Interesse público

O novo (futuro) marco legal das parcerias público-privadas

Autor

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

19 de setembro de 2019, 9h52

Spacca
Estão em discussão no Congresso Nacional propostas de mudanças relativas às Parcerias Público Privadas. A comissão especial responsável por propor um novo marco regulatório das PPPs[1] está a recolher sugestões que possam contribuir para o aprimoramento da legislação, em especial da Lei 11.079/04. Poder Público, operadores econômicos, estudiosos do tema são convidados a refletir sobre o que se aprendeu ao longo dos 15 anos de vivência, visando inserir mudanças que possam facilitar e encorajar o uso responsável das PPPs .

O momento ao mesmo tempo em que é auspicioso, porque um avanço é possível, recomenda cautela diante das novidades que podem descaracterizar o uso das PPPs.

Disciplinadas na Lei 11.079/04, que contém suas normas gerais, as PPPs representam forma alternativa de contratação pública, diante da compreensão de insuficiência/inadequação dos modelos contratuais de que cuidam as Leis 8.666/93 e 8.987/95

A Lei 8.666/1993, cujos dias estão contados, nasce ocupada com a tutela do interesse público pelo controle dos passos adotados pelos agentes públicos. A disparidade de forças entre as partes é evidente, conferindo lugar de destaque para a Administração Pública (como tutora do interesse público), sobretudo em face das cláusulas exorbitantes e da previsão de garantias em mão única, a favorecê-la diante do contratado. Lado outro, como forma de “compensar” a existência de prerrogativas públicas, compreendeu-se (e ainda assim se compreende) que a garantia de manutenção da proposta, acolhida no art. 37, XXI, da CF, e alguns dispositivos da Lei 8.666/1993 (destaca a combinação entre os arts. 78, XVII e 79, I), fazem do cenário da Lei de Licitações, em tese, zona de maior conforto ao contratado, quando se compara a menor “proteção” que ele teria diante de relações privadas que viesse a estabelecer. Claro que essa maior proteção na prática é relativa diante de diversos riscos como o de atraso ou não pagamento por parte da Administração Pública, que ainda se vale do disposto no art. 78. XV[2] como se se cuidasse de regra a autorizar o não planejamento e a pressão psicológica sobre o privado.

A Lei de Concessões de Serviços Públicos, Lei 8.987/1995, volta-se a um objetivo mais pontual. Está em questão a prestação de serviços públicos precedidos ou não de obras. Seus focos principais são o investimento e gerenciamento pelo particular de determinados serviços públicos. As concessões de serviço público, projetadas pela lei, são contratos dotados de autossustentabilidade, visto que a remuneração do particular se asseguraria por meio de tarifas pagas pelo usuário acrescidas de outras possíveis fontes alternativas.[3]

Os contornos da citada lei impedem que a concessão seja empregada para além de serviços definidos como públicos. Além disso, a lógica das concessões tradicionais é inaplicável aos serviços públicos em que a cobrança de tarifa não se faz possível.

Soma-se a isso, como pano de fundo para o surgimento da Lei 11.079/04, a necessidade de atrair a participação do particular, sobre quem recairia o encargo de suportar os investimentos em um primeiro momento, postergando-se o pagamento pelo Poder Público. Efeito óbvio, como forma de exercer tal atração, estava e está na imperiosidade de fixar-se ambiente de confiança e estabilidade.

Todos estes aspectos são importantes para a compreensão dos passos que levaram à Lei 11.079/2004.

Os anos se passaram mas o reconhecimento de que a presença privada pode ser importante, sobretudo no setor de infraestrutura pública, permanece intacta. A comprovação disso é o movimento, que em verdade remonta ao governo passado, quando já se entabulavam discussões sobre a nova disciplina das PPPs. Remoção de obstáculos para a contratação e preocupações com a obtenção e preservação de garantias públicas foram, e continuam sendo, alguns dos assuntos discutidos. [4] A redução do piso de valores para a contratação de PPPs, produzida pela Lei 13.529/17, reflete alteração significativa para pavimentar o uso desses contratos por Municípios menores e sinaliza movimento favorável à modelagem, mas insuficiente, por si só, para transformar a realidade ainda desafiadora.

