IOF sobre o câmbio diferido das receitas de exportação segue controverso
11 de setembro de 2019, 8h00
A alíquota do IOF nas operações de câmbio relativas ao ingresso no País de receitas de exportação é reduzida a zero pelo artigo 15-B, inciso I, do Decreto 6.306/2014.
Mas qual o tratamento a ser dado ao exportador que nem deixa os seus recursos para sempre no estrangeiro, nem os remete de imediato ao Brasil, internalizando-os algum tempo após os ter recebido? A visão inicial da Receita Federal do Brasil foi manifestada na Solução de Consulta Cosit 246/2018, aliás de parcíssima fundamentação. Em uma frase diz-se que, “após o recebimento dos recursos em conta mantida no exterior, encerra-se o ciclo da exportação”, concluindo-se que o ingresso tardio das divisas se submete à alíquota padrão do IOF-câmbio, de 0,38% (Decreto 6.306/2014, artigo 15-B, caput).
O grave erro dessa afirmação foi exposto em pedido de reconsideração formulado pela Febraban, pela CNI e pela Associação de Comércio Exterior do Brasil. Advertiram essas entidades que o ciclo de exportação nem sempre se finda com o pagamento do preço, sendo ao contrário bastante comum que este último se efetue antes do embarque da mercadoria ou mesmo da sua fabricação. Em vão, contudo, pois o órgão reiterou o seu entendimento no Parecer Cosit 13/2019, acrescentando que os recursos voluntariamente mantidos fora do País perdem, só por isso, a natureza de receitas de exportação, passando à categoria genérica de “disponibilidades no exterior”.
A matéria foi, por iniciativa da Receita, submetida à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que editou o Parecer SEI 83/2019/CAT/PGACTP/PGFN/ME, registrando que:
1) o CMN, a teor da Lei 4.595/64 (artigo 4º, inciso XXXI), tem competência para regular o câmbio;
2) nesse âmbito, o CMN editou a Resolução 3.568/2008, dispondo que a liquidação das operações de câmbio em geral deve ocorrer no máximo 1.500 dias após a respectiva contratação e autorizando o Banco Central do Brasil (Bacen) a fixar prazos de liquidação específicos para cada tipo de operação (artigo 10, caput e inciso I);
3) na esteira de tal delegação, bem como da competência que lhe dão as Leis 4.131/62 (art. 23) e 4.595/64 (artigos 10, inciso VII, e 11, inciso III), o Bacen editou a Circular 3.691/2013, cujo artigo 99 disciplina os contratos de câmbio de exportação, admitindo que sejam celebrados prévia ou posteriormente ao embarque da mercadoria ou à prestação do serviço (momento da contratação) e que prevejam liquidação imediata ou futura em relação à celebração (momento da liquidação);
4) a teor do caput do citado artigo 99, o prazo máximo entre a contratação e a liquidação do câmbio de exportação é de 750 dias, observado ainda que:
4.1) é de 360 dias o prazo máximo entre a contratação do câmbio, quando prévia, e o embarque da mercadoria ou a prestação do serviço (inciso I);
4.2) finda no último dia útil do 12º mês posterior ao embarque ou à prestação o prazo para a liquidação do contrato de câmbio (inciso II);
5) a alíquota zero de IOF é aplicável a receitas de exportação não trazidas de imediato ao Brasil, desde que o respectivo contrato de câmbio atenda aos prazos fixados no artigo 99 da Circular Bacen 3.691/2013, acima discriminados;
6) a solução proposta fica a meio termo entre a posição radical da Cosit e a tese também extrema dos contribuintes, para quem a alíquota zero seria aplicável mesmo que a internalização dos recursos se desse 50 anos após o seu recebimento, pretensão que –sempre ao ver da PGFN– eternizaria benefício fiscal e permitiria a aplicação de alíquota diversa daquela vigente ao tempo do fato gerador.
