Opinião

A missão constitucional do STJ e a relevância da questão federal

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9 de setembro de 2019, 6h28

Não há dúvidas de que o sistema jurídico-processual brasileiro tem vivenciado grandes desafios. Nos últimos anos é perceptível a crescente demanda de processos judiciais decorrentes de alterações no contexto socioeconômico brasileiro, na medida em que a sociedade – agora contemporânea – passou a exercer seus direitos fundamentais e políticos, além de exigir os direitos sociais que o arcabouço legal brasileiro dispõe[1],[2],[3].

Em atenção ao aumento de litígios, foram implementadas diversas reformas processuais propondo a aplicação de institutos específicos destinados a contenção da litigiosidade que se perpetuou na sociedade brasileira.

Um dos primeiros instrumentos foi a criação da Ação Civil Pública para a defesa dos direitos individuais homogêneos, a partir da edição do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990).

Posteriormente, outros mecanismos surgiram, como a sentença de improcedência de plano (art. 285-A do CPC/73); a súmula impeditiva de recursos (art. 518, § 1º, do CPC/73); as súmulas vinculantes (art. 103-A da CF/88 e Lei nº 11.417/2006); a repercussão geral no Recurso Extraordinário (arts. 102, § 3º, da CF/88 e art. 543-B do CPC/73); os recursos repetitivos no STJ (art. 543-C, do CPC/73); a suspensão de liminares em Mandado de Segurança para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública (art. 15, § 5º, da Lei nº 12.016/2009), dentre outros.

Nessa toada de aperfeiçoamento do sistema processual, deve ser objeto de discussão a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 209 de 2012[4], de autoria, à época, dos deputados federais Rose de Freitas (PMDB/ES) e Luiz Pitiman (PMDB/DF).

O projeto, ancorado em estatísticas relevantes (quando muito, assustadoras), pretende criar um “filtro constitucional” para reduzir a quantidade de recursos ao Superior Tribunal de Justiça: a observância de mais um requisito de admissibilidade aos Recursos Especiais, qual seja, a demonstração da relevância da questão federal do caso, isto é, a retomada da “arguição de relevância", outrora existente no sistema recursal brasileiro[5].

O projeto prevê um novo requisito para admissão dos recursos especiais, à exemplo da Repercussão Geral dos recursos admitidos pelo Supremo Tribunal Federal. A partir da inclusão da relevância, apenas casos com comprovada relevância jurídica, econômica, social ou política seriam julgados no Superior Tribunal de Justiça.

A pretensão reformatória do texto constitucional, sustentada na necessidade de assegurar celeridade na tramitação processual (art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal), seria apenas um projeto de embelezamento ou uma medida necessária a evitar um colapso no sistema processual decisório?[6]

O questionamento é de difícil resposta e merece ser refletido.

Histórico
A justificativa da proposta – apelidada de “PEC da Relevância” – é, em síntese, o "grave problema de congestionamento" no julgamento dos Recursos Especiais pelo Superior Tribunal de Justiça, o que impede sua atuação célere e eficiente na prestação da tutela jurisdicional.

Tal proposta foi aprovada, em primeiro e segundo turno, pelo plenário da Câmara dos Deputados[7], após debate em Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e oitiva dos Ministros Luis Felipe Salomão e Marco Aurélio Bellizze Oliveira, tendo sido definida a alteração do artigo 105 da Constituição Federal, passando este a prever dois parágrafos. O segundo deles teria a redação do atual parágrafo único e o primeiro deveria conter a seguinte redação: “no recurso especial, o recorrente deverá demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento”.

No Senado Federal, onde ainda tramita, a “PEC da Relevância" será objeto de deliberação pelo plenário. Porém, tem-se demonstrando um projeto forte e muito debatido, – tanto que superou a PEC nº 17 de 2013[8] , cuja autoria pertencia a diversos senadores – e já tem sido objeto de propostas de emendas, trazendo aspectos importantes para o texto final.

Percebe-se a intenção do poder constituinte derivado reformador de propor uma "benfeitoria no arcabouço legislativo processual", sob o fundamento de que a relevância das questões de direito federal para fins de admissibilidade do recurso especial contribuirá para a criação de um sistema recursal que contemple a racionalização, permitindo que o Superior Tribunal de Justiça reassuma sua função constitucional.

O tema já foi avaliado por Luciano de Souza Godoy[9], coautor do presente artigo. Agora, em coautoria com Phelipe Moreira Souza Frota, pretendemos expor dados estatísticos atualizados fornecidos pelo próprio Superior Tribunal de Justiça.

Dados do Superior Tribunal de Justiça
Em que pese os esforços (pelos Ministros e servidores do Tribunal) para diminuir a quantidade processos ativos[10] no STJ, são surpreendentes os dados publicados no Relatório Estatístico de 2018[11]: apenas naquele ano foram recebidos no 346.337 processos novos originários e recursais.

