Polarização da interpretação do direito deve dar lugar à ponderação
12 de setembro de 2019, 8h00
No âmbito do Poder Judiciário é absolutamente normal a reforma de decisões, sem que isso represente uma censura ou um demérito para o prolator da decisão reformada. Quem decidiu em primeiro lugar optou por uma entre as interpretações possíveis, por considerar que essa seria a melhor interpretação comportada pelo caso em exame, ao passo que o órgão reformador entendeu que outra seria, a seu juízo, a melhor decisão entre as possíveis.
Além disso, convém lembrar que, por definição todo direito é limitado. Não há direitos absolutos. Todas as regras comportam exceções. Além disso, cabe lembrar que, no direito brasileiro, a Constituição Federal estabelece regras e princípios jurídicos. Há uma certa hierarquia entre princípios, pois a própria CF, em seu Titulo I, já qualifica alguns como princípios fundamentais. No contexto normativo pode ocorrer tanto o conflito de normas, quanto o conflito de princípios. Normas conflitantes não podem conviver; cabe ao jurista, pelos meios técnicos apropriados, identificar qual delas deve prevalecer. A preocupação, neste artigo, é com os conflitos de princípios, que, na tradicional lição de Alexi, são mandamentos de otimização, podendo ser satisfeitos ou atendidos em graus variáveis, o que possibilita a convivência de princípios conflitantes: “Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido –, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior peso têm precedência. Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios – visto que só princípios válidos podem colidir – ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso.” ROBERT ALEXY, “Teoria dos Direitos Fundamentais”, tradução: Virgílio Afonso da Silva, Malheiros Editores, São Paulo, 2008, p. 93-94.
Estas considerações foram suscitadas em face de fatos e discussões existentes atualmente na imprensa, em casos nos quais os juristas, que adotam posições divergentes, se comportaram com desmedida ferocidade, tratando o adversário como inimigo. Vou repetir aqui o que sempre disse em minha longa vida como professor: quem diverge não ofende; apenas pensa diferente. Obviamente, o pressuposto é a honestidade intelectual, mas, presente esse requisito, a divergência, o debate, a discussão e o sopesamento dos argumentos são fundamentais. Sem isso o direito não avança, não acompanha a inevitável evolução do mundo fático e, também, dos valores sociais.
Tome-se como exemplo a verdadeira guerra que está sendo travada em torno de questões sobre sexo, família, pornografia, erotização infantil, liberdade de expressão, homossexualidade, religião etc. Nos últimos dias uma das controvérsias dizia respeito a um manual, para professores, editado pela Secretaria da Educação, do Município de Fortaleza, que apontava como algo normal na antiguidade os toques e beijos entre familiares, adultos e crianças, e mencionava a masturbação infantil como meio de acalmar as crianças. Na bienal do Livro, do Rio de Janeiro a polêmica se travou em torno de uma história em quadrinhos que estampava a cena de um beijo gay, de alto conteúdo erótico. Por fim, em São Paulo, o grande problema foi a apreensão, determinada pelo Governador do Estado, de uma apostila, usada na rede estadual de ensino, sob a alegação de que se tratava de “apologia da ideologia de gênero”. De fato, o texto fazia uma distinção entre sexo, biológico, identidade de gênero e orientação sexual, chegando a afirmar que “ninguém nasce homem ou mulher”. Todas essas questões são controvertidas. Se, de um lado, a Constituição garante a liberdade de expressão, por outro lado ela tem todo um Capítulo que cuida DA FAMÍLIA, DA CRIANÇA, DO ADOLESCENTE, DO JOVEM E DO IDOSO. Não obstante o STF tenha um entendimento “moderno” sobre o tema, o Art. 226, § 3º, ainda fala que a união estável entre o homem e a mulher merece proteção do Estado. Ou mais incisivamente, no Art. 227, “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Não é possível ignorar o fato concreto de que a pornografia infantil e a exploração sexual de menores são graves e sérios problemas, que precisam ser combatidos.
