Rastro digital

"Se o tal direito ao esquecimento for levado ao extremo a história será apagada"

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15 de setembro de 2019, 9h00

A facilidade na comunicação proporcionada pela internet trouxe consigo a impossibilidade de apagar totalmente registros. O que acontece, de acordo com o advogado Marco Antonio Sabino, é que a informação fica tão desfragmentada, que torna inviável apagar uma informação virtualmente.

"Como a internet tem uma ubiquidade, quer dizer, eu posso   acessar de qualquer lugar e ao mesmo tempo todo mundo pode acessar tudo, o dado vai se replicando de maneira estratosférica", explica em entrevista à ConJur

No Brasil, o instituto é uma criação jurisprudencial, pois não consta de nenhuma lei. Ao mesmo tempo em que ganha força nos tribunais, também cristaliza opiniões antagônicas. Para Sabino, não existe direito ao esquecimento, mas sim a possibilidade de desindexar informações. 

Segundo o advogado, o direito ao esquecimento fere um direito mais fundamental ainda: o direito à informação. Ele defende que apagar informações pode deixar lacunas na história.

"Eu pergunto para as pessoas se elas não gostariam de saber se o motorista da van dos filhos tivesse sido um pedófilo condenado 20 anos antes. Eu tenho direito de saber se a pessoa foi condenada por pedofilia e a reabilitação criminal não tem nada a ver com isso", exemplifica. 

O advogado acaba de lançar livro para discutir o tema, inclusive na publicidade comercial. Intitulada Publicidade e Liberdade de Expressão – A Defesa do Direito de Anunciar, a obra aborda, dentre outros pontos, a influência das receitas publicitárias para a liberdade de imprensa. 

Sabino é sócio da área de Mídia e Internet do Mannrich e Vasconcelos Advogados. É doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra.

Leia a entrevista:

ConJur — O livro defende que publicidade é liberdade de expressão. A propaganda eleitoral também é?
Marco Sabino — Não tenha dúvida disso. Vale pontuar que propaganda eleitoral não é publicidade, porque ela funciona para restabelecer ideias de políticos ou de postulantes a cargos públicos. Para alguns dos mais restritivos, a propaganda política é ainda mais protegida pela liberdade de expressão do que a publicidade comercial. 

ConJur — Por quê?
Marco Sabino —
A propaganda política ainda tem um caráter ideológico e político, então ela contribui para o debate. Por exemplo, quando vemos o deputado Tiririca na televisão falando das ideias, por mais que não gostem delas, elas estão sendo travadas em uma arena pública. Não tem o intuito de vender, a não ser vender as ideias para que ele consiga se eleger. 

ConJur — A Organização dos Estados Americanos (OEA) já afirmou que a legislação eleitoral brasileira restringe a liberdade de expressão por adotar regras de controle de discurso. Como o senhor analisa isso?
Marco Sabino —
Controlar o discurso é sempre um problema. Isso significa que serão impostas restrições a expressão, ou seja, haverá censura. Tem que ter certo controle, mas deve ser posterior a fala, nunca antes do discurso ser feito. Deve ser analisado se o sujeito deve ou não pagar indenização por ter falado bobagem. 

A gente vive um momento muito peculiar da política no Brasil e no mundo. Aqui todo todo dia o presidente faz declarações muito complicadas. Nessa situação, o ânimo de controlar o discurso aumenta. Um mandatário da República precisa ter reservas, mas o fato é que é muito difícil dizer "você não pode falar isso ou aquilo".

ConJur — Configura censura a ordem do governador de São Paulo, João Doria, para recolher apostilas de escolas estaduais por ver “apologia à ideologia de gênero”?
Marco Sabino —
Essa determinação foi muito séria. Eles recolheram um material que já havia sido publicado e distribuído! Isso me cheira muito a censura. Também teve um episódio em que a revista Veja publicou uma notícia e fizeram um movimento para comprar todas as revistas das bancas para impedir a leitura. Essas são estratégias de censores para não deixar que o cidadão tenha acesso àquele conteúdo.

ConJur — O senhor foi à Universidade de Oxford estudar direito ao esquecimento. O instituto é bem aplicado no Brasil? 
Marco Sabino —
Tenho uma posição muito crítica com relação ao direito ao esquecimento, que, para mim, não existe. O que existe e sempre existiu é a possibilidade de desindexação dos resultados de informações que sejam muito prejudiciais a alguém. Não dá para forçar o esquecimento de ninguém e na internet o dado não se perde nunca. Dizer que vai apagar uma informação é virtualmente impossível, porque o dado se desfragmenta tanto que não dá para rastreá-lo. Como a internet tem uma ubiquidade, quer dizer, eu posso acessar de qualquer lugar e ao mesmo tempo todo mundo pode acessar tudo, o dado vai se replicando de maneira estratosférica.

ConJur — Muito se fala do direito ao esquecimento em paralelo com casos de reabilitação criminal… 
Marco Sabino —
Eu pergunto para as pessoas se elas não gostariam de saber se o motorista da van dos filhos tivesse sido um pedófilo condenado 20 anos antes. Eu tenho direito de saber se a pessoa foi condenada por pedofilia e a reabilitação criminal não tem nada a ver com isso. Para essas circunstâncias não tem nada a ver com um novo começo, mas sim com o direito de ser informado para tomar uma decisão consciente. Apagar essas informações pode deixar lacunas nas histórias.

Felizmente isso não está acontecendo agora. São tantas informações que, mesmo que apague boa parte delas, ainda vai ter história sendo contada. Se o tal do direito ao esquecimento for levado ao extremo a história é apagada e não estou tratando de uma informação mentirosa, mas de uma informação verdadeira que é apagada.