Esse volume equivale a 28.861 processos novos recebidos por mês e a 1.467 casos novos recebidos por dia útil no STJ.

Segundo consta, "em comparação com os anos anteriores, em 2018 foi recebida a maior quantidade de casos novos no Tribunal, ultrapassando em 12.283 processos a média dos dois anos anteriores (…). O histórico da quantidade de processos recebidos desde 2012 mostra a mudança de 21.881 processos novos por mês em 2012 para 28.861 em 2018, ou um aumento de 6.880 (31,9%) processos mensalmente”.

Essa quantidade comprova uma média de distribuição surpreendente. Além da Presidência do STJ ter recebido, no ano de 2018, 102.737 processos, em média, cada um dos 10 ministros da primeira seção receberam 8.098 processos; da segunda seção, 7.052 processos; e da terceira seção, 9.305 processos.

Considerações sobre a "PEC da Relevância”
Não obstante seja o Brasil um país de dimensão continental, com elevada quantidade de jurisdicionados e um complexo ramo de tribunais estaduais (26 TJs) e federais (5 TRFs), não é crível que um Tribunal excepcional, proclamado como Corte Superior, tenha a carga de trabalho acima descrita.

A missão constitucional do Superior Tribunal de Justiça é buscar a uniformização da interpretação da lei federal, privilegiando o julgamento de teses. Essa sempre foi a seu compromisso como órgão do Poder Judiciário, que foi reafirmada com o advento do Código de Processo Civil de 2015 e o ideal de observância aos precedentes.

Devemos relembrar que em diversos países as Cortes Superiores escolhem quais demandas merecem sua apreciação. Esse é um modelo identificável em estados democraticamente modernos, como os Estados Unidos, Alemanha, Portugal, França, dentre outros. Tal fato nos faz refletir por qual motivo deveria ser diferente no Brasil; do contrário, o Superior Tribunal de Justiça será visto simplesmente como “terceira instância”.

A “arguição da relevância" deve ser implementada, sendo mais um “filtro” para conferir ao Recurso Especial o seu caráter de excepcionalidade, combatendo a “avalanche” recursal comprovada pelos números acima. O Superior Tribunal de Justiça deve exercer tão somente o seu papel de Corte da Cidadania em demandas que tenham elementos que transcendem as partes envolvidas, ou seja, que possuam relevância jurídica, econômica, social ou política, seguindo o caminho do Supremo Tribunal Federal com a exigência da repercussão geral, em 2004, por meio da Emenda Constitucional nº 45.

Contudo, preocupa-nos como propor a contenção de recursos junto ao Superior Tribunal de Justiça sem prejudicar a efetivação dos direitos fundamentais e sociais previstos na Constituição.

Nesse sentido, como apurar a relevância no caso concreto? Estaríamos diante de uma renúncia de jurisdição? A limitação de acesso ao Superior Tribunal de Justiça em razão do valor da causa (corte pela capacidade financeira[12]) seria um critério pertinente? Por acaso não pode haver uma demanda de quantia baixa que impacte e/ou represente a realidade social brasileira? Recursos que suscitam a confrontação de provas deixariam de ser julgados?

Percebe-se que os próximos passos na CCJ do Senado serão importantes para definição dos critérios de relevância. E não é só. A lei ordinária que regulamentar a alteração constitucional – caso aprovada a PEC – deve ser democraticamente discutida, principalmente com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para evitarmos o perverso fomento de uma “jurisprudência defensiva” e um extermínio (desesperado) de recursos.

De maneira geral, a aprovação da "PEC da Relevância" será um passo significativo para o Estado Democrático de Direito, porquanto haverá aprimoramento na qualidade dos trabalhos do Superior Tribunal de Justiça, que poderá proporcionar audiências públicas e debates sobre temas relevantes à sociedade brasileira, resultando em maior segurança jurídica e efetividade dos direitos do cidadão em juízo.

De outra banda, exigirá protagonismo maior dos advogados e dos próprios magistrados na condução dos processos nas primeiras e segundas instâncias do Judiciário. Significa dizer que o Estado deverá investir em em uma prestação jurisdicional cada vez mais especializada.

A advocacia, por seu turno, deverá se dedicar na estratégia processual direcionada, esmerar-se na produção de provas e no esgotamento do tema até a segunda instância, onde a discussão, de fato, encerrar-se-á.

Nossa percepção
Portanto, a solução para sustentabilidade do Poder Judiciário não parece ser o aumento do número de ministros – o que ensejaria no expressivo aumento da despesa pública -, nem tampouco elevar as custas processuais para a interposição do Recurso Especial, mas proporcionar ao Superior Tribunal de Justiça o cumprimento da sua missão constitucional de uniformizar a jurisprudência sobre as questões da legislação federal que ultrapassam os interesses subjetivos em litígio.

