Leniências em Questão

Direito premial e preservação das empresas

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11 de setembro de 2019, 8h00

Em artigo publicado nesta coluna, Gustavo Justino de Oliveira aponta como um dos desafios “pós-leniência” a superação dos riscos políticos, institucionais e financeiros decorrentes da celebração dos acordos. Especificamente quanto aos riscos financeiros, o autor assinala as “dificuldades financeiras da empresa após a celebração da leniência, oriundas sobretudo da crise reputacional que se origina muitas vezes do fato ‘acordo de leniência’, e que leva estas empresas a quadros deficitários gravíssimos, incluindo falência ou recuperação judicial, e que por sua vez levam a pleitos de revisão das bases originais da leniência, pois o pagamento dos danos e multas tornam-se excessivamente onerosos (ciclo vicioso da leniência)”[1].

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A crise das empresas alegadamente envolvidas em escândalos de corrupção e cartelização é decorrente de uma série de fatores. O País vem passando, desde meados de 2014, por uma resistente crise econômica que tem razões amplas e complexas. Não se pode negar, entretanto, do ponto de vista das empresas, que os acordos do direito premial, como os Acordos de Leniência, podem desencadear, a despeito dos benefícios, consequências de ainda difícil previsão e agravar a já preocupante situação econômico-financeira das companhias.

Nesse contexto, vemos no Brasil uma situação até poucos anos impensável: grupos pujantes, que exportavam conhecimento (engenharia), tinham forte presença internacional, geravam empregabilidade qualificada e contribuíam de modo substancial para o crescimento econômico nacional, quase que inacreditavelmente, formalizam pedidos de recuperação judicial[2].

É evidente que as razões para o malogro econômico dessas empresas não podem ser explicadas de modo trivial. De outro lado, multas e ressarcimentos por demais onerosos podem dificultar a preservação das companhias, levando, em alguns casos, à impossibilidade de cumprimento dos compromissos.

Como País, devemos refletir: é do interesse da coletividade a condução à falência de empresas nacionais de referência em seus setores de atuação? Não tem a empresa uma função social que se mostra mais relevante do que eventuais atos ilícitos de indivíduos à frente da gestão das companhias? Há como cumprir a lei, sancionando nos seus limites a pessoa jurídica e as pessoas físicas envolvidas, mas preocupando-se com a preservação das empresas e de seu valor socioeconômico?

Desde essa perspectiva, o presente texto pretende brevemente lançar luzes sobre tal debate e discutir o papel do direito antitruste no enfrentamento desses desafios.

Reflexões que vêm da Alemanha
O chamado “Petrolão” (escândalo de corrupção investigado pela Operação Lava-Jato, envolvendo empresas prestadoras de serviços à Petrobras, servidores de alto escalão da estatal e partidos políticos) é tratado como o maior escândalo da nossa história político-econômica[3].

Foi para a persecução dos agentes públicos e privados envolvidos no Petrolão que autoridades distintas – como o Ministério Público, a Polícia Federal, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e a Controladoria-Geral da União (CGU) – lançaram mão de instrumentos do direito premial previstos no nosso ordenamento jurídico, como os Acordos de Leniência, para obter informações e provas das condutas ilícitas em troca do oferecimento de vantagens aos beneficiários dos acordos.

Uma dolorosa reflexão pode nos ajudar a compreender a importância da preservação das empresas mesmo em momentos históricos sensíveis e traumáticos.

Um dos episódios mais tenebrosos da história da humanidade em séculos foi o Holocausto: o genocídio de judeus pelo Estado alemão, liderado pelo Partido Nazista, e seus aliados.

Ainda que o “Petrolão” tenha significado o desvio de exuberantes quantias de dinheiro público para finalidades não-republicanas em um país desigual como o nosso, seria uma afronta e uma insanidade comparar a gravidade do escândalo brasileiro com o Holocausto.

O fato é que a considerável maioria das grandes companhias alemãs da época se beneficiou da ascensão do Nazismo ao poder e, assim, contribiu com o Holocausto.

