Interesse Público

Polarização da interpretação do direito deve dar lugar à ponderação

Autor

  • Adilson Abreu Dallari

    é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

12 de setembro de 2019, 8h00

Spacca
Direito é divergência. Mas não da mesma forma com que se apresentam as divergências políticas, ditadas por concepções ideológicas ou interesses de pessoas ou grupos. No âmbito do direito, qualquer autoridade incumbida de competência decisória, sabe que antes de se aplicar qualquer disposição normativa a um caso concreto é preciso interpretá-la, para que se possa extrair do enunciado a norma nele contida. O grande problema está em que, nesse processo de extração da norma contida em seu enunciado, não há possibilidade de se chegar a um resultado único e inquestionável. Ao contrário, divergências interpretativas são naturais e inevitáveis.

No âmbito do Poder Judiciário é absolutamente normal a reforma de decisões, sem que isso represente uma censura ou um demérito para o prolator da decisão reformada. Quem decidiu em primeiro lugar optou por uma entre as interpretações possíveis, por considerar que essa seria a melhor interpretação comportada pelo caso em exame, ao passo que o órgão reformador entendeu que outra seria, a seu juízo, a melhor decisão entre as possíveis.

Além disso, convém lembrar que, por definição todo direito é limitado. Não há direitos absolutos. Todas as regras comportam exceções. Além disso, cabe lembrar que, no direito brasileiro, a Constituição Federal estabelece regras e princípios jurídicos. Há uma certa hierarquia entre princípios, pois a própria CF, em seu Titulo I, já qualifica alguns como princípios fundamentais. No contexto normativo pode ocorrer tanto o conflito de normas, quanto o conflito de princípios. Normas conflitantes não podem conviver; cabe ao jurista, pelos meios técnicos apropriados, identificar qual delas deve prevalecer. A preocupação, neste artigo, é com os conflitos de princípios, que, na tradicional lição de Alexi, são mandamentos de otimização, podendo ser satisfeitos ou atendidos em graus variáveis, o que possibilita a convivência de princípios conflitantes: “Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido –, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior peso têm precedência. Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios – visto que só princípios válidos podem colidir – ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso.” ROBERT ALEXY, “Teoria dos Direitos Fundamentais”, tradução: Virgílio Afonso da Silva, Malheiros Editores, São Paulo, 2008, p. 93-94.

Estas considerações foram suscitadas em face de fatos e discussões existentes atualmente na imprensa, em casos nos quais os juristas, que adotam posições divergentes, se comportaram com desmedida ferocidade, tratando o adversário como inimigo. Vou repetir aqui o que sempre disse em minha longa vida como professor: quem diverge não ofende; apenas pensa diferente. Obviamente, o pressuposto é a honestidade intelectual, mas, presente esse requisito, a divergência, o debate, a discussão e o sopesamento dos argumentos são fundamentais. Sem isso o direito não avança, não acompanha a inevitável evolução do mundo fático e, também, dos valores sociais.

Tome-se como exemplo a verdadeira guerra que está sendo travada em torno de questões sobre sexo, família, pornografia, erotização infantil, liberdade de expressão, homossexualidade, religião etc. Nos últimos dias uma das controvérsias dizia respeito a um manual, para professores, editado pela Secretaria da Educação, do Município de Fortaleza, que apontava como algo normal na antiguidade os toques e beijos entre familiares, adultos e crianças, e mencionava a masturbação infantil como meio de acalmar as crianças. Na bienal do Livro, do Rio de Janeiro a polêmica se travou em torno de uma história em quadrinhos que estampava a cena de um beijo gay, de alto conteúdo erótico. Por fim, em São Paulo, o grande problema foi a apreensão, determinada pelo Governador do Estado, de uma apostila, usada na rede estadual de ensino, sob a alegação de que se tratava de “apologia da ideologia de gênero”. De fato, o texto fazia uma distinção entre sexo, biológico, identidade de gênero e orientação sexual, chegando a afirmar que “ninguém nasce homem ou mulher”. Todas essas questões são controvertidas. Se, de um lado, a Constituição garante a liberdade de expressão, por outro lado ela tem todo um Capítulo que cuida DA FAMÍLIA, DA CRIANÇA, DO ADOLESCENTE, DO JOVEM E DO IDOSO. Não obstante o STF tenha um entendimento “moderno” sobre o tema, o Art. 226, § 3º, ainda fala que a união estável entre o homem e a mulher merece proteção do Estado. Ou mais incisivamente, no Art. 227, “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Não é possível ignorar o fato concreto de que a pornografia infantil e a exploração sexual de menores são graves e sérios problemas, que precisam ser combatidos.

