Ideias do Milênio

"Impactos do aquecimento global vão aumentar drasticamente"

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10 de setembro de 2019, 15h54

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Entrevista concedida pelo jornalista David Wallace-Wells, autor de A Terra inabitável, ao jornalista Jorge Pontual para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews.

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David Wallace-Wells — "Eu tenho 36 anos. Quando nasci, o planeta estava razoavelmente estável. Alguns cientistas diziam que havia alguns sinais preocupantes, mas ninguém achava que estávamos perto de uma crise. 36 anos depois, estamos à beira da catástrofe.

E isso só pelo que aconteceu nos últimos 30 anos. Esse é o impacto que os próximos 30 anos terão.

Se há 30 anos nós levamos o planeta de um sistema estável para a beira da catástrofe, agora temos cerca de 30 anos para garantir que os piores impactos não se concretizem."

Jorge Pontual — Nós estamos com David Wallace-Wells, que escreveu o livro The Uninhabitable Earth, A Terra inabitável, e que vai conversar com a gente sobre esse livro que está fazendo um sucesso muito grande nos Estados Unidos. Alguns chamam de alarmista, outros dizem que é otimista demais, mas está mexendo com a opinião pública americana. Fale sobre o título. Há um subtítulo curioso: "A vida depois do aquecimento". Eu pensei: "Se a Terra se tornar inabitável, não haverá vida após o aquecimento." Qual é a mensagem?
David Wallace-Wells — Não acho que a Terra se tornará verdadeiramente inabitável numa escala de tempo que faça sentido para nós. Talvez daqui a vários séculos por causa do aquecimento global, mas não num futuro próximo. Mas o fato de ser concebível identificarmos uma história que nos leve daqui até lá deveria chocar todos os habitantes do planeta. Então o objetivo do título é ser mesmo exagerado. Não acho que o mundo se tornará inabitável, mas o fato de isso ser hoje uma possibilidade que precisamos considerar deveria nos chocar e nos fazer repensar nossos rumos enquanto planeta e espécie. E isso não vale só para os impactos científicos, como incêndios, secas, aumento da temperatura e do nível do mar, mas como vai impactar nossa política e geopolítica, nossa relação com a tecnologia e com o capitalismo. Eu achei que nenhum livro tinha discutido essas questões com a profundidade devida. Então meu livro pretende esboçar de uma nova maneira os impactos das mudanças climáticas sobre a humanidade. Nós conhecemos basicamente a ciência, mas este é um esforço para apresentar um novo conjunto de perguntas sobre: se o mundo se transformar como esperamos, o que isso significará para a forma como vivemos nele?

Jorge Pontual — Você usa um termo que acho melhor para descrever o que está acontecendo do que "mudança climática", porque esse termo remete a algo neutro. Você usa "sofrimento climático". Por quê?
David Wallace-Wells — Cada elevação de temperatura que enfrentarmos produzirá mais sofrimento. E isso tem impacto não só no nível do Estado como também individual. Os índices de homicídios, de estupro, de violência doméstica e de roubos sobem. Tudo isso aumenta com a elevação da temperatura.

Jorge Pontual — Isso foi estudado e a correlação é clara?
David Wallace-Wells — É muito clara. É importante dizer que, em algo como guerras civis ou entre nações, nunca poderíamos dizer que foram causadas exclusivamente pelo aquecimento global, que o aquecimento é 100% responsável por isso. Mas se o risco de algum tipo de conflito aumenta 20%, 30% ou 40%, o fato de haver mais conflitos no mundo seria um reflexo coletivo do aquecimento global, da mesma forma como não podemos dizer que um certo furacão é 100% resultado das mudanças climáticas, mas sabemos que o fato de estarmos vendo mais furacões e muito mais intensos no geral é uma história que tem a ver com a mudança no clima, assim como os incêndios florestais na Califórnia.

