Segunda Leitura

Medo das consequências é fator de equilíbrio nas relações jurídicas

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

15 de setembro de 2019, 10h02

Spacca
O medo está sempre presente em nossas vidas, do nascimento à morte. Ele pode ser definido como “um estado emocional que surge em resposta a consciência perante uma situação de eventual perigo”. [i] O medo pode ser visto sob diversas formas (por exemplo, fobia) e múltiplos aspectos (por exemplo, psicológico).

Mas um aspecto pouco analisado é o da influência do medo nas relações jurídicas. Como ele é tratado pela legislação e como é interpretado. Na maioria das vezes a palavra medo não consta do texto. Mas é ela que dá origem à norma ou à sua efetividade. Vejamos.

O artigo 1.641 do Código Civil, ao determinar que seja obrigatório o regime de separação de bens no casamento de maiores de 70 anos, está simplesmente revelando o medo de que em tais uniões o que esteja presente não seja o amor, mas sim a vontade de alguém abocanhar o patrimônio do idoso.

O Código Penal, no artigo 25, admite estar em legítima defesa quem “usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente”. O que se quer dizer, de forma singela, é que não há crime quando a pessoa, dominada pelo medo, reage antes de ser atacada.

No mundo ideal, a melhor opção é a de que as relações humanas se desenvolvam em harmonia e que não seja necessário intimidar ninguém para que as obrigações sejam cumpridas. Assim, um Estado que consiga manter maior equilíbrio sócio econômico, emprego, saúde e educação, terá pessoas mais conscientes e cumpridoras de seus deveres. É conhecido o exemplo do Japão, onde as pessoas têm vergonha de procurar um tribunal.

Mas então, é bom que as pessoas tenham medo para que cumpram as suas obrigações? Ou será preferível utilizar, como fator inibitório de práticas ilegais, a educação, ainda que de efeitos distantes e nem sempre claros?

Estas dúvidas não são acacianas, mas sim realidade pura. Da tomada de posição é que se tomará a decisão. Isto pode ocorrer na elaboração de uma lei, na análise dos fatos diante de uma consulta ou no ato de julgar. A resposta perpassa por uma opção entre a imposição da norma e o consequente medo de infringi-la ou a cultura de uma ampla liberdade aos indivíduos. Isto depende muito do regime político adotado.

Fugindo do clássico exemplo do nazismo, imaginemos a extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, sob o comando de Stalin. Evidentemente, nela preponderava o medo, face às inúmeras sanções que poderia sofrer quem se desviasse do modelo idealizado.

Nas democracias liberais do ocidente vigora, atualmente, uma mescla de liberdade e controle estatal. Nos Estados Unidos a democracia convive com regras rígidas, persistindo a pena de morte em vários estados e não sendo raro, por exemplo, que se mantenham presas pessoas com idade avançada (por exemplo, o brasileiro José Maria Marin, hoje com 86 anos). [ii]

E no Brasil, como nos colocamos diante das duas opções existentes?

Desde logo é possível concluir que somos um povo com características próprias, muitas vezes diferentes até dos nossos ”hermanos” sul-americanos. Somos acolhedores com os estrangeiros, apiedamo-nos dos que sofrem, optamos sempre pela paz.

Estas características, boas na essência, nem sempre geram bons resultados. A uma porque, por vezes, elas são acompanhadas por uma fraternidade cuja conta será paga por outros. Assim, por exemplo, responsabiliza-se atualmente o Estado por tudo que possa fazer ou deixar de fazer, sendo a conta rateada entre todos os que pagam tributos.

Partindo, então, de nossa tendência a perdoar, acolher, de nos sensibilizar, podemos concluir que nas últimas décadas, quiçá porque saímos de um regime militar de postura rigorosa, produzimos leis benevolentes e julgamos mais com o coração do que com a razão.

