A tal tentação, no entanto, deve-se procurar resistir, em nome tanto do ideal liberal de autodeterminação individual, como do ideal democrático de autodeterminação coletiva. Mas esse amadurecimento institucional depende da consciência dos magistrados sobre os limites de seu próprio poder, do trabalho arguto e esclarecedor da Academia, da maior representatividade social dos poderes eleitos e de uma cidadania mais participativa.

Autores

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    é professor titular da Faculdade de Direito da Uerj, doutor e mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Master of Laws por Yale (EUA).

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