Jorge Pontual — Eu venho acompanhando esse assunto há muito tempo, e entrevistei Al Gore há 20 anos, James Hansen e Bill McKibben há 10 anos, e isso era sempre algo que aconteceria no futuro, o que não é mais verdade. Nós já estamos num sistema climático que nunca existiu, certo?
David Wallace-Wells — Nunca na história humana. O planeta nunca foi tão quente como é hoje, com humanos o habitando. Alguns céticos dizem que o planeta já foi mais quente, e é verdade, mas não havia vida humana. Na última vez que houve tanto carbono na atmosfera como há hoje, a Groenlândia era verde, havia palmeiras no Ártico e toda a zona equatorial do planeta era tão quente que nenhum ser humano seria capaz de morar lá.

Jorge Pontual — E o nível do mar era muito mais alto?
David Wallace-Wells — Cinquenta metros. Não está claro o quanto o nível do mar vai aumentar, porque não entendemos totalmente a dinâmica do derretimento dos glaciares, mas se todos derretessem, o que deverá acontecer se chegarmos a 4 graus, o que é a previsão para 2100, isso significaria 80 metros de elevação do nível do mar ao longo de vários séculos, um efeito retardado. Outros efeitos serão mais imediatos, mas é um impacto dramático. Oitenta metros! Redesenharia completamente o mapa mundial. Mas estou mais interessado nos impactos mais imediatos: na agricultura, na saúde pública, no desempenho cognitivo, crescimento econômico, conflitos. Esses são impactos que já estamos vendo, e eles vão aumentar dramaticamente nas próximas duas décadas se não mudarmos de rumo. Isso não deveria ser surpresa, porque metade das emissões que jogamos na atmosfera em toda a história da humanidade foi dos últimos 30 anos. Esse é o impacto que os próximos 30 anos terão. Se há 30 anos nós levamos o planeta de um sistema estável para a beira da catástrofe, temos cerca de 30 anos para garantir que os piores impactos não se concretizem. E todos nós estamos vivendo essa história que acontece numa escala teológica, mitológica. Temos o futuro do planeta e da espécie nas nossas mãos, e todos nós que estamos vivos neste planeta somos protagonistas dessa história. Nós podemos determinar de quanto será o aquecimento. 2,5 graus, 3 graus, 4 graus… Cada aumento de temperatura nesse espectro criará mais sofrimento e cada aumento que pudermos evitar evitará sofrimento. Então cabe a nós agir rápido.

Jorge Pontual — Você era pequeno, mas eu me lembro de quando James Hansen falou no Congresso sobre o aquecimento global. E depois houve a Rio 92, a Conferência da ONU sobre o clima. E em 1988 o IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU) foi lançado. Já havia muita consciência sobre o problema há 30 anos. O que aconteceu?
David Wallace-Wells — Acho que isso é um reflexo do fato de que a maioria das lideranças mundiais tem se preocupado com o crescimento econômico, concentrando as políticas públicas prioritariamente no crescimento econômico e até há poucos anos todos diziam que agir contra o aquecimento global seria muito caro, pois exigiria investimentos grandes e abrir mão de algum crescimento econômico. Felizmente essa mentalidade mudou nos últimos anos e hoje a maioria dos economistas acha que agir rápido será melhor economicamente até mesmo no curto prazo.

Um estudo do ano passado revelou que podemos adicionar 26 trilhões de dólares à economia global até 2030 com a descarbonização rápida, e acho que isso reflete essa mudança na forma de pensar o assunto. E acho que começará a mudar a formulação de políticas se todos concordarem que estaremos economicamente mais avançados por meio de ações rápidas, e não lentas. E o reflexo mais empolgante dessa mudança de mentalidade é um plano que foi lançado recentemente pelo governo indonésio. A Indonésia é um país que dobrou sua renda per capita em duas décadas, cortou pela metade o nível de pobreza, mas, ao mesmo tempo, dobrou suas emissões. Essa história representa qualquer país em desenvolvimento, que, por muito tempo achou, provavelmente com razão, que para sair da pobreza teria de se industrializar, o que significaria emissões de carbono. Mas sua mentalidade mudou tanto que esse novo plano sugere cortar suas emissões pela metade até 2030, o que superaria seu compromisso no Acordo de Paris, e ainda assim crescer 6% ao ano, mais do que os 5% que a Indonésia cresceu nas duas décadas anteriores.

