Opinião

Breves considerações sobre o direito de obter uma certidão fiscal

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21 de setembro de 2019, 6h54

Recentemente a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça alterou o paradigma utilizado para resolver conflitos relacionados a emissão de certidões tributárias. Há pelo menos dez anos, as turmas do STJ vinham reconhecendo o direito de a filial obter certidão de regularidade fiscal quando o fato impeditivo fosse apenas as dívidas do estabelecimento matriz ou vice-versa. Essas decisões fundamentavam-se no artigo 127, do CTN, o qual determina que, relativamente aos fatos que dão origem a obrigação tributária, o domicilio fiscal da pessoa jurídica é o de cada estabelecimento.

Ao interpretar esse artigo o Tribunal reconhecia, implícito, o princípio da autonomia tributária dos estabelecimentos. Rompendo com esse paradigma, em 27/08/2019, ao julgar o AREsp nº 1286122, a 1ª Turma decidiu que a filial não tem direito a certidão positiva com efeitos de negativa, quando a matriz possui débitos. A decisão adotou como ratio decidendi o argumento de que “matriz e filial fazem parte do acervo patrimonial de uma única pessoa jurídica”, argumento esse, veiculado no Recurso Especial nº 1.355.812, julgado pela 1ª Seção, em 22/05/2013.

Este breve artigo examinará os fundamentos utilizados em ambas as decisões para demonstrar que nenhum deles é suficientemente adequado para a resolução dos conflitos relacionados à emissão de certidões pelo Fisco. O texto está estruturado em duas partes. A primeira aborda o conceito, a natureza e eficácia da certidão no âmbito das relações jurídicas constituídas em seu trânsito. A segunda parte trata dos princípios da autonomia do estabelecimento e da unidade patrimonial da pessoa jurídica demonstrando as incoerências em sua aplicação. Ambas as partes conterão proposições com o intuito de contribuir para a construção de uma ratio juris mais adequada à solução dos litígios dessa natureza que serão sintetizadas na conclusão.

Certidão Fiscal: Conceito, natureza e eficácia
A obrigatoriedade de apresentar certidões fiscais decorre de lei. Os entes federativos estão autorizados a fazê-lo por força do caput, do artigo 205, do CTN que tem status de lei complementar. A primeira parte do dispositivo está assim redigida: “A lei poderá exigir que a prova da quitação de determinado tributo, quando exigível, seja feita por certidão (…).”

Quando um contribuinte deseja contratar uma operação financeira, alienar imóveis, participar de uma licitação, etc., ele deverá demonstrar que está em dia com o fisco. Isso é feito através de uma certidão emitida pela fazenda pública. A certidão é um ato administrativo, unilateral pelo qual se fornece ao interessado documento, que merece fé, no qual se afirma a existência de fato e sua modalidade[1].

No caso das certidões tributárias, trata-se de ato administrativo vinculado. Preenchidos os requisitos legais, o Fisco deve afirmar a existência do fato que é de seu conhecimento. Os requisitos exigidos estão nos artigos 205 e 206 do CTN. Para a certidão negativa de débitos (CND), a inexistência de débitos. Para a certidão positiva com efeitos de negativa (CPD-EN), a ocorrência de uma das hipóteses de suspensão previstas no artigo 151, do CTN. Cabe ainda uma observação adicional, dentre os requisitos não há a exigência de que a certidão verse sobre todos os tributos incidentes sobre o contribuinte, o artigo 205 se refere à prova de quitação de “determinado tributo”.

Por se tratar de ato administrativo, a certidão detém fé pública. Ela assegura a terceiros a veracidade do que está afirmado. Tendo isso em mente é fácil entender porque esse é um direito fundamental previsto no artigo 5º, XXXIV, alínea “b”, da CF/88. São a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal.

Quando o artigo 205, do CTN, menciona “a prova da quitação de determinado tributo”, ele não está se referindo à relação contribuinte–fisco. Perante o fisco o contribuinte prova o pagamento do tributo apresentando o comprovante de pagamento.

Além do mais, o CTN confere ao Fisco o poder de rever os atos praticados pelo contribuinte desde que não tenham sido atingidos pela decadência ou pela prescrição. Portanto, as certidões tributárias não fazem prova a favor do contribuinte frente ao fisco. Como dito anteriormente, a certidão é uma garantia em favor de terceiro.

