Opinião

O poder sancionador da CVM e as normas de conteúdo indeterminado

Autor

  • Ademar Aparecido da Costa Filho

    é advogado sócio de AVSN – Advogados Associados mestrando em Constituição e Democracia pela Universidade de Brasília e membro do Grupo de Pesquisa Retórica Argumentação e Juridicidades (GPRAJ).

13 de setembro de 2019, 6h26

A instrução CVM Nº 607, de 17 de junho de 2019, deve ser lida de conformidade com as disposições da lei de introdução às normas do direito brasileiro, com olhar sobre as vítimas das condutas ilícitas e devidamente fundamentadas as decisões sancionadoras.

A instrução CVM nº 607/2019 começou a viger deste 1º de setembro e se presta a regulamentar os ritos e procedimentos relativos à atuação sancionatória da Comissão de Valores Imobiliários (CVM), substituindo várias Deliberações Normativas anteriores e, em especial, a instrução CVM nº 491, de 22 de fevereiro de 2011.

A origem deste movimento normativo por parte da CVM é a Lei nº 13.506, de 14 de novembro de 2017, que dispôs sobre o processo administrativo sancionatório nos campos de atuação do banco Central do Brasil (BCB) e da própria CVM.

O alargamento dos critérios legais para aplicação das penas, nos casos de infrações ao mercado financeiro, aparenta ser a maior preocupação que envolve a mencionada Instrução Normativa 607/2019. A pretexto de regulamentar, a instrução normativa preencheu os conceitos objetivos do art. 10, incisos I a VII, da Lei 13.506/2017 com enunciados vagos e de conteúdo jurídicos indeterminados.

A tradicional prática legislativa em matéria sancionatória recomenda que sanções só se apliquem por infrações às, assim denominadas, regras legisladas de mandato sem conceitos jurídicos indeterminados. Normas sancionadoras certas e fechadas possibilitam o respeito aos princípios da legalidade, anterioridade, transparência e segurança jurídica por ocasião dos julgamentos das infrações. Esta afirmação pode ser lida de outra forma, a saber, não seria recomendado que sanções estivessem fundamentadas em conceitos indeterminados ou de difícil determinação, como é o caso do art. 4º, §1º, incisos I, IV, VI, da mencionada Instrução da CVM 607/2019, que valoram o “grau de reprovabilidade da conduta”, “o impacto da conduta na credibilidade do mercado de capitais” ou “a boa-fé das pessoas envolvidas”.

Não se pode desconsiderar os importantes papéis normativo e simbólico que a CVM desempenha para o direcionamento do mercado de capitais. Explica-se: quando a instrução da CVM amplia a lei – se se trata de norma apta a gerar restrição de direitos, com proibição de atuar no mercado e multa – ela cria um ônus argumentativo extra para que suas deliberações sejam aceitas socialmente e irradiem seus efeitos naturais de evitar a prática de novas condutas lesivas, reparar o dano causado e reconfortar as vítimas.

Esta última função merece especial atenção quando se analisa as condutas ilícitas julgadas pela CVM – muitas delas refletidas nas normas penais da Lei 6385/76 e 7492/86 –, pois as vítimas são o ponto cego na prevenção geral dos ilícitos econômicos. Olhar as vítimas, perquirindo sobre a desorganização social que as tornaram suscetíveis ao ilícito é, a propósito, uma das novas fronteiras da criminologia corporativa[1].

Deveras, a transferência da legitimidade do legislador – cujo último fundamento é o próprio conceito de soberania – para a instancia administrativa reguladora/sancionatória só se opera através da justificação, argumentação e exaustiva exposição de motivos que levaram a CVM a decidir de uma forma ou outra nos casos concretos.

Afinal, se os conceitos contemplados pela Lei 13.506/2017 são objetivos (v.g. “a vantagem auferida ou pretendida pelo infrator”, “a capacidade econômica do infrator”, “o valor da operação” ou “a reincidência”), o mesmo não ocorre com as disposições da instrução CVM 607/2019 que privilegiou normas de conteúdo aberto, conformadas de critérios subjetivos (v.g. reprovabilidade, credibilidade e boa-fé).

Diante deste cenário surgem duas questões: (a) como suprir o hiato semântico entre a norma legislada e a norma regulada, sem que as decisões da CVM sejam anuladas por ofensa à legalidade; e (b) como formar critérios habituais de aceitação social, como é o caso da possibilidade universalização da decisão (formando jurisprudência, súmulas, enunciados, etc.), se há conteúdo mais fechado na Lei do que na Instrução.

Uma primeira solução, de índole normativa, está no recente art. 20 da LINDB que proíbe decisões “com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão”. As decisões que apliquem o direito público – seja pelas instancias administrativa, controladora e judicial – não são mais incólumes às críticas e tampouco impassíveis de revisão.

No julgamento do RMS 19.590/RS, o Superior Tribunal de Justiça assentou a viabilidade do controle do Poder Judiciário acerca de conceitos jurídicos indeterminados e do motivo do ato administrativo, entendendo que “o fato de o conceito jurídico indeterminado resultar em uma modalidade de vinculação administrativa, não engessa a atividade administrativa, vez que possibilita a adequação às peculiaridades de cada caso concreto”[2].

A decisão correta, portanto, será somente aquela que dialogar com as partes envolvidas no litígio no âmbito da CVM, respondendo a todas questões contingentes e necessárias postas, para que se diga sobre estes conceitos indeterminados. Mais: será correta somente se dialogar com outras questões que importem para a solução da questão, mesmo que não trazidas aos autos, atenta ao caráter conformador da cultura do mercado de capitais de dispõem as decisões da CVM[3].

Uma segunda solução convergente é considerar as ponderações de Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero na teoria dos ilícitos atípicos[4].