ConJur — O direito ao esquecimento então se aplica à imprensa?
Marco Sabino —
Existe um conflito entre liberdade de expressão e liberdade de informação. Há o direito da pessoa a ter sua intimidade, vida privada, imagem e honra preservados, mas não pode chamar isso de direito ao esquecimento. Muitas pessoas falam que se a informação não tem mais sentido de estar ali, deve ser apagada. Acredito que independentemente disso, se a informação é verdade, ela deve ser mantida. No caso clássico da Escola Base, uma informação prejudicou as pessoas pela apuração de fatos errados, então é possível desindexar algumas informações relacionadas ao caso para preservar as pessoas.

ConJur — Em seu livro, o senhor afirma que a ADPF 130, que derrubou a Lei de Imprensa, teve um viés instrumentalista e reputou a imprensa como “irmã siamesa” da democracia. Isso é um problema?
Marco Sabino —
A liberdade de expressão não é essencial para a democracia, mas sim para a vida das pessoas. Ela abarca muito mais, desde o que visto, os lugares que frequento, até as páginas que dou like nas redes sociais. Minha crítica à liberdade de expressão e de imprensa instrumental é que, na verdade, elas são fundamentais e independentes. A liberdade de expressão é um vetor para a democracia, é a peça-chave da democracia, mas vai existir independentemente dela. O ser humano precisa falar, tanto faz se é democracia ou não.

ConJur — Se a liberdade de expressão protege a publicidade, sua regulamentação é constitucional? Na ADPF 130 o Supremo entendeu que não pode haver regulamentação sobre liberdade de expressão. 
Marco Sabino —
A regulamentação da publicidade é constitucional.  A propaganda comercial está na Constituição e é de competência privativa da União. O artigo 220 da Constituição, que trata da comunicação social, define no parágrafo 4º que é possível  ter restrições à propaganda de medicamentos e terapias, agrotóxicos, bebidas alcoólicas e tabaco.

ConJur — O fato da publicidade ser protegida pela liberdade de expressão significa que qualquer um pode pagar para falar o que quiser?
Marco Sabino —
Não é bem assim. É preciso pagar para falar, mas sempre dentro da ética, da honestidade e da verdade. A questão é que a publicidade tem caráter persuasivo, mas o Código de Defesa do Consumidor já resolveu bem isso. Então, ela não pode enganar o destinatário da mensagem, nem pode abusar da tua confiança. Além disso, a publicidade deve deixar claro o que ela é. De resto, é possível pagar para falar do seu serviço. 

ConJur — O modelo de autorregulação como o do Conselho de Autorregulação da Propaganda (Conar) funcionaria para a imprensa, como queria o governo Lula?
Marco Sabino —
Funcionaria. A questão é que tem muitos temas relacionados à imprensa no Brasil. Durante o governo Lula muito se falava do controle social da mídia, o que é muito perigoso. Censura do Estado, da sociedade, das empresas… É o que falou a ex-presidente Dilma Rousseff, e eu concordo, o melhor controle da mídia é o controle remoto. Devia ter uma autorregulamentação por parte da Associação Nacional dos Jornais (ANJ), por exemplo, para incentivar melhores práticas da imprensa, muito embora os grande veículos tenham princípios editoriais, sigilo da fonte, checagem e apuração.

ConJur — Isso ajudaria a combater o fenômeno chamado de fake news?
Marco Sabino —
Entendo que sim. Vale pontuar, porém, que uma notícia mentirosa não é fake news. Suponha que o jornalista apurou uma notícia com todo o cuidado do mundo, mas a sua fonte falou uma mentira. Isso é fake news? Fake news não prescinde do elemento dolo e do elemento prejuízo, então é preciso não só da notícia falsa e mentirosa, mas também da intenção de alguém em prejudicar outrem.

Fake news é quando há estratégia ou intenção de prejudicar alguém mediante uma notícia falsa. E deve haver conscientização. A pessoa que está submetida a fake news precisa saber que ela não pode ficar repassando notícia só com o que está escrito na headline, ela tem que saber que precisa ler. Além disso, deve saber identificar defeitos na página e olhar a data da notícia também.

ConJur — Liberdade de expressão protege a mentira?
Marco Sabino —
Sim. A questão é muito filosófica e é lógico que ninguém gosta, mas a mentira tem uma função social. O debate faz muito sentido hoje, com as fake news, e nesses casos não deve haver proteção pela liberdade de expressão, porque existe um abuso da liberdade. Agora, quando alguém mente em função de um propósito que é necessário para ter um convívio social, está protegido sim. 

ConJur — A recente Medida Provisória do governo Bolsonaro, que desobriga publicação de licitação em jornais, foi vista como um ataque ao jornalismo. O senhor concorda?
Marco Sabino —
Essa discussão não é nova e as publicações deviam estar preparadas para essa mudança. O que me arrepia não é necessariamente o corte, mas sim o presidente falar que é uma vingança. Ele verbalizou que iria tirar a publicação porque os veículos estariam “pegando no pé" dele. A gente vive um momento bastante complicado em termos de liberdades no Brasil, e essa questão dessa medida provisória mostrou bem o perigo que a gente corre.

ConJur — O senhor também aponta no livro que as receitas publicitárias são importantes para a manutenção da imprensa. Em que sentido isso influencia a liberdade de imprensa? 
Marco Sabino —
As receitas publicitárias permitem que os veículos tenham imparcialidade e independência necessárias para divulgar versão dos fatos paralela à oficial. Cada vez que se restringe publicidade há queda de receita para os veículos, que implica diretamente na queda de produção.

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