Acho que temos de encarar a questão dessa forma, não em termos de trocas entre ações sobre o clima e crescimento econômico, mas entendendo que o único rumo possível para um futuro próspero, justo e igualitário é através de ações sobre o clima. Acho que as lideranças estão começando a acordar para essa mentalidade, mas ainda não chegaram lá, e é por isso que as ações até hoje foram tão lentas.

Jorge Pontual — Você acha que a opinião pública nos EUA mudou tanto nos últimos dez anos? Porque, dez anos atrás, a maioria dos americanos achava que esse não era um problema grave, que sequer era causado pela humanidade, que era balela. Agora é o contrário: a maioria acha que algo deve ser feito. É por causa da sua geração?
David Wallace-Wells — Quando essa notícia passa a ser diária, vemos que vivemos num mundo diferente e não podemos ser complacentes como podíamos há uma década, mas também acho a dinâmica geracional muito importante. Não temos tempo para esperar as Gretas Thunberg do mundo virarem primeiras-ministras aos 35 anos.

Jorge Pontual — Diga aos nossos telespectadores no Brasil que não estão convencidos… Tente convencê-los de que precisamos agir contra o aquecimento global logo.
David Wallace-Wells — Quem duvida da ciência deveria saber que tudo que observamos sobre o aquecimento do planeta poderia ter sido previsto com extrema precisão pela explicação mais básica do efeito estufa, que começou no século 19. Isso não requer dados complexos. Quanto mais gases de efeito estufa na atmosfera, mais quente fica. E os gráficos são muito claros. As concentrações de carbono aumentam e as temperaturas também. A questão é o que fazer em relação a isso. Nesse nível, eu entendo quem diz que não deveríamos sabotar nosso crescimento econômico pelo bem do planeta. Eu era assim também. Sempre vivi na cidade, não adoro a natureza nem animais particularmente. Acho o mundo natural lindo, mas não preciso viver nele. E se tivesse que escolher entre um mundo próspero para os humanos e uma natureza intocada para os animais, eu escolheria o mundo para os humanos até hoje.

Mas eu sei pela minha pesquisa que isso não será possível se continuarmos no rumo em que estamos. Como eu disse, a pesquisa sobre crescimento econômico é muito dramática. Já no fim deste século, que não está tão longe, partes extensas do mundo – grande parte do Brasil, todo o Oriente Médio, toda a África Subsaariana, boa parte da Ásia – podem ficar sem esperança alguma de crescimento econômico devido às mudanças climáticas. Certas partes do mundo serão atingidas por seis desastres naturais ao mesmo tempo: furacões, inundações, seca, ondas de calor, tudo ao mesmo tempo. Esses impactos transformam tudo o que sabemos sobre a civilização moderna em algo muito frágil. Acho que acharemos uma forma de suportar, a civilização humana vai se adaptar, mas as condições de vida se transformarão, o que significa voltar às condições da experiência humana pré-histórica, quando todas as gerações eram iguais às anteriores.

