Justiça Tributária

Para que servem as "súmulas" nos julgamentos administrativos?

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

9 de setembro de 2019, 8h00

Um contribuinte paulista foi intimado em abril de 2019 pela Receita Federal para fazer pagamento do débito apontado em decisão do Carf dentro de 30 dias, sob pena de protesto da dívida e bloqueio de bens.

Spacca
Verificando a origem da dívida, constatou que se tratava de cobrança de Imposto de Renda lançado em fevereiro de 2010 e que, depois de regularmente impugnado  na primeira instância administrativa (Delegacia de Julgamento) onde a exigência foi mantida, foi objeto de recurso ordinário perante o Carf, que fez o julgamento em março de 2014.

Seu advogado constatou que entre a data da impugnação e a da decisão do Carf passaram-se mais de quatro anos. Outrossim, entre esta última (março de 2014) e o dia em que foi expedida a intimação (abril de 2019) já se passaram mais de cinco anos.

Ora, a Lei 11.457 de 16/03/2007 que “Dispõe sobre a Administração Tributária Federal” em seu artigo 24 ordena:

“Art. 24 – É obrigatório que seja proferida decisão administrativa no prazo máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias a contar do protocolo de petições, defesas ou recursos administrativos do contribuinte.”

Tal norma garante a observância do mandamento contido no artigo 5º inciso LXXVIII da Constituição Federal, inclusive  as conferidas aos brasileiros e relacionadas com sua segurança e o seu direito de propriedade, onde está a que obriga a observância da duração razoável do processo. Diz a norma constitucional:

“LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

Essa norma foi reconhecida como cláusula pétrea pelo STJ no Recurso Especial 1138206/RS, em que foi Relator o Ministro Luiz Fux. A jurisprudência dos Tribunais pátrios já reconhece a PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE mesmo em relação a processos administrativos.

Servidores públicos são obrigados a obedecer a Constituição. Devem observar especialmente seu artigo 37, cujo caput  determina que a primeira das obediências é à legalidade. Ora, quem não obedece à Constituição, contraria a Lei das Leis. Ela não se interpreta fora do contexto contido em seu preâmbulo, que, em síntese, aponta na direção maior de viabilizar um

“…Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a  segurança, o bem-estar, o desenvolvimento , a igualdade e  a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna…”

Mesmo na primeira instância pode e deve o Judiciário reconhecer e colocar em prática tais princípios apontados pela Constituição Federal. O intérprete da Lei tem o dever de procurar harmonizar suas decisões com as que emanam das superiores instâncias, eis que, para a consecução dos objetivos apontados no preâmbulo da nossa Carta Magna, é indispensável que se promova a segurança jurídica.

Portanto, o mencionado contribuinte está diante de duas flagrantes e gravíssimas ilegalidades: a) explícita desobediência a mandamento constitucional, pois a “duração razoável” não foi observada; e b) o julgamento de recurso administrativo sujeita-se ao prazo de 360 dias, conforme estabelece o artigo 24 da lei 11.457 de 16/03/2007, que “Dispõe sobre a Administração Tributária Federal”, ou seja, diz como deve tal serviço público cumprir suas funções.

Apesar de serem claras e insofismáveis tais normas, os órgãos de julgamento administrativo, em todos os seus níveis (federal, estadual e municipal) resolveram instituir “súmulas”, sob a alegação da necessidade de “ter mais celeridade e dar segurança ao contribuinte” como se vê da notícia da ConJur em 08/07/2016 sobre o CMT – Conselho Municipal de Tributos de São Paulo.

O TIT – Tribunal de Impostos e Taxas da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo desde 2003 instituiu essa “segurança jurídica” que, na prática não gerou “mais celeridade”, haja vista que os julgamentos administrativos continuam ignorando a “duração razoável do processo” que a Constituição determina em cláusula pétrea.

A “súmula” 04/2003, de 24/06/2003 (DOE de 05/07/2003) onde o juiz relator é o AFR Tiago de Paula Araujo, tem a seguinte redação:

“Não é admissível a prescrição intercorrente no processo administrativo tributário.”

Examinando-se a íntegra da decisão do TIT, vemos que invocou jurisprudência do STF (Embargos RE 94.462/SP) julgado em 06/10/1982, ou seja, antes da vigência da Constituição de 1988.  Ora, não atende ao determinado pelo artigo 37 da Constituição decisão que aplique “súmula” administrativa superada com o texto constitucional.

A Receita Federal é a que traz mais preocupação aos contribuintes, na medida em que administra maior número de tributos que podem ser lançados de forma equivocada e causar interpretações confusas.

Ao receber notificação sobre cobrança de lançamento cujos prazos de julgamento foram ultrapassados, o contribuinte pode pleitear a proteção do Judiciário através da medida judicial cabível.

Pode a questão, em nosso entendimento, ser alvo de um Mandado de Segurança com pedido de liminar para suspender a inscrição da dívida (caso ainda não tenha sido feita) e/ou impedir eventual protesto da CDA, tudo com o objetivo de ver declarada a extinção do débito pela ocorrência da prescrição e impedir qualquer ato que cause dano material ou moral ao contribuinte, como, por exemplo, colocá-lo em lista de devedores.

O contribuinte paulista mencionado no início desta matéria obteve liminar com essa proteção. A Receita, em suas informações, apenas  invocou uma “súmula vinculante” do Carf,  a de nº 11, com a seguinte redação:

“Não de aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal.”

Menciona a autoridade coatora na informação que tal “súmula” tornou-se vinculante nos termos da Portaria MF nº 277 de 07/06/2018.  Verificando-se o DOU de 08/06/2018, páginas 132 e 133 descobre-se que quase todas as “súmulas” são vinculantes, pois assim são declaradas as de nº 1 até 107!

Quem assinou essa Portaria de duvidosa valia foi o então Ministro Eduardo Refinetti Guardia, que substituiu Henrique Meirelles durante 9 meses, no final do governo Temer. Se quase toda “súmula” é vinculante, instalou-se no CARF  uma nova modalidade de ditadura.

Não pode o Fisco travestir-se de julgador máximo. Sua atuação está subordinada às leis e regulamentos que fixam suas funções e limites e, acima de tudo, às normas do artigo 37 da Constituição:

“ A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.”

Na visão do Fisco parece que se pretende criar o processo de fim indefinido, o que implicaria em permitir que servidores públicos só exerçam suas funções quando quiserem!

No caso aqui apontado, aguardam-se ainda as manifestações da Procuradoria da Fazenda e do Ministério Público. A Procuradoria, exercida por advogados, cumprirá o juramento da colação de grau:

“Prometo exercer a advocacia com dignidade e independência, observar a ética, os deveres e prerrogativas profissionais e defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da Justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”.

O representante do Ministério Público, como fiscal da Lei, certamente emitirá seu parecer com adequado fundamento.

O espaço de que dispomos nesta coluna não nos permite dizer mais. Todavia, registramos que continuamos na trincheira lutando por Justiça Tributária.

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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