Desde o mero fornecimento para as demandas do Estado (passando por aço, automóveis, serviços financeiros, fármacos, produtos químicos, vestuário, etc. – a lista é assombrosamente extensa) até a vergonhosa utilização de mão-de-obra dos campos de concentração. Empresas alemãs se valeram da expansão territorial promovida por Hitler para ampliar seus ganhos econômicos, como registra R. J. Overy em “War and Economy in the Third Reich”. Em verdade, os vínculos entre grandes corporações alemães e o partido de Hitler são anteriores à chegada ao poder em 1933, como explora Reinhard Neebe em “Großindustrie, Staat und NSDAP 1930-1933”. Os grandes grupos econômicos, observa Henry Ashby Turner em “German Big Business and the Rise of Hitler”, tiveram papel crucial na ascensão e manutenção do Terceiro Reich. A literatura é rica no registro historiográfico da simbiose entre o grande capital alemão e o regime nazista.

Desse modo, a decisão que teria de ser tomada pelos alemães no pós-guerra era: (i) impedir a sobrevivência econômica de todas as companhias que se beneficiaram direta ou indiretamente do horror do Holocausto ou, (ii) em nome do reconhecimento da centralidade das empresas nacionais para o desenvolvimento do País num momento de reconstrução, fazer um esforço de reabilitação e preservação das companhias, sem prejuízo das pertinentes reparações e punições.

A Alemanha fez uma escolha. Na lista de empresas que colaboraram com o Holocausto, vemos diversas companhias que foram fundamentais na reconstrução da Alemanha do pós-guerra e na sua transformação em uma das economias com mais vitalidade industrial e tecnológica do mundo.

Mesmo com o risco de cair em “reductio ad Hitlerum”, podemos utilizar o caso alemão para refletir sobre como lidar com companhias brasileiras que se envolveram em graves casos de corrupção ativa, cartelização e outros ilícitos: (i) atos ilícitos devem ser sancionados; (ii) as sanções, porém, não devem inviabilizar economicamente a empresa; (iii) o direito premial pode ser um instrumento para responder esse desafio; (iv) o direito antitruste pode contribuir para a instrumentalização do direito premial com vistas a (a) não gerar impunidade e, ao mesmo tempo, (b) evitar que a repressão estatal acarrete inviabilização da companhia.

O antitruste pode contribuir?
O direito antitruste tem mecanismos para colaborar com o desafio de sancionar comportamentos ilícitos e, simultaneamente, não provocar o bloqueio das capacidades econômicas das empresas, reafirmando-se a importância da preservação das companhias. A saída pode estar em um debate que não é novidade no antitruste. Companhias devem ser sancionadas nos termos da lei, mas é preciso enfatizar a persecução também de pessoas físicas em casos de cartel[4].

As sanções às pessoas jurídicas, notadamente as pecuniárias, correm o risco de se tornarem números a serem internalizados ao se calcular os riscos da prática. Quando o indivíduo percebe que pode “sentir na pele” a repressão estatal, os incentivos a infrações anticompetitivas se reduziriam.

A Divisão Antitruste do Departamento de Justiça norte-americano há tempos reconhece a relevância da persecução criminal das pessoas físicas que participam de arranjos colusivos. No Brasil, as parcerias institucionais entre Cade (e, à época da Lei 8.884/1994, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça) e autoridades como a Polícia Federal e o Ministério Público para a celebração dos Acordos de Leniência Antitruste e a realização de operações de busca e apreensão ilustram, pelo menos desde 2003, que essa visão está parcialmente presente no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Além disso, há destacadas defesas de mais persecução aos indivíduos a partir da interface entre direito antitruste e direito penal, como a propugnada por Ana Paula Martinez em “Repressão a Cartéis”.

Contudo, haveria espaço para ampliação dessa perspectiva na seara administrativa antitruste, isto é, na prática do Cade?

