Opinião

Diferenças tributárias entre receita e reembolso no exercício da advocacia

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14 de setembro de 2019, 6h57

A Comissão de Direito Tributário da OAB/SC, em comemoração ao mês do advogado, organizou uma mesa de debates sobre tributação dos reembolsos de despesas e tratamento tributário da distribuição desproporcional de lucros de escritórios de advocacia, temas polêmicos que há tempos despertam intensas discussões no âmbito administrativo e judicial.

Na ocasião a mesa debatedora foi composta por representantes da Advocacia, da Procuradoria da Fazenda Nacional, bem como da Receita Federal do Brasil, os quais trataram a respeito dos pontos nevrálgicos que circundam as temáticas objeto do debate. Dentre os principais aspectos discutidos no âmbito do evento, o que mais chamou a atenção destes autores e motivou a formulação deste artigo, foi a abrangência dada pela interpretação fazendária a respeito dos critérios aptos a caracterizar os reembolsos de despesas adiantadas pelos escritórios de advocacia por conta e ordem de terceiros, seus clientes, como receita da pessoa jurídica sujeitas à tributação.

Antes de adentrarmos à discussão proposta, compete, neste primeiro momento, tecer alguns breves comentários a respeito do conceito de receita para fins de incidência tributária. Como bem definido por Solon Sehn[1], “receita constitui um ingresso de soma de dinheiro (…) decorrente de ato, fato ou negócio jurídico apto a gerar alteração positiva do patrimônio líquido da pessoa jurídica que a aufere, sem reservas, condicionamentos ou correspondências no passivo”.

Ou seja, nem todo ingresso financeiro que se integra ao patrimônio pode ser considerado como receita tributável, mas apenas aqueles aptos a gerar alteração positiva do patrimônio líquido da pessoa jurídica que a aufere. Como bem pontua Leandro Paulsen[2], “a análise da amplitude da base econômica ‘receita’ precisa ser analisada sob a perspectiva da capacidade contributiva”[3], não se enquadrando, portanto, no conceito de receita, eventuais valores recebidos à título de reembolso e ressarcimentos.

Isto porque, o artigo 195, inciso I, alínea “b”, da Constituição Federal possibilitou ao legislador derivado a utilização restritiva dos conceitos de receita ou faturamento das empresas como base de cálculo para as Contribuições ao PIS e COFINS. O alargamento desses conceitos não pode se dar nem mesmo através deste mesmo legislador ordinário, como o próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu por ocasião do julgamento do RE 390840.

Cumpre, ainda, ter presente a advertência do eminente Min. Luiz Gallotti, em paradigmático voto proferido no RE n. 71.758[4], no sentido de que “se a lei pudesse chamar de compra e venda o que não é compra, de exportação o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria todo o sistema tributário inscrito na Constituição”.

Desta forma, quando estamos diante de um ressarcimento ou de um reembolso, não há que se falar em alteração positiva do patrimînio líquido da pessoa que o recebe, não podendo tais valores serem caracterizados como receita para fins de incidência tributária.

No entanto, este não foi o posicionamento defendido pelos representantes fazendários durante o evento, os quais se posicionaram de acordo com algumas soluções de consulta já publicadas pela Receita Federal no sentido de que os reembolsos devem ser submetidos à tributação por falta de amparo legal à sua exclusão.

Neste sentido podemos mencionar a Solução de Consulta nº 191/2004, que entendeu que despesas como táxi, hospedagens, refeições, combustíveis, ligações telefônicas, de viagens etc., que tenham sido antecipadas pela empresa contratada e posteriormente reembolsadas pela empresa contratante devem compor a base de cálculo do Imposto sobre a Renda Retido na Fonte – IRRF, o que, consequentemente, faz com que sejam receita também para fins de incidência do IRPJ, CSLL, PIS e COFINS. O mesmo entendimento pode ser extraído das Soluções de Consulta nº 321/2011 e 159/2012.

O CARF, por ocasião do julgamento do acórdão 1803­002.463 de 25 de novembro de 2014, também não parece ter se atentado a esse “detalhe” ao firmar o entendimento no sentido de que “a receita dos escritórios que tenham por atividade a prestação de serviços advocatícios, inclui, além do valor percebido a título de honorários, todas as demais verbas reembolsadas pelos cliente a qualquer título”.

Entendemos, salvo melhor juízo, ter sido simplória a análise feita pelos eméritos representantes da Receita Federal no evento que ensejou a redação deste texto, a qual é respaldada pela posição da Receita Federal e do CARF. Isto porque, conforme vimos, é despicienda a expressa previsão acerca da possibilidade de exclusão de tais valores da base de cálculo dos tributos incidentes sobre a renda e a receita, pois, nestes casos, tais valores sequer perfazem tais conceitos, de forma que se enquadram em hipótese de não-incidência.

