Opinião

A autoridade e seus abusos: limites no direito alemão

Autores

  • Ricardo Campos

    é docente nas áreas de Proteção de Dados Regulação de Serviços Digitais e Direito Público na Faculdade de Direito da Goethe Universität Frankfurt am Main doutor e mestre pela Goethe Universität coordenador da área de Direito Digital da OAB Federal/ESA Nacional diretor do Instituto Legal Grounds e sócio do Warde Advogados.

  • Alaor Leite

    é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) doutor e mestre pela Ludwig-Maximilians Universität de Munique (Alemanha).

14 de setembro de 2019, 6h25

1. Introdução
Toda atividade pública ou privada, dependendo do grau de importância e complexidade de que é revestida, envolve riscos e limitações maiores ou menores. Sobretudo em cargos públicos mais elevados, há um interesse igualmente público em limitar certas condutas que possam levar a uma restrição indevida de direitos fundamentais de indivíduos ou grupos em geral. Dois âmbitos do direito, ao tratar dessas limitações ao exercício de funções públicas, têm chamado atenção no contexto atual: o direito penal (abaixo, 2.)[1], ao proibir o abuso ou o extrapolamento dos limites legais praticados no exercício de uma função pública, e o direito constitucional (abaixo, 3.)[2], especialmente ao enfrentar as limitações à liberdade de expressão depois do advento das redes sociais. As diversas ordens jurídicas existentes no mundo reagem, naturalmente, de forma diversa a essas delicadas ocorrências, e não há, até onde se pode divisar, um modelo perfeito a ser transplantado de um lugar a outro. De todo modo, convém ampliar os horizontes do debate. Estas linhas pretendem-se, assim, elucidativas da situação jurídica alemã. A ideia é expor em traços mais gerais, com intuito meramente descritivo e dentro dos limites do presente formato, o regime jurídico aplicável aos funcionários públicos em ambos os campos do direito mencionados, levando em consideração especialmente a posição de juízes e promotores no direito tedesco.

2. O Código Penal alemão
Desfilam no Código Penal alemão (StGB) alguns delitos que podem, em tese, alcançar os funcionários da justiça, como os membros do Ministério Público ou do Poder Judiciário. Esses delitos são classificados pela doutrina em dois grupos: o dos delitos próprios e o dos delitos impróprios de funcionários públicos[3]. Nos delitos próprios, a condição de funcionário público funda, inaugura uma punição específica para o funcionário, inexistente para o cidadão comum, como é o caso da corrupção pública do §331 StGB e do delito de “violação ou torsão do Direito” (a “Rechtsbeugung” do §339 StGB, de difícil tradução). Nos delitos impróprios, a condição de funcionário público apenas agrava uma punição existente para qualquer cidadão, como é o caso da “lesão corporal no exercício da função” do §340 StGB. A esta altura, convém recordar que os membros do Poder Legislativo, na Alemanha, não são considerados funcionários públicos para fins penais[4], razão pela qual, por exemplo, há previsão de tipo penal específico para a chamada corrupção política, o §108e StGB, com pressupostos diversos.

Naturalmente, os delitos comuns dirigem-se igualmente aos funcionários da justiça. É perfeitamente possível falar em um constrangimento ilegal – a “Nötigung” do §240 StGB – agravado para casos em que o funcionário da justiça constrange outra pessoa por meio de violência ou de ameaça com um mal sensível a uma ação, omissão ou, ainda, a tolerar alguma situação, valendo-se do exercício de sua função (§240, n. 2 StGB), com pena de seis meses a cinco anos. O exercício da função não exclui a responsabilidade, antes a agrava expressamente: o ilícito praticado adquire outra dignidade e passa a ser um ilícito praticado em nome do Estado, merecedor, segundo o direito alemão, de pena maior.