Nota-se que a atuação repressiva do Cade é focada na persecução de pessoas jurídicas. Multas expressivas são impostas a empresas condenadas por cartel – exemplos eloquentes foram as multas impostas nos casos dos cartéis dos gases[5] e do cimento[6]. Pessoas físicas são arroladas como investigadas no Cade e, usualmente, condenadas quando há responsabilização das pessoas jurídicas às quais estavam vinculadas à época das práticas ilícitas. Por vezes, nem investigadas algumas pessoas físicas são.

Uma mudança de postura que poderia ser pensada pela autoridade antitruste diz respeito ao aumento das sanções para pessoas físicas combinada com uma eventual redução das sanções impostas às empresas. Isso pode significar multas menos acentuadas às companhias, mas não necessariamente: pode se expressar sob a forma de não aplicação de sanções não-pecuniárias previstas no art. 38 da Lei 12.529/2011, como a proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitações[7]. Sanções como essas, aliadas a multas consideráveis, podem implicar incapacidade das companhias de superar o quadro de dificuldades econômico-financeiras, com consequências falimentares que afetariam o emprego, o pagamento de credores e, de modo geral, a sociedade.

Quanto aos Termos de Compromisso de Cessação – fundamental instituto premial do direito da concorrência –, pode-se discutir um aumento das contribuições pecuniárias dos indivíduos combinado com uma redução das obrigações impostas às empresas compromissárias em TCCs em casos de cartel.

É verdade que, por força da Lei 12.529/2011, a multa aos indivíduos que, à época da conduta condenada, tinham cargo de administrador é uma porcentagem da multa imposta às empresas[8]. No entanto, seria recomendável pensar sobre a possibilidade de deslizar, aos poucos, para o teto a porcentagem das multas aplicadas aos indivíduos responsabilizados por cartel.

Essas proposições certamente suscitam críticas e, nesse sentido, devem ser submetidas a um escrutínio público mais detido. Por outro lado, o debate precisa ser feito.

O risco de “reductio ad Hitlerum” não pode nos impedir de refletir: os alemães não permitiram a quebra das empresas envolvidas no Holocausto; não devemos permitir a inviabilização econômica das empresas brasileiras acusadas de ilícitos como cartel no contexto do “Petrolão”. O direito premial e, especificamente, os institutos premiais do direito antitruste podem ser importantes ferramentas para responsabilizar, mas também preservar as empresas brasileiras aptas ao desempenho da sua função social, contribuindo para a superação da crise em que estamos desde 2014 e, assim, para o desenvolvimento do País.


[1] https://www.conjur.com.br/2019-ago-28/pos-acordo-leniencia-desafios-empresas-reabilitacao.

[2] https://www.valor.com.br/empresas/6310965/justica-acata-pedido-de-recuperacao-judicial-da-odebrecht.

[3] E.g.: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/petrobras-e-o-segundo-maior-escandalo-de-corrupcao-do-mundo-aponta-transparencia-internacional/; https://oglobo.globo.com/brasil/escandalo-da-petrobras-eleito-2-maior-caso-de-corrupcao-no-mundo-1-18648504.

[4] Casos de cartel são diferentes dos de conduta unilateral. Como a ilicitude das condutas unilaterais nem sempre é clara e está sujeita a uma verificação caso a caso dos efeitos provocados no mercado (“regra da razão”), acentuar a persecução de pessoas físicas nesses casos pode gerar um efeito indesejado: o arrefecimento de condutas pró-competitivas por receio de punição aos indivíduos.

[5] Processo Administrativo nº 08012.009888/2003-70.

[6] Processo Administrativo nº 08012.011142/2006-79.

[7] Em verdade, o Cade já praticamente não utiliza esse tipo de sanção não-pecuniária, o que indica que essa preocupação com a preservação das empresas já pode estar presente no racional das autoridades.

[8]Art. 37. A prática de infração da ordem econômica sujeita os responsáveis às seguintes penas: […] III – no caso de administrador, direta ou indiretamente responsável pela infração cometida, quando comprovada a sua culpa ou dolo, multa de 1% (um por cento) a 20% (vinte por cento) daquela aplicada à empresa, no caso previsto no inciso I do caput deste artigo, ou às pessoas jurídicas ou entidades, nos casos previstos no inciso II do caput deste artigo”.

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