Liberdade de expressão e proteção à criança devem conviver. Não é possível aceitar posições maniqueístas, como a manifestada pelo Min. Celso de Mello, em nota enviada à jornalista Mônica Bergamo (Folha de São Paulo, 07/09/19) sobre a apreensão de livros na Bienal do Rio de Janeiro. Segundo o decano, essa apreensão se deu “sob o signo do retrocesso – cuja inspiração resulta das trevas que dominam o poder do estado–, um novo e sombrio tempo se anuncia: o tempo da intolerância, da repressão ao pensamento, da interdição ostensiva ao pluralismo de ideias e do repúdio ao princípio democrático”. “Mentes retrógradas e cultoras do obscurantismo e apologistas de uma sociedade distópica erigem-se, por ilegítima autoproclamação, à inaceitável condição de sumos sacerdotes da ética e dos padrões morais e culturais que pretendem impor, com o apoio de seus acólitos, aos cidadãos da república.” Salta aos olhos que se trata de um discurso gongórico, arcaico, obsoleto e que nada pode contribuir para a racionalidade, a moderação, o equilíbrio e a convivência pacífica.
Conforme foi dito no início, direito é divergência e nenhum direito é absoluto. Nenhuma norma tem significado fora do contexto do qual é parte. Em estudo recentemente publicado anotamos que: ”o jurista não pode ter postura anacronicamente conservadora, esforçando-se para deter o tempo, com olímpica ignorância no que diz respeito às transformações da sociedade contemporânea. Tais transformações se aceleram e se avolumaram nos tempos atuais. A interpretação sistemática e evolutiva, quando honesta e correta, não procura obscurecer disposições cristalinas, nem, por via indireta, retirar conclusões contrárias às afirmações contidas nas normas isoladas, mas, sim, deve retirar destas entendimento compatível com o sistema jurídico e, principalmente, com seus princípios informadores.” ADILSON ABREU DALLARI, “Consequencialismo no Âmbito do Direito Administrativo”, in Consequencialismo no Poder Judiciário, coordenadores: IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, GABRIEL CHALITA e JOSÉ RENATO NALINI, Editora Foco, São Paulo, 2019, p. 132.
O Poder Judiciário ainda não assimilou as profundas modificações feitas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (Decreto-Lei nº 4.657, de 04/09/42), pela Lei nº 13.655, de 25/04/18, cujo Art. 20 dispõe: “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”.
O Brasil vive um momento de transição. Nas palavras do Ministro Roberto Barroso, em entrevista à Globo News, há uma nova ordem querendo nascer, e estamos passando pelo que tínhamos que passar, mas estamos enfrentando as dores da transição. Segundo ele, vamos sair disso maiores e melhores. Nesta fase de nossa evolução institucional temos que discutir e debater para buscar convergências.
Com a autoridade técnica e moral, de um jurista que, como Presidente da República, comandou o Brasil, com firmeza e serenidade, durante o período de transição entre a velha ordem patrimonialista e nada republicana, e a nova ordem que estava surgindo, em meio a uma acirrada disputa eleitoral, Michel Temer, em texto publicado no Estadão de 29/08/19, p. A2, faz uma conclamação à pacificação do País: “Pacificar o País significa vê-lo unido. Não nas ideias, nem nos desejos e aspirações de cada setor da nacionalidade. Pacificar não significa que não haja situação e oposição. Não significa que não haja disputas corporativas. Significa, contudo, que todos terão objetivo único: o crescimento do país e o desenvolvimento do seu povo. Esta afirmação autoriza diferença de conduta, mas nunca da ação. Esta há de ser unitária em defesa do país”. Ao final desse texto, faz uma sugestão: “O Presidente da República, com os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal podem articular-se, como já fizeram em passado recente, para convidar presidentes e líderes dos partidos, governadores, sindicalistas e empresários para esse pacto nacional cujo objetivo é a pacificação nos termos descritos no início deste artigo. Recorde-se o Pacto de Moncloa. Promova-se um Pacto do Alvorada”.
Isso não é impossível. Objetivamente, não há uma divisão entre duas correntes políticas; de esquerda e de direita. A chamada esquerda não tem mais bandeira alguma, a não ser repetir o bordão inútil “Lula livre”. O governo federal está funcionando, não obstante os destemperos verbais do Presidente e as terríveis consequências do desastre econômico herdado. Nesse cenário, abre-se uma enorme oportunidade para os juristas, num momento em que a litigância está sendo substituída pela mediação, pela conciliação e pela busca de soluções negociadas. A polarização da interpretação e aplicação do direito deve ser substituída pela ponderação dos princípios constitucionais, segundo as circunstâncias e possibilidades concretas de cada caso.
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