Para os professores espanhóis um ilícito pode ser definido como uma conduta contrária a uma norma reguladora de mandato (normas que proíbem ou obrigam uma conduta) – o que exclui do campo da ilicitude condutas relacionadas às normas reguladoras permissivas (que facultam determinada conduta) ou normas constitutivas (que regulamentam procedimentos de efetividade jurídica para atos da vida, v.g. as normas que dispõem sobre as condições e formalidades do casamento).

Neste caso da teoria dos ilícitos atípicos, a conduta pode ser analisada tanto como uma prática direta (ativa ou omissiva) passível de ser qualificada deonticamente como obrigatória ou proibida, quanto como o alcance de determinados fins (proibidos ou permitidos) por vias de outras ações. No primeiro caso, a qualificadora está na ação, enquanto no segundo no resultado.

Por último, os ilícitos podem referir-se tanto às infrações de regras como de princípios, aqui estando a diferença fundamental apresentada no texto ora analisado: “e que os primeiros (atos opostos a regras) podem ser chamados de ilícitos típicos, enquanto os segundos, que se opõem a princípios, seriam os ilícitos atípicos”[5].

É tênue linha a linha pela qual se transita no julgamento dos ilícitos atípicos.

O apelo às valorações extrajurídicas, obtidas com base na moralidade social vigente quando se julga, não é raro.

Por isto mesmo, que as propriedades valorativas não são propriedades simples, mas compostas de um feixe de outros valores/elementos lhes possibilitam sua definição enquanto tal. Explico: é fácil dizer se uma mesa é preta ou vermelha ou se um animal é um cachorro ou um gato; contudo, não é fácil dizer se uma mesa é a melhor ou se é melhor um gato ou cachorro. Um(a) ou outro(a) será melhor em determinado contexto, a depender dos outros elementos valorativos a serem examinados.

Portanto, quanto se parte para exame valores abstratos – como aqueles normatizados na CVM de reprovabilidade, credibilidade ou boa-fé – a definição deve ser descritiva, situada no tempo, de forma que se assinale que uma conduta é reprovável somente se praticada da forma X num tempo Y atingindo uma finalidade Z.

Não parece equivocado dizer, portanto, que a Instrução da CVM 607/2019 expandiu o texto normativo da Lei 13.506, trazendo para si a responsabilidade de julgar ilícitos atípicos, o que implica na obrigação última de dizer quais são os princípios que regem o mercado de capitais, quais são as finalidades (enquanto fim, objetivo) destes princípios e quais as condutas (omissões ou práticas) que lhes são contrárias.

As normas de conteúdo indeterminados são essenciais para regulamentação de sistemas complexos, como é o caso do mercado de capitais, em que surgem inovações a todo instante, circula grande quantidade de informações e possui importância central no desenvolvimento. Tais conteúdos indeterminados podem vir expressos em regras de mandato (proibitivo, inclusive), cujo fundamento são princípios passíveis de serem descritos e aplicados em casos concretos, desde que de forma bem fundamentada pela autoridade da CVM em atenção às consequências de suas decisões (aqui entendida no sentido mais amplo, com objetivo de pacificação social, compondo com as vítimas dos ilícitos e normatizando – na medida do possível – condutas futuras).


[1] Em importante e recente estudo, Eduardo Saad-Diniz expõe que “a necessidade de proteção incide mais precisamente sobre a percepção da vítima como sujeito que requer novos arranjos institucionais e sociais para encontrar formas de realização da personalidade vulnerada por comportamento desviante. Entra em questão a avaliação empírica das necessidades concretas de proteção da personalidade a partir de novas mediações que tragam processos de socialização mais efetivos ao sofrimento da vítima”. (Saad-Diniz, Eduardo. Vitimologia Corporativa. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p. 114)

[2] Veja-se o seguinte trecho da decisão: “Resta saber se esta imprecisão do termo "relevante interesse público" conduz à dita discricionariedade administrativa ou, ao contrário, à vinculação. Essa distinção torna-se imprescindível, pois, há quem defenda que caso se refira a esta e não àquela, o Poder Judiciário poderá dizer se se adotou a decisão adequada. É que a peculiaridade da discricionariedade está, exatamente, na existência de opções que conduzem a indiferentes jurídicos, os quais, por serem de tal natureza, inviabilizam a intromissão do Poder Judiciário.”

[3] A este propósito: “Quando se aplica uma norma a certa situação – juízo de aplicação, não está em pauta saber se a lei é válida, até porque isso coube ao discurso de validação normativa, mas, sim, qual é a norma adequada a determinado caso, datado, único e contextualizado. A decisão correta não quer dizer outra coisa senão aquela que considerou as particularidades do caso concreto mediante a descrição completa dos elementos fáticos relevantes. Não se trata de uma decisão que seria a expressão da verdade absoluta, a priori e abstratamente considerada. Não há, per se, a solução unívoca. Esta é construída no juízo de aplicação da norma e, dessa maneira, a posteriori, ou seja, quando, além das normas prima facie aplicáveis, tem-se a completa descrição da situação concreta.” (Unes, Flávio Henrique. Segurança jurídica e qualidade das decisões públicas: desafios de uma sociedade democrática. Brasília: Senado Federal, 2015, p. 17)

[4] Atienza, Manuel. Manero, Juan Ruiz. Ilícitos Atípicos: sobre o abuso de direito, fraude à lei e desvio de poder. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 23 e ss.

[5] Cit., Op. Cit., p. 25

Autores

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    é graduado pela USP, mestrando em Constituição e Democracia pela Universidade de Brasília (Unb), membro do Grupo de Pesquisa Retórica, Argumentação e Juridicidades – GPRAJ, advogado, sócio de MJ Alves e Burle – Advogados e Consultores.

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