Observatório Constitucional

Faltam parâmetros para compartilhar informações entre Fisco e MP

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14 de setembro de 2019, 8h00

O reconhecimento, em 2016, da validade da Lei Complementar 105/2001, que confere à administração tributária a prerrogativa de requisitar diretamente às instituições financeiras dados bancários para cobrar tributos, fez crescer, no Brasil, o debate sobre a constitucionalidade e os limites do compartilhamento dessas informações sigilosas com o Ministério Público para fins penais.

A decisão foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADIs 2.390, 2.397, 2.386 e 2.859, relatadas pelo ministro Dias Toffoli, e RE 601.314, relatado pelo ministro Edson Fachin. Por maioria, o tribunal declarou constitucional o acesso sistêmico, automático e periódico da União aos dados das operações financeiras efetuadas pelos contribuintes (artigo 5º), e também o acesso incidental aos dados relativos a contas de depósitos e aplicações financeiras do contribuinte, por qualquer dos três níveis de governo, mediante processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso (artigo 6º).

Foram três os principais fundamentos da tese vencedora: (1) a necessidade de instrumentos eficientes de fiscalização tributária, (2) a estreita conexão entre o acesso à informação e a concretização da Justiça fiscal, por meio da capacidade contributiva (dever fundamental de pagar impostos), e (3) a tendência internacional ao fim do sigilo bancário contra o Fisco e à troca de informações entre países. Haveria, segundo a maioria, não propriamente uma “quebra”, mas uma “transferência” de sigilo dos bancos para a Administração Tributária, que se comprometeria a preservá-lo.

O julgamento pôs termo a uma espera de 15 anos, mas não encerrou as controvérsias jurídicas a respeito do tema. Abriram-se novos debates em torno dos limites investigatórios da Receita Federal do Brasil e da possibilidade de troca de informações bancárias do contribuinte – isto é, dados sigilosos – com o Ministério Público, sem intervenção judicial.

O julgado instalou uma perplexidade em relação à cadeia de precedentes do STF. O Supremo Tribunal Federal não franqueava acesso direto aos dados bancários do cidadão à autoridade policial, para investigar crimes (Inq. 2593 Agr, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 15.2.2011), tampouco ao Ministério Público, para instrução de ações penais (CR 7323, rel. Min. Celso de Mello). Mas, em 2016, permitiu que o Fisco pudesse fazê-lo para fins tributários.

E quando, nas informações bancárias acessadas, existam indícios da ocorrência de crime? É lícito à Administração Tributária encaminhar diretamente as informações bancárias ao Ministério Público para as providências cabíveis na esfera penal sem prévia manifestação judicial? Esses dados não estão sujeitos a sigilo? Ao Fisco, segundo o STF, não teria sido “transferido” o segredo antes guardado pelos bancos? 

A matéria ganhou especial destaque no início de 2019, na forma de alerta sobre o manejo de dados de contribuintes, após vazamento de informações dessa natureza noticiado pelo ConJur[1]e por outros veículos de imprensa. Além dos jornais, o tema foi objeto de amplo destaque no âmbito do Congresso Nacional e do Poder Judiciário.

No Congresso, a questão veio na tramitação da Medida Provisória 870, convertida na Lei 13.844, de 18 de junho de 2019, que estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos ministérios. Discutiu-se a inclusão de regra limitadora da atividade da Receita Federal do Brasil, pela inserção de um §4º no artigo 6º da Lei 10.593/2002. A emenda limitava competência do Auditor-Fiscal da Receita Federal, em matéria criminal, à investigação dos crimes contra a ordem tributária ou relacionados ao controle aduaneiro. Quanto às demais infrações penais, proibia o compartilhamento de dados do contribuinte, sem ordem judicial, com órgãos ou autoridades a quem é vedado o acesso direto às informações bancárias e fiscais do sujeito passivo. A emenda, no entanto, não chegou a ser aprovada.

No Judiciário, pululam casos em que se contesta a validade de provas colhidas pela Receita Federal e são utilizadas pelo Ministério Público para fins penais, sem prévia autorização judicial. A questão galgou inclusive o STF e teve repercussão geral reconhecida em 13/4/2018 (Tema 990), tendo como processo-paradigma o RE 1.055.941, relatado pelo ministro Dias Toffoli, com julgamento previsto para 21 de novembro de 2019.

A bem da verdade, o compartilhamento de informações entre Fisco e MP nunca foi propriamente matéria pacífica nos tribunais superiores. No STJ, por exemplo, há julgados da 5ª Turma, separados por menos de um mês, com posições absolutamente divergentes sobre o tema: por exemplo, AgRg no REsp 1.586.796, julgado em 18.4.2017, e o RHC 75.532, julgado em 9.5.2017.

No STF, a 1ª Turma, ao examinar o RE 1.041.285 AgR-AgR, relatado pelo ministro Roberto Barroso –julgamento virtual finalizado em 26/10/2017–, admitiu a validade do compartilhamento de informações bancárias e fiscais pela Receita Federal com o Ministério Público para que tais dados sejam utilizados como prova na persecução criminal, após o encerramento do processo administrativo e da constituição do crédito tributário.