Em sua dinâmica, a certidão fiscal integra três relações jurídicas: a primeira, entre fisco e contribuinte; a segunda, entre contribuinte e terceiro interessado; a última, entre o terceiro interessado e fisco. Como já vimos o conteúdo da certidão não faz prova em favor do contribuinte. Portanto, a relação jurídica existente entre contribuinte e fisco diz respeito, apenas, ao direito de expedição do ato administrativo. Essa relação é regulada pelo artigo 5º, inciso XXXIV, da CF/88.

O direito a certidão é um direito fundamental, assim somente a lei em sentido estrito é apta para limitar esse exercício. Em se tratando de certidão fiscal, os requisitos exigidos para a sua expedição estão nos artigos 205 e 206, do CTN. Por se tratar de ato administrativo vinculado, atendidos os requisitos o fato de conhecimento da administração deve ser certificado.

Logo, não é licito à Fazenda Pública limitar o direito a certidão por meio de regulamento, criando por exemplo modalidades especificas, como é o caso da certidão conjunta ou, como veremos adiante, de um único modelo abrangendo a totalidade da pessoa jurídica. Por razões de praticidade é de se admitir que o Fisco padronize os modelos para disponibilização na internet, mas isso não pode inviabilizar o direito do contribuinte de obter uma certidão de seu interesse.

Por sua vez, a relação jurídica entre contribuinte e terceiro é meramente formal, em cumprimento a legislação aplicável ao negócio pretendido pelas partes. O caput do artigo 205, do CTN, começa dizendo: “A lei poderá exigir que a prova de quitação de determinado tributo, quando exigível, seja feita por certidão”.

A lei mencionada não é, necessariamente, a lei tributária, e sim aquela que regula o ato jurídico. Assim, por exemplo, o artigo 29 da lei 8.666/83, exige que o interessado faça a prova de quitação dos tributos para se habilitar em licitação. O contribuinte se desincumbe do encargo apresentando a certidão determinada em lei. Apresentada a certidão correta, ao terceiro só resta aceitá-la. No entanto, o terceiro tem um interesse a mais: ele almeja segurança jurídica na relação negocial.

É essa segurança jurídica que reveste a relação entre terceiro e fisco ou outro órgão de controle, (como, por exemplo, os Tribunais de Contas). O conteúdo declarado na certidão faz prova perante o fisco, em favor do terceiro. Interessa a ele a conclusão do negócio sem o risco de, futuramente, ser responsabilizado por atos praticados pelo contribuinte. Nesse sentido, a lei que exige a prova de quitação – que pode ser de um único tributo – tem o objetivo de proteger o terceiro. Protegê-lo de forma razoável, sem a criação de obstáculos desnecessários. Por isso, ao terceiro cabe assegurar-se de que a modalidade de certidão apresentada corresponde àquela exigida pela lei regulamentadora, já que uma modalidade distinta não produzira os efeitos desejados para a garantia dos seus direitos.

Com isso penso ter demonstrado a premissa deste trabalho, qual seja: 1) A certidão fiscal, ato administrativo vinculado, é direito fundamental do contribuinte para esclarecer situação de seu interesse pessoal. 2) Quando fornecida em conformidade com a legislação, a certidão fiscal faz prova em favor de terceiro, perante o fisco ou outros órgãos de controle.

Unidade patrimonial da pessoa jurídica e autonomia dos estabelecimentos
Como mencionado na introdução, para a solução de conflitos relacionados às certidões fiscais, o STJ adotou como fundamento, o princípio da autonomia dos estabelecimentos. Mais recentemente, a 1ª Turma entendeu por superado esse princípio, passando a utilizar o argumento de que “matriz e filial fazem parte do acervo patrimonial de uma única pessoa jurídica”.

A inovação se procedeu no AREsp 1.286.122 em que se discutia se uma filial tinha o direito de obter uma certidão fiscal quando o fato impeditivo fosse apenas a existência de dívidas na matriz. Para o deslinde da questão, o paradigma utilizado foi o Recurso Especial nº 1.355.812, julgado em 2013. Mas, neste recurso o que estava em discussão era a satisfação do debito tributário, mais precisamente se os valores depositados em nome de uma filial poderiam ser objeto de penhora, via BACEM-JUD, em execução fiscal de dívidas tributárias da matriz. Satisfação forçada de débitos tributários. Foi esse o contexto que resultou na premissa de que matriz e filial fazem parte do acervo patrimonial de uma única pessoa jurídica[2].