Na Solução de Consulta Cosit 239/2019, a Receita Federal abandonou o seu posicionamento anterior, passando a alinhar-se ao parecer da PGFN. Dá-se que este, embora abandone o irrealismo da visão inicial do Fisco, padece ainda de sérios problemas de inteligibilidade (ou melhor, de consistência interna) e de juridicidade. De fato:
I) o caput do artigo 99 da Circular Bacen 3.691/2013 estabelece prazo para a liquidação de câmbio já contratado; a data da celebração, aliás, é o termo inicial dessa contagem (item 4 supra). Nada diz, portanto, sobre o momento em que operação de câmbio ainda inexistente – pois o empresário decidiu manter os seus recursos provisoriamente no exterior – deve ser contratada;
II) novamente, o prazo entre a contratação prévia do câmbio e o embarque ou a prestação (item 4.1 supra) parte do princípio de que aquela contratação já ocorreu, não dando nenhum indício sobre o momento em que deveria ter sido assinada. Imagine-se o seguinte exemplo extremo: o comprador estrangeiro paga com 10 anos de antecedência, e o vendedor brasileiro mantém os recursos no exterior por todo esse período. Seis meses antes da entrega da mercadoria, este último contrata o câmbio (que será, portanto, prévio ao embarque). A regra do artigo 99, inciso I, terá sido respeitada, mas a situação não parece enquadrar-se no que a PGFN consideraria aceitável;
III) da mesma forma, o prazo para a liquidação do contrato de câmbio, a contar do embarque ou da prestação (item 4.2 supra), nenhuma relação tem com o intervalo entre o recebimento dos recursos e o seu ingresso no Brasil. Basta considerar, seguindo no mesmo exemplo, que o seja liquidado seis meses após o embarque. O inciso II também terá sido atendido (assim como o caput: 750 dias entre contratação e liquidação), sem que na verdade nenhum desses comandos tenha precipitado a internalização (ocorrida dez anos e meio após o pagamento), como parece ser a intenção da Procuradoria;
IV) considere-se agora outro caso: o comprador estrangeiro paga, o exportador brasileiro embarca a mercadoria e, cinco anos depois, resolve trazer os recursos para o Brasil, contratando o câmbio para liquidação imediata. A irrelevância do comando descrito no item 4.2 é manifesta, pois o limite de 12 meses a contar do embarque vale para a liquidação de contrato de câmbio em vigor, e não para a celebração de contrato ainda inexistente –o que se reforça pelo fato de tratar-se de inciso, cuja extensão se limita à do caput (que, já se viu, define o intervalo máximo entre a celebração e a liquidação do contrato de câmbio). Tomar esse prazo de empréstimo para regular a assinatura do contrato, e para exigir IOF caso este não seja firmado e liquidado em 12 meses do embarque, é sem dúvida tributar por analogia, contra a Constituição (artigo 150, inciso I) e o CTN (artigo 108, parágrafo 1º).
Em resumo, as regras invocadas são inaplicáveis, e o parecer – que se limita a transcrevê-las, sem as submeter a um cotejo analítico com a realidade subjacente – sequer é claro sobre os marcos temporais que sugere. Resta ver como a Receita Federal aplicará, na prática, diretrizes tão imprecisas.
E mais: o afastamento da Resolução CMN 3.568/2008 e da Circular Bacen 3.691/2013 não produz o vácuo diante do qual o artigo 1º da Lei 11.371/2006 – que, é fato, exige a disciplina do Conselho – poderia ser tido por ineficaz, o que solaparia o próprio direito do exportador de manter os seus recursos fora do País. Isso porque existe regulamentação específica do CMN para o dispositivo legal, veiculada pela Resolução Bacen 3.389/2006, a qual não impõe quaisquer limites temporais para o exercício daquela faculdade. A existência de lex specialis torna descabido o recurso à regra que disciplina os prazos para a liquidação dos contratos de câmbio (contratos ainda inexistentes na situação em exame, vale insistir), pois não há lacuna normativa a ser integrada.
A conclusão é inevitável: as receitas de exportação mantidas no exterior se submeterão, quando quer que ingressem no País, à alíquota de IOF-câmbio então vigente para essa categoria. A identificação de tais receitas far-se-á (i) pela sua manutenção em conta bancária que não receba créditos de outra origem, ou (ii) – sendo o dinheiro bem fungível por excelência – pela prova de que, desde o seu recebimento, o saldo da conta bancária não segregada em que depositadas se manteve maior ou igual ao menor valor entre o somatório dos créditos dessa natureza e o montante remetido ao Brasil.
Nem calham as críticas de eternização de benefício fiscal e de divórcio entre a alíquota aplicável e a vigente ao tempo do fato gerador. Se o IOF-câmbio incide no momento da liquidação do respectivo contrato (que só será celebrado muito depois do recebimento dos recursos), é óbvio que não há garantia de que as receitas de exportação temporariamente mantidas no exterior se beneficiarão da alíquota zero quando forem internalizadas, correndo à conta do exportador o risco da respectiva majoração, que aliás poderá ser veiculada por decreto dotado de efeitos imediatos.
Pode se queixar de competidores menos ineptos um país que – vide ainda o esdrúxulo debate sobre a revogação da Lei Kandir, para não falar de tantas outras controvérsias –pensa dia e noite em tributar o próprio esforço exportador?
Agradeço a Leonardo Ogassawara de Araújo Branco e Tatiana Midori Migiyama, organizadores do excelente seminário Tributação do Mercado Financeiro e de Capitais, promovido pelo IBDT e pela Confederação Nacional das Instituições Financeiras, a gentil provocação para refletir sobre este tema.
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