Há decisões monocráticas similares dos ministros Ricardo Lewandowski[i] e Gilmar Mendes[ii], ambos da 2ª Turma do STF. Entretanto, em 7.5.2019, a turma, por maioria, cassou decisão monocrática do ministro Edson Fachin, no RE 1.144.128, que havia reconhecido a “licitude dos dados obtidos pela Receita Federal, sem autorização judicial, mediante as informações repassadas pelas instituições financeiras, utilizados como conteúdo probatório” nos autos de ação penal, e determinou a devolução dos autos à origem para aguardar o julgamento do processo-paradigma de repercussão geral.

Em 16 de julho, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, determinou a suspensão nacional de processos sobre compartilhamento de dados sem autorização judicial até o julgamento do Tema 990. A decisão alcança “todos os inquéritos e procedimentos de investigação criminal (PIC’s), atinentes aos Ministérios Públicos Federal e estaduais, em trâmite no território nacional, que foram instaurados à míngua de supervisão do Poder Judiciário”. O provimento é amplo e produz efeitos em relação a “dados compartilhados pelos órgãos de fiscalização e controle (Fisco, COAF e Banco Central), que vão além da identificação dos titulares das operações bancárias e dos montantes globais”.

As decisões que validam o compartilhamento direto fundamentam-se nos mesmos precedentes de 2016 em que se declarou a constitucionalidade da LC 105: as ADIs 2.390, 2.397, 2.386 e 2.859 e o RE 601.314. Em nenhum desses julgados, contudo, o Pleno do Tribunal deliberou especificamente sobre o compartilhamento de informações sigilosas com outros órgãos da Administração, tampouco sobre seu uso para instrução criminal. Esse não era rigorosamente o objeto do litígio.

Nas decisões de 2016, o STF decidiu a respeito da validade da LC 105 e reconheceu prerrogativa de a Autoridade Fiscal requisitar diretamente os dados bancários dos contribuintes para o fim de cobrar-lhes tributos. Anotações a respeito de outros fins e usos dos dados dos contribuintes, além da esfera fiscal, não passaram de obiter dicta no julgamento. Estava em debate essencialmente o acesso imediato aos dados bancários do contribuinte como meio de eficiência, proteção arrecadatória e justiça fiscal.

Mas, ao admitir que as Fazendas Públicas tivessem acesso imediato aos dados bancários dos contribuintes, inevitavelmente abriu-se um segundo caminho –além da ordem judicial– para que o Ministério Público também pudesse acessar essas informações: o compartilhamento direto pela Autoridade Fazendária. Não é de se estranhar, assim, que a controvérsia em torno dos usos penais das informações bancárias obtidas com base na LC 105 para fins tributários logo chegasse ao STF, nem que esse acesso pela via administrativo-fisco pudesse se tornar o caminho preferencial do Ministério Público, se lhe fosse dado o poder de escolha.

É importante lembrar, por outro lado, que o compartilhamento de dados do contribuinte com o MP não configura rigorosamente uma faculdade da Administração Tributária. Além do dever geral de reportar irregularidades previsto no artigo 116, VI, da Lei 8.112/1990 –e também no estatuto dos servidores públicos de outros entes federados–, a legislação tributária em vigor disciplina especificamente a representação para fins penais, por meio da qual o Fisco reporta ao Ministério Público a existência de indícios de crimes, quando com eles deparar no regular exercício de seus múnus público.

O Código Tributário Nacional trata da matéria no artigo 198 para excepcionar a regra de sigilo em relação à “informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades”. O §1º do mesmo artigo permite que se atendam “solicitações de autoridade administrativa no interesse da Administração Pública, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa”. E o §3º autoriza a divulgação de informações relativas a representações fiscais para fins penais.

No nível federal, o artigo 83 da Lei 9.430/96 –anterior, portanto, à LC 105/2001– expressamente determina o encaminhamento de representação fiscal para fins penais ao “Ministério Público depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente”. A previsão é regulamentada pelo Decreto 2.730/1998 e tem aplicação em duas hipóteses: nos crimes contra a ordem tributária (artigos 1º e 2º da Lei n. 8.137/1990) e nos crimes contra a Previdência Social (artigos 168-A e 337-A do Código Penal).

No âmbito da RFB, a matéria é disciplinada pela Portaria 1.750/2018. A regra da Portaria é significativamente mais ampla do que a prevista no artigo 83 da Lei 9.430/96 e no artigo 198 do CTN. São três as hipóteses de representação: (1) representação fiscal para fins penais relativa a crimes contra a ordem tributária, contra a Previdência Social e de contrabando ou descaminho; (2) representação para fins penais referente a crimes contra a Administração Pública Federal, em detrimento da Fazenda Nacional ou contra administração pública estrangeira, de falsidade de títulos, papéis e documentos públicos e de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores; e (3) representação referente a ilícitos que configuram, em tese, atos de improbidade administrativa. O comando, como se vê, vai bem além do que estabelece a lei.