Afinal, se o ordenamento jurídico elegeu como critério material da hipótese de incidência de tais tributos o fato “auferir renda” ou “auferir receita”, quando o prestador de serviços tem o seu patrimônio reconstituído por um reembolso de despesa antecipada em nome de terceiro, tal fato não é suficiente para configurar a previsão hipotética da lei, pois como bem aponta Geraldo Ataliba[5], “um fato se subsume à hipótese legal quando corresponde completa e rigorosamente à descrição que dele faz a lei”.

Como bem observou a Min. Regina Helena, por ocasião do julgamento do REsp 1.571.354/RS, o qual analisa a incidência de IRPJ e CSLL sobre créditos do Reintegra, “seria um preciosismo do legislador elencar todos os elementos que não se incluem na base de cálculo de um tributo com cuja hipótese de incidência não guardam pertinência”. Ou seja, é perfeitamente compreensível que o texto normativo seja incapaz de antever todas as peculiaridades da incidência tributária, especialmente no que se refere à base de cálculo de uma exação (que inclusive traduz-se em característica de suma importância, visto que em conjunto com a hipótese de incidência, constitui o binômio capaz de efetivamente delimitar a natureza jurídica de um tributo conforme festejada doutrina do Prof. Paulo de Barros Carvalho[6]), posto que mesmo com tal preciosismo certamente nos confrontaríamos com inconsistências na esfera pragmática de aplicação da norma.

Em que pese nossa posição, certo é que devemos concordar que a mera previsão de reembolso de despesas nos contratos de prestação de serviços não é suficiente para descaracterizar determinado ingresso financeiro como receita, o que importa reconhecer que nem todos os valores recebidos sob o título de reembolso de despesas devem ser considerados como tal, sob pena de se abrir espaço para abusos onde, como bem apontado por Hiromi Higuchi[7], os “contratos passariam a incluir, como reembolsos, até salários e encargos sociais dos empregados”, com vistas a reduzir a carga tributária a ser suportada.

Por tal razão, faz-se necessário, a nosso ver, uma análise caso a caso no sentido de se fazer uma distinção entre ingressos que, de fato, caracterizam-se como reembolso de despesas, daqueles que se enquadram como receitas disfarçadas de reembolso, o que, por certo, não é uma tarefa fácil. Neste sentido concordamos com o critério adotado pelo Conselheiro Fernando Ferreira Castellani, o qual restou vencido no âmbito do acórdão 1803­002.463 já citado, o qual defendeu que “para ser considerado mero reembolso, a despesa deve ser algo diferente da atividade contratada, ainda que a ela vinculada, por obviedade”.

Aplicando-se este raciocínio, não há espaço, por exemplo, para se considerar como receita do escritório de advocacia o reembolso de custas judiciais e custas para diligência de oficiais de justiça efetuados por conta e ordem de terceiros (clientes), como entenderam os palestrantes, pois tais despesas são de responsabilidade de quem está litigando e não do escritório de advocacia, o qual funciona como um veículo/instrumento cuja a função é garantir ao seu cliente o acesso pleno à justiça.

Tal afirmativa ganha ainda mais relevo se levarmos em consideração o fato de que as custas judiciais são tributos da espécie das taxas, a qual encontra seu fundamento em um serviço público específico e divisível, no caso a prestação jurisdicional, prestado ao contribuinte. Ora, a prestação jurisdicional que enseja a cobrança da taxa não é prestada ao advogado, mas sim ao cliente por ele representado. O fato de o advogado, por uma questão de conveniência prática, antecipar o seu pagamento em nome do cliente, não é apto para caracterizar tal reembolso como receita tributável.

O CARF recentemente se posicionou nesse sentido por ocasião do acórdão 3302-005.843 de 25 de setembro de 2018, onde firmou o entendimento de que “não se caracterizam como receita e, portanto, não compõem a base de cálculo do PIS e da COFINS, os ingressos de recursos provenientes de adiantamentos ou reembolsos decorrentes de tributos pagos por conta e ordem de terceiros”.