Os traços mais distintivos dos dispositivos alemães referem-se, contudo, aos tipos penais específicos que visam a tutelar a administração da justiça, construídos sob a forma de delitos próprios de funcionários – aqui, de funcionários da justiça. O mais relevante parece ser o delito de “violação ou torsão do Direito” do §339 StGB, que proíbe a conduta do magistrado ou membro do Ministério Público[5] que, na condução ou decisão de uma questão jurídica, “viole ou vergue” o Direito ou as regras legais – a tal “Beugung des Rechts” – em favor ou desfavor de uma das partes. A doutrina menciona, como justificativa para a existência desse delito, a necessidade de evitar que a administração da justiça seja agredida “a partir de dentro”[6]. A pena é de um a cinco anos de prisão, com possível perda do cargo (§45 StGB). Na jurisprudência alemã costuma-se afirmar que o §339 StGB pressupõe “uma aplicação do direito que, em seu resultado, não seja defensável” (BGHSt 59, 144, 146), o que ainda não basta para a realização do tipo: não se deve alcançar, com essa criminalização, uma “qualquer aplicação equivocada do direito” – o que invadiria o essencial mister interpretativo da atividade judicante –, mas apenas aquela em que o magistrado “se distancia conscientemente de forma gravíssima do Direito e das leis”, exigindo-se, ainda, que a violação seja “manifesta” (BGHSt 43, 183, 190). A gravidade do delito – punido na forma tentada (§§12 e 23 StGB), por ser uma infração grave (“Verbrechen”[7]) – e a porosidade dos elementos típicos fizeram com que a doutrina e a jurisprudência desenvolvessem critérios a tal ponto restritivos de interpretação, que o tipo penal passou a ser apenas aplicado em casos extremos[8]. É lugar comum doutrinário a afirmação de que o §339 StGB é “praticamente inaplicável”[9]. Uma leve inflexão jurisprudencial teve lugar em 2014, quando o Bundesgerichtshof – o tribunal correspondente ao nosso Superior Tribunal de Justiça – desenhou critérios um pouco mais claros para a aplicação do tipo, esclarecendo a necessidade de uma interpretação restritiva, mas oferecendo balizas objetivas e subjetivas, por exemplo, para a aplicação do tipo em casos nos quais o autor age com dolo eventual[10].

A verificação empírica de casos de “violação ou torsão do Direito” é, na Alemanha, estatisticamente baixa, segundo noticia o magistrado do Bundesgerichtshof, Thomas Fischer, em seus comentários ao dispositivo[11], o que é corroborado Giehring em seu estudo, repleto de dados estatísticos: “Processos criminais contra funcionários públicos alemães por ‘violação ou torsão do Direito’ foram e são, como é cediço, extremamente raros” – o autor menciona que de 2006 a 2010 apenas sete funcionários foram condenados com base no §339 StGB[12]. Houve discussão mais intensa a esse respeito em face dos juízes do nacional-socialismo e também da DDR, contexto em que se problematizou a famosa “fórmula Radbruch”. Logo se vê que o debate alemão, historicamente, intensifica-se após situações extremas ou excepcionais, dificilmente veniais, irruptivas de debacle integral de um modelo estatal[13]. Sobre a justiça na DDR mencione-se o “caso Waldheim”, em que se debateu a punibilidade da instauração de processos criminais destinados à destruição de inimigos políticos[14]. O já citado Fischer discorreu, há pouco, já fora dos contextos extremos de mudança de regime, sobre o complexo problema da punição de “acordos ilegais” no processo[15].

Além desse delito, pode ser mencionado o crime de persecução de inocente (“Verfolgung Unschuldiger”), tipo penal previsto no §344 StGB, com redação extensa e dirigido aos funcionários da persecução penal que submetem intencional ou conscientemente inocentes a um processo criminal. A pena é de um a dez anos de prisão. Também a execução de uma pena (ou medida de segurança) indevida é proibida penalmente, no §345 StGB, com a mesma pena do §344 StGB. O outro lado da moeda – isto é, a frustração da punição de culpados –, é a punição do favorecimento pessoal praticado por funcionário da justiça que “frustre a aplicação da lei penal” contra alguém que atuou antijuridicamente – um culpado –, prevista no §258a StGB, com pena de seis meses a cinco anos. No artigo anterior, o §258 StGB, que prevê o favorecimento pessoal “comum”, discute-se vivamente igualmente a punição do advogado[16]. Por fim, mencione-se a existência da “extorsão de um depoimento” do §343 StGB, que castiga com pena de um a dez anos, por exemplo, o funcionário da justiça que, na condução de um processo, constrange o arguido mediante violência ou tortura psíquica a prestar ou deixar de prestar uma determinada declaração. Essa lista, naturalmente, não é exaustiva – poder-se-ia falar, igualmente, em delitos de violação de segredo (§§ 353b, 353d StGB), de “documentação falsa no exercício da função”, por exemplo, em contextos de acordo no processo penal (§348 StGB)[17] e outros. A respeito de todos esses problemas, foi recentemente publicada na Alemanha instigante tese de livre-docência de Tobias Singelstein, intitulada “Persecução criminal criminosa” (Strafbare Strafverfolgung, Baden-Baden, 2019, 633p.), que alumia essa intrincada questão, merecedora de sóbrias e insuspeitas reflexões.

O saudoso penalista alemão Amelung, certa vez, afirmou: “A ideia de proteger a esfera do cidadão por meio do direito penal contra os detentores de funções estatais (…) é uma das mais antigas formas de proteção de direito fundamental”[18]. Atualmente, há pouca notícia a respeito dos delitos acima mencionados, o que pode ser atribuído às cautelas institucionais que, em regra, coíbem essas práticas[19]. A ideia fundante do direito público alemão e, por consequência, do processo penal, qual seja a de que toda intervenção em direitos fundamentais deve encontrar um fundamento legal específico – a chamada reserva de lei[20] –, parece contribuir, igualmente, para um ambiente de atuação dentro dos limites, controlada permanentemente pela próprias instituições. A situação – sobretudo em torno do §339 StGB[21] – é percebida no debate tedesco como delicada, especialmente por envolver interesses conflitantes. A balança a ser equilibrada é, de toda forma, sutil e pendula entre a indevida criminalização da essência de atividades públicas relevantes – cujo livre exercício deve ser garantido – e a necessidade de estabelecer uma relação sinalagmática entre exercício de poder estatal e responsabilidade. A consecução de um modelo equilibrado exigiria, contudo, mais do que estas linhas meramente descritivas, que não pretendem ser senão notícia do direito alemão, podem oferecer.