A questão das garantias públicas ainda é o maior óbice às PPPs. E a solução não está na remoção de tal obrigação. E a razão é bem simples: todo o cenário que patrocinou o uso das PPPs não foi alterado. O Poder Público continua reconhecendo como bem vinda a colaboração privada que, por sua vez, enxerga nas PPPs um espaço a ser explorado.

Mas são evidentes os riscos políticos e econômicos, entre outros, que contratações públicas envolvem, reforçados quando se cuidam de pactos mais extensos, que alcançam atividades diversas, e que demandam para que receba o “primeiro pagamento público”, aqui usado de forma mais alargada para abarcar aporte e contraprestação, a entrega de unidades/começo da prestação do serviço.

Logo, remover o dever de garantias públicas é tudo menos prestigiar e incentivar a presença privada. A solução, que não é simples, passa pela busca de fontes para as garantias e pela inclusão expressa na lei dessas possibilidades, com vistas a evitar questionamentos posteriores. Quer-se com isso dizer que, ainda que a Lei 11.079/04 hoje já contemple cláusula genérica, permitindo outras garantias para além das arroladas nos incisos do art. 8º, divergências podem dificultar o seu uso.[5] Garantias via FPM ou parcela de ICMS já foram objeto de calorosas discussões em Belo Horizonte.[6]

Outro aspecto a ser considerado está no estímulo ao consorciamento dos Municípios, sobretudo os menores, nos moldes da Lei 11.107/05. Para algumas situações em que a reunião de esforços se faz mais vital, dada a natureza da atividade, o consórcio pode ser útil para, por seu intermédio, serem celebrados contratos de PPP.

Ocorre que o consorciamento potencializa o risco político, diante da reunião de entes federados, razão pela qual é preciso pensar em como contorná-los, tanto quanto possível, e como criar mecanismo de “compensação” que justifique o desejo de congregação.

Além de se cogitar de condições mais rigorosas para a retirada do ente do consórcio, antes de findo o prazo do contrato de PPPs, para além do que a Lei 11.107/05 prevê em seu art. 11, deve se resolver legalmente qual Tribunal de Contas haverá de fiscalizar os atos do consórcio, ao longo de todo o processo de contratação, uma vez que inadequada, para contratos de longo prazo, a resposta dada pelo parágrafo único do art. 9º da Lei 11.107/05. A alternância de “Tribunais de Contas” ao longo do contrato, a ocorrer, por exemplo, quando Municípios pertencentes a Estados diversos são genitores do consórcio, e assumirão, cada um a seu tempo, a condição de representantes legais da entidade criada, gera turbulência que em nada contribui . Definir o Tribunal de Contas que do inicio ao fim será o responsável pelo controle soa oportuno.

Além do olhar voltado a minimizar os riscos, parece conveniente “premiar” o surgimento dos consórcios. O aumento do limite de que trata o art. 28 da Lei 11.079/04, para os entes reunidos no consórcio, pode ser uma ferramenta, mas não a única. Um olhar diferenciado por parte do governo federal, que venha a impulsionar a criação de consórcios, seria decisivo para empurrar os entes à formação do elo.

Para além de mudar aqui ou acolá também a Lei de Consórcios, e ainda que se cogite de PPPs celebradas de maneira monogâmica, percebe-se (ou se deveria perceber) que o estímulo às PPPs passa necessariamente pela melhoria da segurança jurídica e do ambiente de parceria entre as partes, ligadas que estão a um casamento pensado para ser duradouro e profícuo.

Os contratos de PPP alongam-se no tempo; são alcançados por inovações tecnológicas, afetados por mudanças conceituais sobre a melhor forma de atuar. Portanto, a atenção de quem os fiscaliza, e isso se aplica não apenas aos órgãos de controle, mas ao próprio parceiro público, deveria centrar no alcance das metas, desatrelado da visão limitada que prestigia o ponto e desconhece o todo.

