Opinião

Paradoxo brasileiro: intervenção federal no sistema penitenciário do Pará

Autor

  • Filipe Coutinho da Silveira

    é advogado criminalista e sócio fundador do escritório FS Advocacia especialista em Direito Penal & Criminologia pela PUC-RS em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal) em Ciências Criminais pela UFPA em Direito Penal Tributário pelo Ibet/IBDT e vice-presidente da Abracrim-PA.

23 de setembro de 2019, 6h18

Desde 30 de julho de 2019 o Ministério da Justiça, atendendo a pedido do Governo do Estado do Pará, autorizou o emprego da Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária – FTIP, em caráter episódico e planejado, pelo período de 30 (trinta) dias, a contar de 30 de julho de 2019, para exercer a coordenação das ações das atividades dos serviços de guarda, de vigilância e de custódia de presos e demais atividades correlatadas, por meio da Portaria 676 de 30/07/2019, prorrogada por mais 30 dias pela Portaria 712/2019 de 27/08/2019.

A razão de ser da presença da FTIP no Estado do Pará está intimamente ligada à tragédia ocorrida em um presídio localizado no município de Altamira/PA, onde 57 (cinquenta e sete) detentos foram assassinados, em decorrência da disputa de poder entre facções criminosas. Em outras palavras, a presença da FTIP no Estado do Pará significa o reconhecimento da falência e ineficiência estatal em cumprir com os objetivos e finalidades de retribuição e prevenção da pena criminal, por não conseguir controlar seus próprios presídios, e nem garantir os direitos e deveres básicos que decorrem da Lei de Execução Penal.

Convém relembrar que o trágico diagnostico das condições do sistema carcerário paraense não são, necessariamente, um privilégio do Estado do Pará. Recentemente, os Estados do Amazonas, Roraima e Ceará também necessitaram da intervenção federal, por motivos bastante semelhantes.

Neste cenário, a principal missão da FTIP é restabelecer, em apertada síntese, a lei e ordem. Com isso, se objetiva restaurar condições de possibilidade para humanização da pena, corrigir anomalias que resultam em violações à dignidade da pessoa humana, à quebra da isonomia entre os detentos, bem assim restaurar a disciplina e a regular rotina das cadeias públicas.

Em que pese o principal objetivo da intervenção federal seja restaurar a legalidade, parece paradoxal que tal desiderato seja alcançado ou perseguido por meio de atos manifestamente contrários à Constituição Federal[1], às Convenções e Tratados Internacionais[2] aderidos pelo Estado Brasileiro e à Lei Federal[3].

Para tanto, basta observar as Portarias n. 882 e 889/2019 expedidas pela SUSIPE/PA – Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará, as quais, com a finalidade de prestar apoio logístico às atividades desenvolvidas pela FTIP, restringiram o direito dos advogados de adentrar livremente no Complexo Penitenciário de Santa Izabel, passando a exigir prévia autorização do Secretário Extraordinário de Estado para Assuntos Penitenciários ou a quem couber, por delegação[4].

A violação ao Ordenamento Jurídico é clara e evidente. A Constituição Federal do Brasil estabeleceu como Direito Fundamental de qualquer pessoa presa a garantia de ser devidamente assistida por advogado (CF/88, art. 5º, LXIII), considerando, ademais, o advogado como indispensável à administração da justiça (CF, art. 133).

Na esteira dos mandamentos constitucionais, a Lei 8.906/1994 instituiu o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, prescrevendo no art. 7º os direitos dos advogados. Assim, por ser indispensável à administração da justiça, configura-se como direito do advogado comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, mesmo sem procuração, quando estes se acharem presos, detidos ou recolhidos em estabelecimentos civis ou militares, ainda que considerados incomunicáveis (EAOAB, art. 7º, III), bem como ingressar livremente nas salas e dependências de audiências, secretarias, cartórios, ofícios de justiça, serviços notariais e de registro, e, no caso de delegacias e prisões, mesmo fora da hora de expediente e independentemente da presença de seus titulares e em qualquer edifício ou recinto em que funcione repartição judicial ou outro serviço público onde o advogado deva praticar ato ou colher prova ou informação útil ao exercício da atividade profissional, dentro do expediente ou fora dele, e ser atendido, desde que se ache presente qualquer servidor ou empregado (EAOAB, art. 7º, VI, b, c).

Aliás, não se pode perder de vista que a comunicação entre advogado e cliente, mesmo quando interno em qualquer casa penal, não pode ser objeto de vedação mesmo na vigência de estado de defesa, o qual significa a possibilidade do Presidente da República em tomar medidas, suspendendo direitos, em locais restritos e determinados, para restabelecer a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza, conforme a prescrição do art. 136, §3º, IV da Constituição Federal[5]. Assim, mesmo eventual situação extraordinária que necessite reforçar a ordem e a disciplina nos Sistemas Prisionais, não pode ser concebida como válvulas de escape, apta a legitimar ou a promover a interpretação restritiva de direitos e garantias fundamentais.

Justamente nesse ponto é que reside a violação à Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada em São José na Costa Rica, e internalizada pelo Estado Brasileiro, por meio do Decreto 678 de 06/11/1992, exigindo-se, portanto, que o direito interno também seja submetido ao Controle de Convencionalidade, conforme precedentes constituídos pelo Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário 466.343/SP) e pelo Superior Tribunal de Justiça (Recurso Especial 914.253/SP, Recurso Especial 1.640.084/SP).