[1] De que se encarregou Alaor Leite.

[2] De que se encarregou Ricardo Campos.

[3] Cf. por todos Rengier, Strafrecht Besonderer Teil II, 20a ed., München, 2019, p. 550 e ss.

[4] Como conta do § 11 (1), n. 2, a) StGB.

[5] O tipo fala também em outros funcionários públicos, mas há a exigência de que o crime seja cometido na condução ou decisão de uma “questão jurídica”.

[6] Cf. Fischer, StGB, §339, 66a ed., 2019, nm. 2.

[7] No StGB há bipartição entre infrações graves ou crimes (“Verbrechen”) e infrações menos graves (“Vergehen“). Neste último, entre outras coisas, a punição da tentativa deve estar expressa no tipo penal.

[8] Veja-se o estudo de Neumann, Das “gebeugte Recht”, FS-Schünemann 2014, 631 e ss.

[9] Rengier, Strafrecht Besonderer Teil II, 20a ed., München, 2019, p. 576 e p. 579 e ss., sobre as teorias em torno da extensão da ação típica.

[10] Decisão do Segundo Senado do Bundesgerichtshof, publicada em BGHSt 59, 144.

[11] Fischer, StGB, §339, 66a ed., 2019, nm. 3-4; da mesma forma, Kuhlen, in: Nomos Kommentar, §339 StGB, 5a ed., 2017, nm. 4 e ss.

[12] Giehring, Die Belange der Opfer vorsätzlichen groben Justizunrechts und die Definition und Verfolgung von Rechtsbeugung, FS-Wolter 2013, p. 699 e ss., p. 701.

[13] Cf. Fischer, StGB, §339, 66a ed., 2019, nm. 2 e ss., 51 e ss., 55a.

[14] Cf. o estudo de Weber, Die Verfolgung des SED-Unrechts in den neuen Ländern, GA 2013, 195 e ss., p. 211 e ss.; Fischer, StGB, §339, 66a ed., 2019, nm. 55; cf. também a decisão BGHSt 43, 183 191.

[15] Fischer, Strafbarkeit beim Dealen mit dem Recht? Über Lausbuben und Staats-Streiche, GS-Seebode 2015, p. 59 e ss., 79 e ss., p. 80: “Aquele que busca, indicia ou entabula acordos ‚informais’ para além das regras legais, esclarecidas detalhadamente pela Corte Suprema, viola/torce o Direito (beugt das Recht)”.

[16] Em detalhes, Beulke/Ruhmannseder, Die Strafbarkeit des Verteidigers, 2a ed., Heidelberg, 2010; no direito brasileiro cf. Feldens/Teixeira, O que é o crime de obstrução de justiça conforme a Lei 12.850/13, in: https://www.conjur.com.br/2019-mai-21/opiniao-crime-obstrucao-justica-conforme-lei-128502013 .

[17] Cf. Neumann, Das “gebeugte Recht”, FS-Schünemann 2014, 631 e ss.

[18] Amelung, Strafrechtlicher Grundrechtsschutz gegen die Polizei, ZRP 1991, p. 143.

[19] Cf. Kuhlen, in: Nomos Kommentar, §339 StGB, 5a ed., 2017, nm. 11, sobre os controles e cautelas.

[20] A esse respeito, com referências, Greco, O inviolável e o intocável no direito processual penal: Considerações introdutórias sobre o processo penal alemão, in: Wolter, O inviolável e o intocável no direito processual penal, Trad. Luís Greco, Alaor Leite e Eduardo Viana, Madri/São Paulo, 2018, p. 21 e ss.

[21] Cf. o estudo de Neumann, Das “gebeugte Recht”, FS-Schünemann 2014, 631 e ss.; sobre os problemas no Brasil, ver Pierpaolo Bottini, Os juízes não podem ser punidos pelo conteúdo de suas decisões, in: https://www.conjur.com.br/2019-mai-06/direito-defesa-juizes-nao-podem-punidos-conteudo-decisoes .

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    é assistente na Cátedra de Direito Público, Teoria dos Meios de Comunicação e Direito Público da Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha).

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    doutor e mestre pela Ludwig-Maximilian Universität, Munique, Alemanha; assistente científico na Humboldt Universität zu Berlin, onde escreve a livre-docência.

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