De início cumpre registrar a inadequada transposição da ratio decidendi. Ela foi adequadamente empregada para solucionar o caso relacionado a satisfação de crédito tributário. Porém não se presta para solucionar casos envolvendo o direito fundamental do contribuinte de obter uma declaração com fé pública para apresentação perante terceiros. Aplicada a esses casos, a ratio decidendi produz incoerências quando confrontada com outras normas.

Para exemplificar, consideremos o artigo 133, do CTN, que limita a responsabilidade do adquirente de um estabelecimento aos débitos existentes até a data da sua aquisição. Imagine que o estabelecimento que será adquirido é uma de várias filias pertencentes a pessoa jurídica alienante, sendo que algumas dessas filiais possuem débitos tributários. Em tal situação o interesse pessoal do alienante é a prova de quitação dos débitos tributários do estabelecimento ofertado. E, para os fins determinados pelo artigo 133, a prova de regularidade fiscal do estabelecimento adquirido é a única suficiente para eximir o adquirente de responder por outros débitos de responsabilidade da pessoa jurídica alienante. Em tais situações o princípio da unidade da pessoa jurídica não contribui para o exercício do direito fundamental à emissão de uma certidão.

No Recurso Especial nº 1.355.812, considerou-se que o conceito de estabelecimento é irrelevante. Em matéria de direito empresarial, é certo que matriz e filial integram o acervo patrimonial de uma única pessoa jurídica. O estabelecimento empresarial não pode ser confundido com a sociedade empresaria[3]. Apesar disso, o direito tributário atribui enorme importância ao conceito de estabelecimento. No âmbito internacional, a caracterização de um estabelecimento permanente é condição para que o Estado de sua localização o submeta as suas normas tributárias. No âmbito interno, a legislação confere características próprias ao conceito de estabelecimento em conformidade com as peculiaridades de cada tributo.

Quando se trata, por exemplo do IPI, do ICMS e do ISS, os fatos configuradores da obrigação tributária transpassam pelo estabelecimento. Por isso é que existe a obrigação de que cada estabelecimento se inscreva com número próprio no CNPJ tem especial relevância para a atividade fiscalizatória da administração tributária. Para tais situações o conceito de estabelecimento adquire grande importância na solução dos litígios sobre o direito a emissão de uma certidão.

Neste contexto, o princípio da autonomia dos estabelecimentos melhor satisfaz o exercício ao direito fundamental do contribuinte a emissão de uma certidão. Porém, quando se tratar de tributo cujos fatos configuradores da obrigação extravasam os limites do estabelecimento, como é o caso do IRPJ, a sua aplicação isolada não oferece a adequada segurança jurídica ao terceiro. Mas, em tais situações, tão pouco o princípio da unidade patrimonial da empresa funciona adequadamente para solução do litigio.

Conclusão
De todo o exposto conclui-se que a emissão de certidão tributária é um direito do contribuinte. Para exerce-lo é suficiente a satisfação dos requisitos contidos nos artigos 205 e 206, do CTN. O fisco não tem competência para, mediante ato administrativo, limitar a expedição de certidões determinando que elas somente serão expedidas em nome da pessoa jurídica como um todo. Somente a lei é competente para determinar o tipo de certidão fiscal que deve ser exigido em cada negócio jurídico para a proteção de terceiros. Para a solução de conflitos relacionados a emissão, a ratio decidendi mais adequada deve combinar o direito fundamental à obtenção de certidão com as características de cada tributo.


[1] BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios do Direito Administrativo. 3º ed., vol. I. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 589.

[2] Até a conclusão desse artigo, o voto do Ministro-relator para o acordão não havia sido publicado. Essa informação foi obtida junto a imprensa: https://www.valor.com.br/legislacao/6409665/stj-muda-entendimento-sobre-emissao-de-certidao-fiscal-negativa.

[3] COELHO, Fabio Ulhôa. Curso de Direito Comercial. 16ª ed., vol. I. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 160

BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios do Direito Administrativo. 3º ed., vol. I. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 589.

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