Além disso, o artigo 16 da Portaria prevê a divulgação, no site da Receita, de dados pessoais daquelas pessoas físicas ou jurídicas que tenham suas informações enviadas ao MPF. O número da representação, o nome, CPF e CNPJ podem ser expostos mesmo antes da incursão penal e do trânsito em julgado da condenação.

É esse, em linhas gerais, o quadro legal e de precedentes que emoldura o julgamento do RE 1.055.941 no STF. O tema de repercussão geral é a “possibilidade de compartilhamento com o Ministério Público, para fins penais, dos dados bancários e fiscais do contribuinte, obtidos pela Receita Federal sem autorização prévia do Poder Judiciário”. O debate, no entanto, pode ser muito mais amplo, se considerarmos a menção aos demais entes federados, no artigo 6º da LC 105, e também a possibilidade de a decisão englobar instituições de fiscalização e controle, como Banco Central, Coaf e tribunais de Contas.

A controvérsia obviamente não é idêntica à decidida pelo tribunal em 2016, mas guarda com ela íntima relação. Há uma aproximação temática e uma relação de ordem consequencialista –a controvérsia atual é, em boa medida, resultado do que decidiu o Tribunal em 2016. Hoje, o Fisco pode acessar diretamente os dados bancários do contribuinte e deve utilizá-los para constituir o crédito tributário, se constatada a ocorrência do fato gerador. Deve também – ao menos nas hipóteses para as quais há previsão legal (artigo 83 da Lei 9.430/96) – representar ao Ministério Público, quando deparar com indícios de crime e, dessa forma, “transferir” informações sigilosas do contribuinte.

São, portanto, dois os caminhos pelos quais o MP pode acessar informações bancárias e fiscais do contribuinte: ordem judicial ou compartilhamento da Autoridade Tributária. A questão que se impõe é saber até que ponto a segunda alternativa está de acordo com a Constituição Federal. O compartilhamento de informações entre Administração Tributária e Ministério Público configuraria quebra de sigilo ou mais um elo na cadeia de “transferências de sigilo” que teve início com o intercâmbio de informações entre banco e Fisco?

Além disso, o dever de representar deve abarcar quaisquer “irregularidades” ou apenas os crimes previstos no artigo 83 da Lei 9.430/96? É admissível compartilhar informações bancárias sem previsão legal específica, nem autorização judicial no caso concreto? É lícito o compartilhamento inclusive nas hipóteses de “Atos de Improbidade Administrativa que Atentam Contra os Princípios da Administração Pública”, previstos no artigo 11 da Lei 8.429/1992?

Afinal, em quais casos deve haver compartilhamento das informações bancárias do contribuinte e quais as informações que podem ser compartilhadas? Qual o procedimento aplicável? O compartilhamento somente pode se dar por ato de ofício da Autoridade Fiscal ou também mediante requerimento do Ministério Público? O Parquet pode, por conta própria, requerer ao Fisco dados específicos –bancários ou fiscais– de contribuintes?

É de se questionar também o papel do Legislativo nesse debate. Falta uma lei geral –complementar?–, aplicável aos três níveis da federação, como o artigo 6º da LC 105, para dispor sobre as hipóteses e o procedimento de compartilhamento de informações bancárias de contribuintes para fins penais? O quadro atual sugere, ao menos, a necessidade de que se estabeleçam parâmetros consistentes sobre: os tipos de informações que poderão ser compartilhadas, o momento adequado e os procedimentos necessários à proteção dos direitos do contribuinte.

Não há como colher dos julgamentos de 2016 respostas para todas essas perplexidades. Ainda que haja conexão entre os dois temas, a controvérsia jurídica a ser analisada no RE 1.055.941 é claramente distinta. Desta vez, não se discutem as prerrogativas da Administração Tributária. Estão em xeque os limites da persecução criminal, que têm contornos muito diversos daqueles da cobrança de tributos, na ordem constitucional de 1988.  

A decisão do STF, no julgamento previsto para 21 de novembro, deverá traçar um precedente fundamental para definir o futuro da privacidade, do sigilo de dados e também da atuação do Ministério Público no Brasil.

 


[i] Por exemplo: ARE 998.818, julgado em 30.9.2016.

[ii] Por exemplo: ARE 953.058, julgado em 25.5.2016, e ARE 939.055, julgado em 13.4.2016.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), consultor legislativo da Câmara dos Deputados, advogado e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público. Foi assessor e chefe de gabinete de ministro do Supremo Tribunal Federal. Autor dos livros O Avesso do Tributo e Os Impostos e o Estado de Direito.

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    é advogada, mestranda em Direito Tributário pelo IDP e Vice-Presidente da Comissão de Assuntos Tributários da OAB/DF.

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