Preocupa, ainda, perceber que, por vezes, o poder concedente realiza análise dos contratos de PPP com vistas a identificar possíveis “desacertos”, com o camuflado interesse de reduzir o valor da contraprestação. Não se trata de fiscalizar o contrato para verificar se o intuito que conduziu à sua celebração está atendido, mas de encontrar uma forma de reduzir o valor, sem falar do intuito “arrecadatório” por trás das penalidades financeiras.

O interesse de poupar recursos em si não deve ser criticado, mas merece repúdio quando o olhar do poder concedente é propositalmente voltado a isso, rompendo a lógica da harmonia e parceria que deve enlaçar as partes. A possível “falha”, assim considerado o afastamento do contratado do detalhe, não poderia justificar a penalização, se os objetivos e resultados foram perfeitamente atendidos.

A situação se agrava quando se identifica que ainda se analisam os contratos de PPP como se sujeitos às regras de mutação que atingem os contratos regrados pela Lei 8.666/93, desconsiderando as relevantes diferenças quanto ao tempo de duração e outros aspectos como a complexidade (em geral) do objeto. Mutabilidade contratual deve ser encarada como forma de garantia da sobrevida útil do contrato. Não se defende, evidentemente, que se ignorem os objetivos da contratação, mas, ao contrário, que eles sejam prestigiados, permitindo que as partes possam, motivadamente, fazer ajustes considerados necessários ou convenientes.

Indicadores de desempenho, pensados na fase preparatória da licitação, não são imunes ao tempo e à experiência que só a vivência do contrato proporciona. E quanto mais inovador/original for o contrato de PPP, maior a possibilidade de que ele precise ser revisto, inclusive seus indicadores, sob pena de asfixiar o interesse público, ao invés de acautelá-lo.

Compreender o contrato de PPP com os mesmos olhos com que se examinam contratos regidos pela Lei 8.666/93 é um equivoco não apenas jurídico. Ignora-se o cenário que conduziu à criação das PPPs; ignora-se o corte normativo que se pretendia e se fez em relação à Lei 8.666/93; ignora-se que outras são as premissas para o surgimento. Não deveríamos ter que pensar em alterar a Lei 11.079/04 para dizer o que dela se pode inferir, porque inerente à ideia de contrato centrado em metas. Contudo, se os envolvidos ainda não se deram conta de que PPP não é contrato de obra ou de serviço, que as alterações legais afastem qualquer dúvida.


[1] As alterações não atingirão apenas a Lei 11.079/04. A Lei 8.987/95, que aborda as concessões tradicionais, também está na mira, sem embargo de outras Leis, como a Lei 11.107/05, responsável pelas normas relativas aos consórcios públicos.

[2] Art. 78, inciso XV – o atraso superior a 90 (noventa) dias dos pagamentos devidos pela Administração decorrentes de obras, serviços ou fornecimento, ou parcelas destes, já recebidos ou executados, salvo em caso de calamidade pública, grave perturbação da ordem interna ou guerra, assegurado ao contratado o direito de optar pela suspensão do cumprimento de suas obrigações até que seja normalizada a situação;

[3]Ressalta-se que o fato da concessionária ser remunerada por meio de tarifas não impede que a contraprestação se realize de outro modo. A lei, ao possibilitar o uso de receita alternativa como mecanismo de remuneração pelos serviços prestados pela concessionária, rompeu o dogma doutrinário de que a única maneira de remunerar a empresa seria com tarifas, e abriu a oportunidade para que o Poder Público complementasse ou até substituísse a tarifa por outro meio de remuneração.

[4] Participei de reuniões ainda no Governo Temer e no Governo atual em que apresentei sugestões de aprimoramento da Lei de PPPs, concessões e consórcios públicos. Algumas delas estão aqui referidas.

[5] Art. 8, inciso VI.

[6] Acompanhei boa parte da gestação das PPPs de Belo Horizonte, especialmente na condição de Procuradora Geral Adjunta e Controladora Geral.

Autores

  • é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Visiting scholar na George Washington University e professora visitante na Universidade de Pisa.

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