Sabe-se que os tratados de direitos humanos têm significado ímpar, extraindo da Constituição Federal a sua condição de validade. Sobre a incorporação dos tratados ao direito interno, após a entrada em vigor da Emenda Constitucional 45/2004, possibilitou-se elevar aqueles relativos a direitos humanos ao patamar das emendas constitucionais (art. 5º, § 3º, da Constituição). Para tanto, devem esses tratados ser aprovados pelo Poder Legislativo (posteriormente, ratificados pelo Executivo) por três quintos dos votos de cada uma das suas Casas, em dois turnos de votação.

Registre-se que anteriormente à mencionada EC, a partir de decisões do STF, elevou-se o status dos tratados de direitos humanos a patamar superior ao das leis ordinárias, evoluindo relativamente às decisões anteriores (desde a década de 70, no RE 80.004/SE) que equiparavam os tratados internacionais (quaisquer que fossem, de direitos humanos ou não) ao nível da legislação ordinária.

Assim, se os tratados de direitos humanos podem ser (i) equivalentes às emendas constitucionais (nos termos do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal), se aprovados pelo Legislativo após a EC 45/2004, ou ainda (ii) supralegais (segundo o entendimento atual do STF RE 349.703/RS), se aprovados antes da referida Emenda, o certo é que, estando acima das normas infraconstitucionais, hão de ser também paradigma de controle da produção normativa doméstica.

Significa dizer que, para além do controle de constitucionalidade, o modelo brasileiro atual comporta, também, um controle de convencionalidade das normas domésticas, não apenas legislativas, mas também das normas oriundas do Poder Executivo.

Diante disso, a CADH prescreve, no art. 29 que nenhuma disposição da Convenção pode ser interpretada no sentido de: (a) permitir a qualquer dos Estados-Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los em maior medida do que a nela prevista; (b) limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de acordo com as leis de qualquer dos Estados-Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados e (c) excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo.

De se observar, ademais, que o art. 8º, d da CADH prescreve claramente ser “direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor;”.

Assim, conjugando os dispositivos Constitucionais, os dispositivos do Estatuto da Advocacia e da OAB, e as disposições existentes na Convenção Americana de Direitos Humanos, resta evidente que determinações como aquelas decorrentes das Portarias 882 e 889/2019, oriundas da SUSIPE/PA, ao limitar o ingresso do advogado as Casas Penais à previa autorização do Secretário Extraordinário de Estado para Assuntos Penitenciários ou a quem couber, por delegação, acabar por criar restrição indevida, contrária ao espirito constitucional, e as normas expressas do Ordenamento Jurídico Brasileiro, tanto de ordem legal, quanto supralegal, conforme acima já demonstrado.

A ilegalidade na atuação do Estado resta ainda mais evidente se considerarmos que o Superior Tribunal de Justiça já constituiu precedentes que reconheceram ser ilegal qualquer limitação ao direito do advogado entrevistar-se com seu cliente/detento, mesmo nos casos em que o custodiado estiver submetido ao Regime Disciplinar Diferenciado (REsp 1028847/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/05/2009, DJe 21/08/2009; REsp 673.851/MT, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/11/2005, DJ 21/11/2005, p. 187).

Vivencia-se, portanto, um curioso paradoxo na atuação do Estado Brasileiro, isto é, no afã de corrigir ilegalidades, emprega-se medidas ilegais, as quais, por certo, não se restringem à intervenção federal no sistema penitenciário do Estado do Pará, mas, em verdade, estão espalhadas em grande parte do dia-dia forense criminal, que tem admitido um verdadeiros vale-tudo sob o símbolo de “combate” à criminalidade.

Já era tempo de se perceber que fins não justificam meios; que existem limites semânticos para interpretação da lei[6]; que prisão é exceção e não a regra[7]; que a política criminal autuarial resulta em significativo aumento de encarceramento[8] e que a criminalidade se combate respeitando a lei e não contrariando-a, sob pena de o Estado Brasileiro se transformar exatamente naquilo que pretende combater.

Afinal, como diria Agostinho Ramalho Marques Neto: “quem nos protege da bondade dos bons?[9]


[1] CF/88, art. 5º, LXIII, art. 136, §3º, IV, art. 133.

[2] Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 8º, d, bem como art. 29, a, b, c, d.

[3] Lei 8.906/1994, art. 7º, III, VI, b, c; c.c. Lei n. 7210/1984 (Lei de Execuções Penais) art. 41, IX.

[4] A portaria 889/2019 substituiu a expressão “prévia autorização” para “agendamento”, mantendo-se, assim, a violação às prerrogativas dos advogados.

[5] CF, art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

§3º Na vigência do estado de defesa:

IV – é vedada a incomunicabilidade do preso

[6] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.

[7] LOPES JR, Aury. Direito processual penal. Saraiva, 2019

[8] DIETER, Maurício Stegemann. . Política Criminal Atuarial: a Criminologia do fim da história. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

[9] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade Democrática: O Juiz Cidadão. In: Revista ANAMATRA. São Paulo, n. 21, p. 30-50, 1994

Autores

  • Brave

    é sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff; especialista em Ciências Criminais pela UFPA; pós-Graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, Portugal; e vice-Presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas no Estado do Pará – ABRACRIM/PA.

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