Jorge Pontual — Fale sobre as mudanças climáticas e a Amazônia.
David Wallace-Wells — Há muitas histórias complicadas surgindo da Amazônia, mas um resumo curto é que se trata da maior floresta tropical do mundo e portanto, a maior fonte de oxigênio do planeta e também é o maior "sumidouro de carbono". As plantas absorvem carbono e produzem oxigênio, portanto ajudam muito na luta contra as mudanças climáticas. A Amazônia é parte vital desse ecossistema, e quando há desmatamento ou exploração de madeira para desenvolvimentos de vários tipos, isso prejudica não só a capacidade do Brasil de mitigar parte da concentração de CO2 na atmosfera, mas de todo o planeta, porque essa é a importância da floresta amazônica. Incêndios têm o mesmo impacto, e eles têm sido frequentes na Amazônia. Uma árvore é basicamente carbono armazenado. Quando queima, libera carbono na atmosfera, de forma não muito diferente do carvão. Então, incêndios florestais são outra forma de tornar um sistema que ajudou demais a estabilizar o clima no passado muito menos útil. E as políticas que Jair Bolsonaro está propondo para a região piorariam isso ainda mais. Qualquer esforço para cortar as árvores da Amazônia será muito prejudicial à capacidade do planeta de combater o aquecimento. Aliás, cientistas brasileiros analisaram os planos dele e disseram que, apenas na próxima década, o que ele planeja fazer com a Amazônia seria equivalente a adicionar uma outra China à economia mundial. A China é responsável por um quarto das emissões mundiais.

Jorge Pontual — É quem mais emite, não é?
David Wallace-Wells — É, de longe. Emite quase o dobro dos EUA, o 2º colocado. Seria um impacto dramático nas nossas emissões e prejudicaria nossa capacidade de mitigar o problema por meios naturais.

Jorge Pontual — Quando os meus netos e os seus filhos nos perguntarem o que fizemos quando algo poderia ter sido feito, o que diremos a eles?
David Wallace-Wells — Ninguém está fazendo o suficiente, e eu passei anos mergulhado nesse material, escrevendo um livro e agora falando constantemente no assunto. Eu não estou fazendo o suficiente, as lideranças do meu país também não. Acho que, daqui a uma geração, vamos olhar para trás e ficar horrorizados com o fato de esse assunto não ter sido capa dos jornais diariamente. De não ter sido a prioridade máxima para os nossos líderes, de forma a dirigir todas as suas políticas. Porque quanto mais sabemos sobre o assunto, mais vemos seu impacto. Se você se importa com crescimento econômico, com desigualdade, com violência, com fome… Seja qual for sua preocupação, as mudanças climáticas têm impacto, e não podemos esperar enfrentar esses desafios sem encarar as mudanças climáticas que governam todos eles. E vejo que estamos respondendo com uma complacência incrível, sem nenhum tipo de força. E vejo algum movimento, como os protestos no Reino Unido e na União Europeia, nos EUA. O Green New Deal nos EUA é um grande passo adiante, veremos como vai funcionar, é uma legislação ainda preliminar, mas o fato de estar sendo discutida é muito importante.

Vejo mudanças assim em todo o mundo e elas me animam, mas, pelo padrão estabelecido pela ONU, que diz que temos de nos mobilizar no nível da Segunda Guerra Mundial contra o aquecimento a partir deste ano, nenhuma dessas mudanças está acontecendo suficientemente rápido. Precisamos agir muito mais rapidamente e de forma muito mais incisiva. Acho que temos de refletir e, sem dizer que não dá mais para continuar levando as nossas vidas, entender que, principalmente em termos políticos, cabe a todos nós votar tendo em mente que as mudanças climáticas são uma prioridade, e entre eleições cobrar dos políticos as promessas que fizeram durante a campanha.

Uma coisa é dizer que se está comprometido com o clima, outra é agir. No Canadá, Justin Trudeau falou muito no assunto, mas está aprovando os oleodutos. Na Alemanha, Angela Merkel fez grandes progressos em energia limpa, mas as emissões da Alemanha também estão aumentando. É um assunto muito espinhoso, difícil de enfrentar, difícil em termos de criação de novas leis, e é por isso mesmo que precisamos priorizá-lo politicamente ao máximo, e não dizer que lidaremos com ele depois dos outros problemas, porque, se esperarmos tanto, perderemos o controle e o sistema se tornará muito mais assustador e alarmante. Como você mencionou, um cenário em que agir se tornará muito mais difícil, porque as nações estarão mais preocupadas com a fome, a guerra civil, a crise de refugiados, todas essas coisas.

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