Perpassando a análise referente ao reembolso das custas judiciais, precisamos enfatizar que igualmente criticável é a posição dos expositores em relação às despesas com passagens aéreas. Segundo o posicionamento dos palestrantes durante o evento, a natureza do valor pago à título de passagem aérea para deslocamento do advogado muda conforme a pessoa que realiza a sua aquisição. Explicamos: se a passagem aérea for comprada diretamente pelo cliente, o valor referente à sua aquisição não se caracterizará como receita tributável do advogado/escritório. Por outro lado, se o advogado/escritório realizar a compra da passagem e receber o reembolso do cliente, tal montante deverá ser tributado.[8]

Vale ressaltar que o entendimento proferido durante o evento vai ao encontro da posição já oficialmente manifestada pela RFB no âmbito da Solução de Consulta COSIT n. 70/2016 onde o órgão afirmou que estão excluídos da base de cálculo do Simples Nacional os valores recebidos por agência de publicidade para mero repasse aos veículos de comunicação e fornecedores, desde que realizados em conta alheia. Se a operação se decorrer em conta própria, estarão incluídos no Simples Nacional estes mesmos valores, em razão simplesmente de terem sido feitos pela agência formalmente em seu nome, em que pese serem reconhecidamente fruto de operação por conta e ordem de terceiro.

Ora, qual a diferença entre uma hipótese e outra? Para nós, nenhuma, o que faz, a nosso ver, com que o mesmo entendimento, seja pela incidência ou não, deva ser aplicado para ambas as situações, independente de quem realize a compra das passagens aéreas.

Desta forma, faz-se necessário uma análise aprofundada, na qual deverá prevalecer a substância sob a forma. Nesta discussão, bem como em tantas outras, torna-se ainda mais evidente a grande importância da consistência dos registros contábeis e fiscais, que podem ser o grande trunfo do contribuinte quando este eventualmente for ameaçado por uma autuação fiscal relacionada à temática.

Por tal razão, devem os contribuintes evitar o registro dos valores recebidos à título de reembolso em contas de resultado destinadas à contabilização de receitas operacionais, pois, conforme preceitua os artigos 226 do Código Civil e 417 do Código de Processo Civil, “os livros e fichas dos empresários e sociedades provam contra as pessoas a que pertencem (…)”. Tal situação tem o condão de produzir prova contra si em relação à natureza dos recebimentos, tornando mais difícil o seu reconhecimento como reembolso de despesas.

Ainda, importante observar que com o advento da MP 881/2019, houve, por força do artigo 7 a alteração da redação do artigo 421 do Código Civil o qual passou a prever no caput que “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”. O parágrafo único complementa o ora exposto ao afirmar que “nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional”.

Ora, um dos fundamentos da MP 881/2019 é justamente a presunção de boa-fé do particular (inciso II do artigo 2º), impondo o ônus da prova à administração tributária para fins de desconstituição do reembolso de despesa como tal e consequente caracterização dos valores recebidos como receita tributável. Porém, como já era de se esperar, ainda deverão haver grandes embates entre contribuinte e Fisco antes de a aplicação da norma se consolidar, uma vez que a RFB já sinalizou que não irá alterar suas posições com facilidade (vide Solução de Consulta n. 8.014/2019).

Desta forma, salvo nos casos em que restar comprovado que a escrituração como reembolso de despesas se deu com o intuito de disfarçar efetivos custos da prestação de serviços por parte do escritório (cujo o ônus é da autoridade tributária), tais valores não devem integrar a base de cálculo de tributos incidentes sobre a renda e a receita, por tratarem-se de hipótese de não-incidência tributária.


[1] SEHN, Solon. Não-Incidência de PIS/Pasep e da Cofins sobre reembolsos e indenizações. RDDT, 162/58, mar. 2009.

[2] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário Completo. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 450.

[3] Nesse sentido vide Solução de Consulta COSIT n. 171/2018 e 239/2017, onde a Receita Federal se manifestou, em relação às empresas produtoras de eventos e de Radiotáxi, respectivamente, que são consideradas como receitas dessas empresas apenas os valores por elas retidos e não o total dos valores depositados pelas operadoras de cartão de crédito.

[4] BRASIL – Supremo Tribunal Federal – RE 71758, Relator(a): Min. THOMPSON FLORES, Tribunal Pleno, julgado em 14/06/1972.

[5] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2018, p. 69

[6] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 314.

[7] HIGUCHI, Hiromi. Imposto de Renda das Empresas: Interpretação e Prática. São Paulo: Ir Publicações, 2017, p. 65. Disponível em: <http://www.crcsp.org.br/portal/publicacoes/livros/imposto-de-renda-das-empresas.pdf>. Acesso em: 08 ago. 2019.

[8] Este também é o posicionamento de Hiromi Higuchi (Op. Cit. P. 65) para quem, “algumas despesas como as de passagens aéreas, em vez de serem pagas pela prestadora de serviços e reembolsadas, a tomadora poderia pagar sem que o valor entre na base de cálculo do lucro presumido”.

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