Vejamos um exemplo disto. A Lei 13.445, de 2017, que trata da imigração, permite a expulsão de quem praticar crime de genocídio (artigo 54, inciso I). Isto significa o extermínio de todos ou vários indivíduos de um mesmo grupo, que pode ser, entre outros, racial ou étnico. Mas, no artigo 55, inciso II, “a”, proíbe a expulsão se o autor “tiver filho brasileiro que esteja sob sua guarda ou dependência econômica ou socioafetiva ou tiver pessoa brasileira sob sua tutela”.[iii]

Se assim é, considerando que ter um filho não exige mais do que seguir o instinto, não sendo necessário nem mesmo conhecer nosso idioma português, fácil é ver que o genocida poderá continuar desfrutando de todas as regalias que nosso país oferece, inclusive reivindicar direito a moradia que a lei de imigração com benevolência lhe concede (artigo 3º, inciso XI).

Neste exemplo, a conclusão não desperta qualquer dificuldade: a lei perseguiu um ideal baseado em uma fraternidade que não pensa nos efeitos paralelos. Tem medo de enfrentá-los. E não tendo os imigrantes o menor medo de nosso sistema de justiça, são estimulados a escolher o Brasil ao invés de nossos vizinhos, como bem esclareceram recentemente assaltantes chilenos presos no Rio de Janeiro.

No Código de Processo Civil temos exemplo muito diferente, mas que reflete a opção pela suposta “bondade” e evita decidir sobre o mais complexo

O artigo 891 da lei processual afirma que não será aceito lance mínimo no leilão de imóvel. Caberá ao juiz fixar o que é preço vil e, não o fazendo, ele será de 50% do valor da avaliação. Como rarissimamente o juiz estabelecerá o mínimo, a regra é que o lance deva ser de 50% da avaliação. Só que, em tempos de crise econômica, o valor de mercado é um e o valor real é outro, sempre menor. Disto se segue que o mínimo muitas vezes não é atingido e o leilão é adiado por vezes. Isto é comum em condomínios, que acabam tendo moradores que não pagam por anos.

Neste exemplo, a opção fica entre dar o Estado Judiciário resposta ao credor ou prestigiar o inadimplente que habita a propriedade compartilhada, usufrui de todas as suas benesses, porém nada paga a tal título. A escolha a favor do devedor, sob uma suposta “bondade”, estimula outros condôminos a não quitarem suas dívidas e impõe ao credor mais despesas (por exemplo, nova avaliação do bem).

Fácil é concluir que o Brasil opta por uma postura de benevolência genérica. Mas isto tem um preço, regra geral pago por terceiros.

Em suma, nas relações jurídicas o medo é um componente necessário. Não o medo de reivindicar direitos, mas sim o receio de que o descumprimento da norma ou do contrato gere consequências através da ação eficiente do Estado.

Se alguém disto tem dúvidas, basta pensar no devedor de alimentos. Ele paga porque teve uma repentina conscientização ou porque tem medo de ser preso? E o denunciado criminalmente que acorda em prestar delação premiada? Ele o faz com medo de ser preso ou porque um sopro divino convenceu-o a ser um cidadão de bem?

Na ótica inversa, o poluidor ambiental receia a multa que lhe é imposta, mesmo sabendo que poderá discuti-la por três anos na esfera administrativa e mais uns 12 na área judicial? Aquele que faz um loteamento irregular e, através de compromissos privados, vende lotes e recebe de pessoas incautas, teme uma ação penal que, se acaso não prescrever, resultará no máximo em uma pena de prestação de serviços?

As quatro respostas, por óbvio, são iguais: não.

A educação é necessária, mas complexa e só gera efeitos muitos anos depois. Por isto deve acompanhada de leis e decisões judiciais mais preocupadas com resultados do que com sonhos de um mundo ideal.


i Disponível em: https://www.significados.com.br/medo/ .

ii Disponível em: https://globoesporte.globo.com/blogs/bastidores-fc/post/2018/10/24/condenado-marin-e-transferido-a-prisao-de-seguranca-minima-nos-eua.ghtml.

iii Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13445.htm.

Autores

  • Brave

    é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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