Ao nosso ver a “PEC da Relevância” é, de fato, uma benfeitoria necessária ao sistema processual decisório brasileiro e, com o tempo, será bem incorporada, tal qual a repercussão geral no Supremo Tribunal Federal. Do contrário, o sistema acentuará sua ineficiência e entrará em colapso.

O Superior Tribunal de Justiça deve julgar menos e mais rápido; porém, com qualidade ímpar para proporcionar bons precedentes e teses pertinentes à sociedade brasileira. Só assim esta Corte cumprirá sua missão conferida pela Constituição de 1988.


[1] As camadas sociais marginalizadas passaram a integrar a sociedade institucionalizada. O acesso à justiça não é apenas um direito fundamental no Brasil (art. 5º, XXXV, Constituição da República de 1988), mas uma realidade empírica, reforçada pelo advento do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) e da Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/1995).

[2] O Brasil é conhecido por ser uma “nação judicializada”. Essa foi a expressão usada pelo ex-Ministro da Agricultura, Luiz Roberto Nascimento Silva, em seu artigo opinião publicado no site “O globo” (https://oglobo.globo.com/opiniao/a-nacao-judicializada-22082238, acesso em 22/06/2019).

[3] Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no Relatório “Justiça em Números” de 2018, até dezembro de 2017, havia aproximadamente 90 milhões de processos em tramitação, sendo que, "em média, a cada grupo de 100.000 habitantes, 12.519 ingressaram com uma ação judicial no ano de 2017.

[4] No Senado Federal, o projeto em questão recebeu nova numeração de controle passando a ser conhecida por PEC nº 10 de 2017, sob relatoria do Senador Rodrigo Pacheco.

[5] A arguição de relevância surgiu no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, por meio da Emenda Regimental nº 3 de 1975, alicerçada, posteriormente, pela Emenda Constitucional nº 7/1977, quando ganhou status constitucional.

[6] Os autores pedem vênia aos leitores para fazer um paralelo com o instituto civil das benfeitorias (art. 96 do Código Civil e outros esparsos daquele diploma legal) para ilustrar a natureza jurídica da “PEC da Relevância”.

[7] A referida proposta foi aprovada da seguinte forma:

1º Turno: Sim: 327; Não: 75; Abstenção: 05; Total: 407. (30/11/2016)

2º Turno: Sim: 376; Não: 07; Abstenção: 02; Total: 385. (15/03/2017)

Detalhes da votação e debates podem ser constatados no seguinte link: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=553947, acesso em 22/06/2019.

[8] A proposta apresentada ao Senado Federal apresenta-se como alternativa no tocante ao órgão do STJ competente para a apreciação da admissibilidade. Enquanto a PEC originária da Câmara (PEC nº 209/2012) permite a recusa do recurso por ausência de relevância das questões federais pela manifestação de dois terços dos membros dos órgãos competentes para julgamento do recurso especial, a PEC apresentada no Senado (PEC nº 17/2013) defende que essa recusa se dê pela manifestação de dois terços dos membros da Corte Especial do STJ, de forma a não conferir poder às turmas julgadoras, composta por cinco ministros. A referida proposta teve sua tramitação encerrada 2018, em razão do término da legislatura, conforme artigo 332 do Regimento Interno do Senado Federal.

[9] Da relevância da questão federal ao foro privilegiado. GODOY, Luciana de Souza. Disponível em https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/luciano-godoy/da-relevancia-da-questao-federal-ao-foro-privilegiado-03052017, acesso em 24/06/2019.

[10] Segundo gráficos disponibilizados no site do STJ, de 2015 até 2019 constatou-se uma diminuição do acervo de processos no STJ. Em quatro anos, o STJ diminuiu a expressiva quantidade de 387.649 para 292.757 processos (quantidade essa até o primeiro dia de 2019).

[11] Para melhor analise e compreensão dos dados recomendamos a leitura completa do Relatório Estatístico de 2018 (http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Boletim/verpagina.asp?vPag=0&vSeq=327), acesso em 24/06/2019.

[12] O corte econômico sugerido pela proposta de emenda constitucional é de 150 salários-mínimos.

Autores

  • é advogado, mestrando em Direito Tributário pela FGV-SP e membro do Núcleo de Direito Tributário da mesma instituição.

  • é advogado, ex-juiz federal, professor de Direito de Propriedade da Escola de Direito da FGV-SP, mestre e doutor em Direito pela USP, e visiting scholar pela Columbia Law School. Advogados do Sindicato da Indústria do Tabaco do Estado da Bahia, admitida como “amicus curiae” na ADI 4.874.

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