Liberdade de expressão e proteção à criança devem conviver. Não é possível aceitar posições maniqueístas, como a manifestada pelo Min. Celso de Mello, em nota enviada à jornalista Mônica Bergamo (Folha de São Paulo, 07/09/19) sobre a apreensão de livros na Bienal do Rio de Janeiro. Segundo o decano, essa apreensão se deu “sob o signo do retrocesso – cuja inspiração resulta das trevas que dominam o poder do estado–, um novo e sombrio tempo se anuncia: o tempo da intolerância, da repressão ao pensamento, da interdição ostensiva ao pluralismo de ideias e do repúdio ao princípio democrático”. “Mentes retrógradas e cultoras do obscurantismo e apologistas de uma sociedade distópica erigem-se, por ilegítima autoproclamação, à inaceitável condição de sumos sacerdotes da ética e dos padrões morais e culturais que pretendem impor, com o apoio de seus acólitos, aos cidadãos da república.” Salta aos olhos que se trata de um discurso gongórico, arcaico, obsoleto e que nada pode contribuir para a racionalidade, a moderação, o equilíbrio e a convivência pacífica.

Conforme foi dito no início, direito é divergência e nenhum direito é absoluto. Nenhuma norma tem significado fora do contexto do qual é parte. Em estudo recentemente publicado anotamos que: ”o jurista não pode ter postura anacronicamente conservadora, esforçando-se para deter o tempo, com olímpica ignorância no que diz respeito às transformações da sociedade contemporânea. Tais transformações se aceleram e se avolumaram nos tempos atuais. A interpretação sistemática e evolutiva, quando honesta e correta, não procura obscurecer disposições cristalinas, nem, por via indireta, retirar conclusões contrárias às afirmações contidas nas normas isoladas, mas, sim, deve retirar destas entendimento compatível com o sistema jurídico e, principalmente, com seus princípios informadores.” ADILSON ABREU DALLARI, “Consequencialismo no Âmbito do Direito Administrativo”, in Consequencialismo no Poder Judiciário, coordenadores: IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, GABRIEL CHALITA e JOSÉ RENATO NALINI, Editora Foco, São Paulo, 2019, p. 132.

O Poder Judiciário ainda não assimilou as profundas modificações feitas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (Decreto-Lei nº 4.657, de 04/09/42), pela Lei nº 13.655, de 25/04/18, cujo Art. 20 dispõe: “Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”.

O Brasil vive um momento de transição. Nas palavras do Ministro Roberto Barroso, em entrevista à Globo News, há uma nova ordem querendo nascer, e estamos passando pelo que tínhamos que passar, mas estamos enfrentando as dores da transição. Segundo ele, vamos sair disso maiores e melhores. Nesta fase de nossa evolução institucional temos que discutir e debater para buscar convergências.

Com a autoridade técnica e moral, de um jurista que, como Presidente da República, comandou o Brasil, com firmeza e serenidade, durante o período de transição entre a velha ordem patrimonialista e nada republicana, e a nova ordem que estava surgindo, em meio a uma acirrada disputa eleitoral, Michel Temer, em texto publicado no Estadão de 29/08/19, p. A2, faz uma conclamação à pacificação do País: “Pacificar o País significa vê-lo unido. Não nas ideias, nem nos desejos e aspirações de cada setor da nacionalidade. Pacificar não significa que não haja situação e oposição. Não significa que não haja disputas corporativas. Significa, contudo, que todos terão objetivo único: o crescimento do país e o desenvolvimento do seu povo. Esta afirmação autoriza diferença de conduta, mas nunca da ação. Esta há de ser unitária em defesa do país”. Ao final desse texto, faz uma sugestão: “O Presidente da República, com os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal podem articular-se, como já fizeram em passado recente, para convidar presidentes e líderes dos partidos, governadores, sindicalistas e empresários para esse pacto nacional cujo objetivo é a pacificação nos termos descritos no início deste artigo. Recorde-se o Pacto de Moncloa. Promova-se um Pacto do Alvorada”.

Isso não é impossível. Objetivamente, não há uma divisão entre duas correntes políticas; de esquerda e de direita. A chamada esquerda não tem mais bandeira alguma, a não ser repetir o bordão inútil “Lula livre”. O governo federal está funcionando, não obstante os destemperos verbais do Presidente e as terríveis consequências do desastre econômico herdado. Nesse cenário, abre-se uma enorme oportunidade para os juristas, num momento em que a litigância está sendo substituída pela mediação, pela conciliação e pela busca de soluções negociadas. A polarização da interpretação e aplicação do direito deve ser substituída pela ponderação dos princípios constitucionais, segundo as circunstâncias e possibilidades concretas de cada caso.

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